Assisti a Zico certa vez contar das coisas que os fãs faziam para lhe homenagear. Uma delas era dar aos filhos nomes que se referissem ao grande ídolo rubro-negro. Muito agradecido, ele pedia que as crianças fossem batizadas de Arthur, seu nome civil, e não com expressões bizarras como “Zico Mengo”. Esta história me veio à memória há poucos dias, quando li detalhes sobre o incêndio que matou os dez meninos alojados no Ninho do Urubu, centro de treinamento do Clube de Regatas do Flamengo, em Vargem Grande, Rio de Janeiro. Um deles se chamava Arthur, precisamente em homenagem a maior camisa 10 da Gávea. Outro tinha o nome de Rykelmo, em referência a alguém que envergou o mesmo número mítico, mas como astro do Boca Juniors, Juan Román Riquelme.

O episódio terrível, que se soma a tantos de nosso dia-a-dia, da vida política e social deste país desgraçado pela sorte, me tocou de maneira muito particular. Não bastasse o próprio fato em si, a morte brutal de meninos que serão sempre lembrados como garotos dessa idade, como que congelados na memória de todos, principalmente dos mais próximos, minha sobrinha e filhos de amigos queridos têm idades semelhantes a eles. Foi ainda desconcertante o breve depoimento de Beto, ex-jogador de meio-campo que atuou nos quatro grandes do Rio, vestiu a 10 de Maradona no Napoli e fez bom papel na seleção brasileira. Consternado com a morte dos colegas de seu filho, que tenta a sorte como futebolista formando-se nas categorias de base do Flamengo, contou que em tom de brincadeira costumava dizer ao menino que ele deveria morar em alojamento, longe da família, para saber, de fato, como é a vida de jogador de futebol. O garoto, por sorte, segue vivendo na casa dos pais.

Fui atleta profissional de atletismo durante os anos de minha juventude. Apenas por um breve período vivi em uma casa de atletas, um sobrado, como me disse o dirigente do clube para o qual eu me transferira. Vários morávamos lá, o ambiente era de muita camaradagem e solidariedade, mas o lugar era muito desestruturado. Não era, no entanto, dos piores pelos quais passei, entre inúmeros em que pernoitei ao longo daqueles anos. Dormi, à espera de competição, em colégios com aulas suspensas e banheiros e cozinhas improvisados, em instalações militares e debaixo de arquibancadas de ginásios esportivos. Neles fazia frio, as janelas não eram bem vedadas em relação à luminosidade externa, o ruído era intenso. Além disso, limpeza nunca foi o forte desses ambientes, assim como jamais se teve a preocupação de nos dizer o que deveria ser feito em caso de incêndio ou de outra situação perigosa. Éramos, quase sempre, muitos em um só quarto.

Ninho do Urubu. Foto: Gilvan de Souza/Flamengo.

Até onde posso acompanhar, não é muito diferente a situação de meninos-atletas pelo Brasil afora, com a diferença de que no meu caso essas circunstâncias eram temporárias. Mas há mais do que as péssimas condições de alojamento em que vivem muitos dos aspirantes à condição de atleta profissional, patamar que, como se sabe, é dificílimo de alcançar. Nos últimos tempos, trabalhando com pesquisadores que se dedicam aos processos de escolarização de jovens atletas, em especial Antônio Jorge Soares e Daniel Machado da Conceição, soube que há os que em um mesmo ano passam por oito escolas diferentes, ao perambularem de clube em clube. É uma aposta enorme no futebol, cuja compatibilidade com a trajetória escolar é pouco provável.

Há nos alojamentos muita esperança, claro, de que as coisas vão dar certo. E por mais precários que sejam, podem se apresentar como mais estruturados do que muitas das casas de onde vêm os meninos. Neles, por um lado, a disciplina tende a ser rígida (Diego Tardelli foi desligado das categorias de base do Santos Futebol Clube porque tentou “roubar” um achocolatado durante a madrugada), por outro, formam-se hierarquias próprias do esporte e de um tipo de relação interpessoal que coloca muitos compartilhando pouco espaço. Nesse contexto, os trotes e outros mecanismos de submissão jogam um papel importante, ao promoverem provas de fidelidade e pertencimento. Os mais leves são aqueles do tipo mandar que um menino mais novo compre um x-salada, os mais pesados podem ser insuportáveis, indizíveis. Mas, também conheci gente que viveu anos em alojamentos e que transformou quartos em moradias, chegando a formar família dentro deles. Não deixa, no entanto, de haver algo de perverso nesses casos.

Tudo isso importa, mas nada, claro, se compara à dor de muitos e muitas, principalmente de familiares dos jovens mortos asfixiados ou carbonizados. Qual seria o destino deles? Algum se tornaria campeão do mundo? Jogariam na Europa, sonho de quase todos? Quão difícil se colocaria a conversão para outras profissões, caso o futebol lhes fechasse as portas? Nunca saberemos, ficará só a recordação do desastre e de certo desdém do Flamengo para com as famílias. É um vexame para o rubro-negro que a indenização tenha que ser decidida na Justiça, sabe-se lá quando.

Na adolescência, parece que o futuro está todo a ser construído e que o poder dessa obra é nosso. Para alguns, haveria ainda um plano divino desenhado para o sucesso. Não é assim que acontece, como a maturidade mostra, muitas vezes na forma de desencanto. Mas os meninos não puderam saber do peso da contingência na vida de cada um.

Sul da Ilha de Santa Catarina, fevereiro de 2019.

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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Viver e morrer em alojamentos esportivos. Ludopédio, São Paulo, v. 116, n. 23, 2019.
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