99.19

A voz de Vanderlei

Leandro Marçal 19 de setembro de 2017

Nunca escutei a voz de Vanderlei, goleiro do Santos. Mas sempre ouço alguém se esgoelar na televisão ou em frente a ela a cada absurdo que ele faz na meta santista, já de um bom tempo.

Chega a ser irritante perder 90 minutos de vida assistindo a seus jogos nos últimos tempos: o time da Vila Belmiro só vai sofrer um gol quando a fé não tiver sido suficientemente alta para seu goleiro mover montanhas que lhe serviriam de escudo.

Não que a defesa alvinegra seja das piores, mas deve haver até algumas falhas propositais de tanta confiança no último obstáculo até o gol. Fico imaginando David Braz e Lucas Veríssimo combinando, aos risos, fazer mais um teste em Vanderlei. Sabe aqueles alunos rebeldes, que não acreditam no conhecimento do professor e fazem perguntas capciosas tentando achar uma fraqueza do mestre? Mais ou menos assim. E a resposta do goleiro é certeira como as das leituras dos que nos ensinam. E ele dá sempre uma aula de como defender o que lhe mandaram tomar conta.

Sem nem perceber, como uma obrigação.

Vanderlei é o porteiro bem educado que ajuda a senhorinha a carregar sacolas, fala do tempo com um aposentado do prédio, comenta as últimas notícias do esporte e política com um simpático jovem, cuja esposa maltrata o empregado e mesmo assim ele a trata com extrema educação brasileira.

Eu mesmo já nem me preocupo em ver os gols da rodada quando os melhores momentos da TV se dedicam ao que aconteceu nos jogos do Santos. Espero ansiosamente pelas defesas impressionantes daquele cara magro, com um rosto estranho e uma barba que mais parece desenhada à mão, feito essas grotescas pigmentações servidas nos barber shops da vida – nunca entrei em um lugar desses, mas dizem ser o que eram os antigos salões de cabeleireiros.

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#OMelhorGoleiroDoBrasil ? Campanha do Santos FC em seu Twitter após Vanderlei não ser convocado para a seleção. Foto: reprodução.

Há pouco mais de dois anos, o arqueiro vindo do Coritiba para o time praiano sofreu uma lesão na face em um lance qualquer. Atualmente, quem quebra a cara são os que esperam ver o goleiro, de quem nunca ouvi a voz, representando a seleção brasileira para a próxima Copa do Mundo.

Vai ver Tite também não ouviu muito a voz de Vanderlei. Como há quem acredite em milagres de goleiros, também existem os que creem piamente que os nomes da seleção deveriam ser chamados apenas por critérios técnicos. Mas se já não sou um cara de tanta fé no metafísico, que dirá nos homens representando uma entidade tão esquisita quanto aquela do presidente com medo de viajar.

Até porque, a gente sabe que os técnicos da seleção brasileira costumam ter um comportamento meio adolescente, daqueles bem teimosos. Basta insistir em um nome para que eles façam o contrário. Não importa que todo o Brasil e até os cegos enxerguem o óbvio, é ele quem manda, ele sabe o que faz. Numa época em que quaisquer críticas a incoerências de uma unanimidade rodriguiana quanto a do Adenor me fariam receber pedradas, prefiro continuar vendo Vanderlei nos gramados nacionais e sul-americanos e me fingir de mudo, como sua voz que nunca ouvi.

Pode ser que um nome extenso, com nove letras, de sonoridade parecida com a de um holandês, não pegue muito bem para o camisa 1 do selecionado que dizem representar o país. Cheguei a pensar que a ausência de Vanderlei seria uma imposição do imperialismo: como dar moral a alguém com um nome desses, mas sem um W de início ou um Y para finalizar?

Não, não. A explicação se dá por ele ser xará de alguém da Jovem Guarda e poucos conhecerem sua voz. Imagine só que absurdo: às vésperas da Copa do Mundo e ninguém sabe identificar os timbres do goleiro da seleção? Assim não será possível um vídeo engraçadinho dele cantando uma música do outro Wanderley, o Nogueira (esse com W e Y).

Não duvido mesmo é que Vanderlei seja mudo. Ou retraído, um grande problema nesses tempos modernos e midiáticos. E enquanto não ouço sua voz e todo mundo espera sua vez, sigo olhando a TV a cada grito pelo seu nome, indicando um novo absurdo. Haja garganta.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Leandro Marçal Pereira

Escritor, careca e ansioso. Olha o futebol de fora das quadras e campos. Autor de dois livros: De Letra - O Futebol é só um Detalhe, crônicas com o esporte como pano de fundo publicado (Selo drible de letra); No caminho do nada, um romance sobre a busca de identidade (Kazuá). Dono do blog Tirei da Gaveta.

Como citar

MARçAL, Leandro. A voz de Vanderlei. Ludopédio, São Paulo, v. 99, n. 19, 2017.
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