129.3

Virar a casaca

Guilherme Trucco 3 de março de 2020
Menina na Rua Javari. Foto: Acervo pessoal do autor.

Todos sabem: Uma pessoa tem até os 12 anos de idade para definir seu time. Apenas. Ao completar 13 anos, o número do galo no jogo do bicho, o número de Exú, o número mágico de Zagallo, aos exatos 13 anos, seu time está definido e selado para a eternidade. Nada pode ser feito para revogar essa decisão. Nada.

Mudar de time seria o mesmo que alterar a realidade. Não pode ser feito. Falha de caráter das grossas.

A expressão retoma ao Rei Carlos Emanuel III da Sardenha, político pueril, em meio a debates ferrenhos entre França e Espanha, para evitar problemas, vestia-se com as cores de um dos dois reinos conforme as circunstâncias favoreciam. De tanto troca-troca de roupa, ganhou a boca do povo como o rei vira-casacas. Aquele que muda de opinião por medo, ou pior, para obter vantagens.

Carlos Emanuel III da Sardenha, e sua casaca. Foto: Wikipédia.

Só isso já explicaria a profundidade da questão tratada aqui. Mas gostaria de tecer mais duas palavras sobre o tema. Ainda bem que, em bom português, duas palavras são mil.

Só no futebol, e apenas, o último time da tabela pode, em um único jogo, vencer o primeiro. Isso acontece porque o futebol é, e deveria permanecer sempre, injusto. O campeonato de pontos corridos visa corrigir isso. O VAR procura também deixar as partidas mais justas. Não gosto de fulano nem de sicrano.

O futebol é jogado com os pés, imprecisos pés, não com as mãos e seus sistêmicos polegares opositores digitais. O futebol é magia, não matemática. Por isso, apenas no futebol, pode existir um gol, um único gol, milagroso, que muda tudo.

O milagre, a bomba santa, o gol espírita, estas coisas só existem no futebol, meus amigos. Portanto, no futebol, é possível ter fé, acreditar no impossível, cegamente, até o último segundo! Entregar-se de corpo e alma ao seu time, qualquer que seja ele, independente do adversário.

Assistir a um jogo em que tudo indica a derrota do seu time, com esperança. Não aquela esperança desacreditada, que é a última que morre. Não. Não mesmo. Aquela esperança envergonhada, de fundo de estômago, nada disso. Estou falando da esperança cheia, repleta, de peito cheio. Fervida, borbulhando a panela. Esperança renovada nas mandingas, limpa, brancurada de camisa quarada no sol, cândida e creolina engrossada. Esperança engomada de dura. Acreditar no seu time é assim.

Pode acontecer, é uma possibilidade, que mesmo com essa esperança toda, seu time perca.

Não importa.

Ao perder o jogo, a fé nunca se esgota. Nunca. Trata-se de um exercício penitente de acreditar firme e palpável no impossível, e nunca abandonar esse sentimento grosso. Por isso não se muda de time. É conexão espiritual, inexplicável, inevitável.

Agora, amigos, quando o milagre acontece… Ah… Quando o gol salvador surge, desengonçado, a qualquer tempo, a fé, a magia, o encantamento, tudo é renovado por gerações incontáveis. Tudo resumido num grito único, engasgado, emendado num abraço com o estranho ao lado, e misturado a lágrimas inexplicáveis. Gol.

Nunca perca a fé. Nunca vire a casaca. É a melhor sensação que existe.

São Paulino enrolado no manto. Foto: Fábio Soares/Futebol de Campo.
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Guilherme Trucco

Escangalho a porosidade das palavras. Rabisco um Realismo de Encantaria e futebol. Filho de Xangô e Iemanjá.

Como citar

TRUCCO, Guilherme. Virar a casaca. Ludopédio, São Paulo, v. 129, n. 3, 2020.
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