06.5

Viúva de Pelé?

Diana Mendes Machado da Silva 24 de dezembro de 2009

Em artigo anterior, “Apontamentos sobre o protagonismo do torcedor no espetáculo de futebol”, discorri rápida e abstratamente sobre como a figura do torcedor é criada e como passa a integrar o espetáculo esportivo. Em linhas gerais, o artigo discutia a formação social desse importante personagem. O presente artigo tem a intenção de caracterizá-lo um pouco mais. A partir da trajetória de uma torcedora santista, procurará levantar outros aspectos, principalmente afetivos, fundamentais na formação do torcedor de futebol.

Viúva do Pelé? Era o que ouvia quando questionada sobre o time do coração. A entrada, já tardia, no universo de futebol foi mediada por comentários como esse. Hoje, raramente alguém usa o qualificativo, pois se acredita que a viuvez tenha sido superada com a era Robinho e Diego, que marcou um novo período áureo no Santos de Pelé. Mas nos idos dos anos 90, embora apresentasse aqui e acolá alguns (magros) campeonatos e vice-campeonatos, a maré não estava, de fato, para o peixe. E o estado de viuvez que marca o período marca também minha trajetória como torcedora.

Por volta dos 13 ou 14 anos e não na infância, como é bastante comum aos meninos, me interessei pelo futebol. Ao mesmo tempo, me interei da crise por que passava o Santos. Na época, o clube da baixada era paixão somente de meu pai. Santista fanático, seu Brás, o “mestre”, como era conhecido, tinha ataques nervosos durante as partidas acompanhadas pela TV. Ele evitava os jogos no estádio – “o coração não agüenta”, dizia -, contrariando o fato de ter uma saúde de ferro, o que colocava as três mulheres da casa a par dos acontecimentos dentro de campo: “Não sei o que o Macedo está fazendo aí!”, “Pára de enrolar na área e chuta logo, Camanducaia!”, “Esse time está mesmo uma vergonha!”.

A força dos comentários ou provavelmente, de seus gritos, me levou para diante da TV. No início, por pura curiosidade, para entender seus arroubos e de alguns vizinhos que, embora torcedores de outros times, pareciam regidos pelo mesmo maestro (talvez o placar). A curiosidade inicial foi substituída pelos afetos. Primeiro a compaixão, é preciso reconhecer. Torcer pelos mais fracos é, de modo geral, a escolha daqueles que, diante de embate em que não estejam envolvidos diretamente, decidem optar no calor da hora por algum dos adversários. E o Santos, difícil admitir, dentre os chamados grandes clubes, cumpria esse papel. “Nada, nada, nada e morre na praia”, como diziam alguns.

Ainda assim, me vi torcendo com e por convicção pelo Santos. Não sei exatamente como aconteceu, mas em pouco tempo éramos dois, meu pai e eu, a ter os tais ataques nervosos diante da TV. “Filha de peixe…”, como diziam outros. Descobri primeiramente com o corpo o que significa ser torcedora. O contorcer-se, contrair-se – equivalentes para o “torcer” nos dicionários – foram profundamente vividos em momentos como a semifinal do Campeonato Brasileiro de 1995. Experimentei também a sensação da viuvez que me era apresentada a todo o momento, por santistas ou não. E com ela passei a torcer também com a “cabeça”.

A viuvez, mais do que o conteúdo pejorativo, representou para mim a saudável nostalgia do fato de que o maior jogador de todos os tempos ali esteve e de que sua história não se repetiria. Embora o Santos promovesse outros reencantamentos como fez ao apresentar os novos “meninos da Vila” e sobretudo Robinho que, como Pelé, produziu admiradores para além das fronteiras clubísticas, ainda assim a história não se repetiria. E como hoje o time não polariza grandes rivalidades (embora tenha, é claro, seus rivais), é essa ausência/presença de Pelé que dá o tom para sua identidade. Guardar em sua história a história de Pelé é a grande marca do Santos. E assim como as grandes rivalidades mobilizam os times e suas torcidas, essa história mobiliza, fortalece e renova o Santos.

Não vi o rei jogar. Carência que em parte suprimi com as imagens repetidas infinitamente pela TV e em parte, com as geniais pedaladas de Robinho. Ainda assim, no melhor estilo santista, sinto-me uma autêntica e orgulhosa viúva de Pelé.

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Como citar

SILVA, Diana Mendes Machado da. Viúva de Pelé?. Ludopédio, São Paulo, v. 06, n. 5, 2009.
Leia também:
  • 177.28

    A camisa 10 na festa da ditadura

    José Paulo Florenzano
  • 174.16

    Pelo uso da 10, de Pelé (“Santos, Santos”)

    Alexandre Fernandez Vaz
  • 170.8

    Futebol na Literatura de Língua Alemã – Parte VIII: Quando Pelé era uma “Pérola Negra”

    Elcio Loureiro Cornelsen