105.13

A vulgarização do golaço

Leandro Marçal 13 de março de 2018

Nunca entendi porque não seguimos os antigos colonizadores no nome do ápice do futebol. Gritar golo me soava mais poético que o tradicional gol, herança do goal, da época em que futebol era football. Mesmo que as normas cultas da língua portuguesa sejam contrariadas quando o plural vira gols e não gois, com o passar do tempo aceitei a escolha vira-lata, contra a qual não podia lutar.

Por outro lado, nas vezes em que a bola na rede é fruto de uma jogada muito bonita, nada é melhor que golaço. Gastei uns bons trocados na conta telefônica ao ligar para um amigo português. “Goloaço” me parecia um nome bem estranho.

– Chamamos de “grande golo” ou “golo com nota artística”, ó pá – me tirou a dúvida com um sotaque inconfundível, não sem antes falar do gajo Cristiano e do Benfica.

Nesse estranho tempo de padrões patrocinados para comemorar os gols, é curioso não haver regras para a definição de um golaço. O superlativo indica um grau de excelência. E se a palavra geradora de gritos é sagrada, apenas obras de arte com a bola nos pés têm o legítimo direito de serem intituladas como o ápice do ápice.

Pois, reparem: o meia bate uma falta, a bola passa pela barreira que não salta, o goleiro pula com mãos de dinossauro, a pelota não sobe muito e sequer atinge o ângulo, balançando as redes em altura média; num golpe de sorte, o lateral carrancudo e desengonçado chuta de fora da área, ela desvia no zagueiro distraído, vai para a direção contrária e morre nas redes. Dois golaços, disseram. Apenas belos gols, eu digo.

Não consigo me conformar com o exagero. Vejo uma tabelinha bola envolvente, deixando o adversário tonto e finalizando antes que possamos piscar; o atacante cola a bola nos pés como um velho brinquedo do Gugu, passa por meio time e dá um leve toque para não parar embaixo das redes e gerar uma humilhação em praça pública; um chute, a curva Tamburello traçada no ar, um salto infinito com braços esticados é inútil; uma bicicleta com pneus cheios; um voleio. Isso é golaço!

28/03/2017- São Paulo- SP, BRasil- CBF Social - "Seleção na Minha Cidade" em São Paulo - Festival de Futebol reuniu mais de 200 crianças de projetos sociais no Pacaembu Foto: Ricardo Stuckert / CBF
Quem duvida que gol de bicicleta é um golaço? Foto: Ricardo Stuckert/CBF.

Mas, talvez pelo baixo nível do esporte que aqui se pratica, os critérios para a definição de um golaço parecem cair ano após ano. Um candidato a, no máximo, golão, vira uma lindeza até a semana seguinte.

Os verdadeiros golaços e só os verdadeiros golaços poderiam até valer por dois. Daqueles que, ao vermos, sentimos a necessidade de sair da arquibancada, voltar para a bilheteria e pagar mais um ingresso depois de uma pintura nos gramados. O dia em que dei um chute revoltado na quadra da escola, com os pés voltando lentamente ao solo enquanto os olhos arregalados seguiam a redonda atingindo o encontro das traves não entraria nessa conta.

Num futuro, o golaço poderia até servir como melhor critério de desempate. É a única forma possível de qualificar um tento. Em caso de igualdade, quem tivesse o gol mais bonito passaria à próxima fase. Para isso, teríamos que usar uma escala rígida: gol, belo gol, golaço e GOLAÇO!, assim, com a exclamação acoplada à palavra maiúscula e superlativa. Nem todo chute desviado se enquadraria em algo além da segunda adjetivação, bem como as boas bicicletas seriam obrigatoriamente gigantescas.

Nas tabelas de classificação, seria o segundo critério, abaixo apenas de número de vitórias. Prezaríamos mais pela qualidade em campo e não só pelos resultados como um cumprimento de tarefa de escritório. O futebol ficaria melhor, mais bonito. Ninguém mais se contentaria com um gol simples.

Golo é golo e ponto final!  – gritou meu amigo português, antes de desligar o telefone.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Leandro Marçal Pereira

Escritor, careca e ansioso. Olha o futebol de fora das quadras e campos. Autor de dois livros: De Letra - O Futebol é só um Detalhe, crônicas com o esporte como pano de fundo publicado (Selo drible de letra); No caminho do nada, um romance sobre a busca de identidade (Kazuá). Dono do blog Tirei da Gaveta.

Como citar

MARçAL, Leandro. A vulgarização do golaço. Ludopédio, São Paulo, v. 105, n. 13, 2018.
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