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Vinícius Júnior, o racismo entre bode expiatório e antropofagia

Interessante refletir sobre o racismo e suas inúmeras maneiras de aparição. No Brasil, o racismo estrutural se faz ordinário, afetando relações pessoais e interpessoais. No esporte sua evidência está marcada na figura do bode expiatório, atletas que participaram da Copa do Mundo de Futebol e foram culpados pelo fracasso. O mais conhecido deles é o goleiro Barbosa, outros também fazem parte desse grupo, em sua maioria atletas pretos.

A justificativa aponta para uma fraqueza pessoal, seja ela física, emocional, intelectual ou técnica, podem estar separadas ou todas juntas diagnosticando a incompetência, não só profissional, mas também pessoal do atleta. As ofensas racistas são a externalização de um ato de expurgo idealizado como necessário para que o ocorrido não volte acontecer. Culpar alguém aplaca a frustração que o pecado da derrota promoveu.

A relação racista e racializada está no fato de geralmente serem os atletas negros escolhidos como bode expiatório. Sua vida, pessoal e profissional, é alçada ao cenário principal para justificar o injustificável, mas que ameniza a dor coletiva ao direcionar o sofrimento sacrificial a outro.

No entanto, a relação racismo e bode expiatório parece fácil conjugar, o desafio está quando atletas bem-sucedidos pessoal e profissionalmente, são xingados e bestializados pelos torcedores, entre eles no cenário internacional temos Romelu Lukaku, Mario Balotelli e, atualmente, o principal alvo da barbárie civilizatória é Vini Júnior. 

Jogadores alegres, diferenciados em campo e que se posicionam frente às injustiça. São homens pretos de sucesso, com uma trajetória de mobilidade social possibilitada pelo esporte. Especialmente, Vini Júnior, que está no Real Madrid, clube de maior prestígio internacional, mantém uma rotina regrada demonstrando muito profissionalismo, dedica atenção na busca pela excelência e fora dos holofotes das arenas esportivas não figura nas páginas sociais ou de fofocas. Sempre é arriscado usar a expressão, mas o Vinícius é um “bom moço.”

Esse bom-mocismo, somado ao sucesso que advêm do resultado de muito trabalho pessoal, incomoda. Nesse caso, o ódio, raiva e rancor, dirigidos a Vinícius Júnior, não se encaixa na figura do bode expiatório. Outra categoria temos que utilizar, pois, essa repulsão, frenesi e furor, só podem ser admiração.

O europeu, colonizador que enfrentou mares desconhecidos, encontrou povos e culturas que não compreendia. Ao comparar as culturas, estabeleceu a sua como referência de civilidade e inferiorizou o restante.  Em algumas situações ficou chocado com a violência  contra o corpo de outro e nomeou de canibalismo os rituais antropofágicos. O consumo da carne humana não era para matar a fome e nem iguaria, sempre foi um ato simbólico. Na verdade, a admiração e o reconhecimento das virtudes do guerreiro adversário induzia a canibalização do seu corpo para absorver sua força e energia. 

Portanto, podemos pensar o racismo como uma prática realizada por um povo, que a partir dos nossos referenciais, é violento e bárbaro, que visa canibalizar o corpo do guerreiro adversário, este altamente admirado por todos. As agressões que vociferam a intenção de morte ao atleta Vinícius Júnior, significam o desejo de absorver o que ele tem de melhor. Estão impondo um desafio para testar sua dignidade e seu valor. A raiva em canibalizá-lo é proporcional ao apreço e sucesso que o atleta conquistou.

Vinícius Jr.
Foto: vitaliivitleo/depositphotos

O corpo preto e sua divindade 

Há também uma espécie de subversão da condição de bode expiatório. Uma experiência de endeusamento concedida pelo homem branco ao corpo preto. É nesse espaço que se “permite” que atletas pretos sejam guerreiros com status de reis, imperadores etc., tal como acontece com Pelé e Adriano.

Curioso que essa honraria produz um apagamento da pessoa preta. Passa-se a ocupar um trono que destitui o sujeito de seu próprio ser para torná-lo maquinaria de entretenimento. Talvez seja esse o motivo da concessão de um superpoder a estes atletas, a dificuldade de ver um homem preto ocupando espaço de destaque como qualquer outro homem branco faria. E que o faria sem a necessidade de assumir uma habilidade sobre-humana agregada à sua identidade.

Não interessa ao público se o título de majestade é desejado ou não pelo atleta. É um presente irrecusável, instituindo uma demarcação na subjetividade do indivíduo que então fica refém de expectativas e idealizações da torcida e da mídia. Ele deve aceitar a nova identidade, desempenhando um papel esperado, ou sua recusa será considerada uma afronta. Ao invés de repulsa, tal fato aumenta a admiração e, consequentemente, os atos violentos e a insinuação da sua canibalização.   

É necessário provar constantemente o lugar de merecimento por ser um corpo preto a ocupar espaço de visibilidade. Uma troca por ser visto e falado. Pelé sacrificou Edson Arantes para poder-ser jogador de futebol. Ainda assim, vez ou outra tinha sua vida pessoal exposta, e era cobrado por não atuar e não se posicionar ante a causas políticas e de militância. Precisava andar na linha para não perder a coroa.

Com Adriano não foi muito diferente. O ex-atleta que decidiu ser apenas Didico aposentou-se em 2016, na época foi duramente criticado por abdicar de seu império. Ao público e à mídia interessava o show, a potência do futebol de um craque. Nada parecia justificar sua escolha de voltar a ser um menino de comunidade periférica quando haviam lhe permitido ser soberano. Seu adoecimento psíquico não foi motivo considerado importante o suficiente para justificar o abandono ao esporte.

É neste espaço de existência que o corpo preto parece experimentar o futebol. Vivendo em uma intersecção demarcada por jogos de poder, vigilância e assujeitamento, que parece ser bem traduzida por Milton Nascimento na canção “Tudo o que você podia ser.” A música expressa o contorcionismo em que esses sujeitos vivem, entre:

Tudo que você queria ser
Tudo que você devia ser
Tudo que você podia ser
Tudo que você consegue ser
Ou nada.

E entre o que se quer, se deve, se pode e se consegue, o atleta preto continua tendo sua experiência subjetiva perpassada pela necessidade de se autoafirmar merecedor. Sendo constantemente submetido a viver entre o que se queria ser e o que se podia ser, o que torna-se perceptível no ato racista vivido por Vinícius José Paixão de Oliveira Júnior. A ele é vedada a possibilidade de que seja apenas Vinícius. Vini Jr é corpo público e por sê-lo é objeto a ser escrutinado, examinado, vigiado, controlado e canibalizado.

Quando seu corpo preto é sentido como ameaça em um território, ele é posto em modo de investigação e examinação, porque contraria a lógica do entretenimento, consumir sua energia vital e seus fluidos. Retira-se a agência do sujeito para ser então possível violentá-lo, com a justificativa de que aquele corpo fere o território que habita por ser preto, portanto, essa valentia deve ser devorada.

Caso Vini Jr. sucumba às “provocações” mostra que não é digno de admiração, a fraqueza será o seu carma para vida. Se recuar está resolvido, ele não é um guerreiro tão bom, merece se contentar com um título qualquer, já que foi consumido pelo entretenimento. Agora, se mantiver uma postura ilustre e altiva, o que resta é comer seu coração. A coragem e resistência mostra o quão valoroso é o guerreiro, a destruição do seu corpo ou sua canibalização representa a máxima honraria. 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Daniel Machado da Conceição

Doutor em Educação, Mestre em Educação e Cientista Social pela UFSC. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea (NEPESC/UFSC), Grupo Esporte & Sociedade.

Como citar

MORO, Eduarda; CONCEIçãO, Daniel Machado da. Vinícius Júnior, o racismo entre bode expiatório e antropofagia. Ludopédio, São Paulo, v. 167, n. 31, 2023.
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