No mês passado começaram as celebrações dos 40 anos de um movimento político que foi decisivo para que o espírito da reconstrução democrática no país ganhasse fôlego e forma. Em março de 1983 foi apresentado o projeto de emenda constitucional que restabelecia eleições diretas para presidente da República no Brasil. Vivíamos sob os estertores da ditadura começada em 1964, cujo interesse pela volta da democracia – o pouco que fosse dela – não era lá muito intenso. O grito pelas Diretas Já atravessou todo aquele ano e um tanto de 1984, quando o projeto foi votado e, por apenas 22 votos, derrotado no Congresso Nacional. De lá até janeiro de 1985, quando Tancredo Neves foi eleito indiretamente como primeiro civil depois de duas décadas, o clima foi de certa frustração. Não era para menos.

Em meio a políticos e artistas, intelectuais e sindicalistas, jornalistas e representantes de diferentes segmentos da sociedade brasileira, destacava-se a figura do jogador de futebol Sócrates, ídolo do Corinthians Paulista, bicampeão estadual em 1982 e 1983, e da seleção brasileira. Com a camiseta amarela ele brilhava desde a Copa América de 1979, com destaque, no entanto, para o time de sonhos de 1982, derrotado pelos italianos na Copa da Espanha, no episódio que ficou conhecido como Desastre do Sarriá. O ídolo do time do Parque São Jorge chegou a jogar com tornozeleiras amarelas, a cor das Diretas, e a prometer que não deixaria o Brasil para jogar na Europa, caso a emenda fosse aprovada. Como isso não aconteceu, acabou se transferindo para a Fiorentina, onde não foi feliz.

Ao lado de Sócrates, dentro e fora do campo, estava Walter Casagrande Júnior, formado no Terrão, como era conhecido o espaço das categorias de base do Alvinegro paulista. Um encontrou no outro o companheiro ideal. Já mais de uma vez insistiu o comentarista Flávio Prado que para entender a dinâmica de um gênio, e jogar com ele, é preciso ser muito bom. É por isso, diz ele, que Casão foi tão especial como jogador, já que poucos nesse mundo seriam capazes de atuar bem com o Doutor, tabelar com ele, antecipar as decisões, colocar-se no lugar certo para receber a pelota e arrematar para o gol, ou devolvê-la para uma conclusão ainda melhor. Jogaram juntos na seleção e, no Timão, compuseram um ataque infernal, com o qual também colaborou, em boa hora, o valente Ataliba, nem sempre tão lembrado como merece.

Casagrande Sócrates
Fonte: Reprodução/Instagram

Para além das quatro linhas, a afinidade também era grande. Nove anos mais jovem que Sócrates, irreverente, roqueiro, crítico da ditadura, Casagrande também lutou pela liberdade e até hoje se posiciona, sem medo ou meias-palavras, a favor da justiça social e da ampliação de direitos. Junto com Wladimir, lideraram a Democracia Corinthiana, praticando um novo modelo de autogestão dos problemas coletivos que diziam respeito aos jogadores e ao time. Em ambiente tão reacionário quanto o futebol, foi um feito e tanto promover a prática do debate coletivo das questões que interessavam a todos, mas que eram até então tratadas verticalmente, como se os futebolistas fossem sujeitos menores, infantilizados, amedrontados pelas ameaças dos dirigentes. Que se recorde o quanto o esporte mais popular do Brasil era território também da ditadura, chegando a Confederação Brasileira de Desportos a ser presidida por um almirante.

Casagrande foi um atacante completo. Posicionava-se muito bem, tabelava, finalizava de perto e de longe com força e precisão, tinha excelente cabeceio. Também jogava fora da área, vindo de trás, como quando atuou por um curto e vitorioso período no São Paulo Futebol Clube. No Tricolor, jogando com a camisa oito, fez dupla com outro atacante genial, Careca. Assim como este e Sócrates, Casão deixaria o Brasil. Eram tempos antes da Lei Bosman, quando os clubes europeus tinham importantes limitações para a contratação de estrangeiros, o que só valoriza ainda mais os que rumaram para as ligas de lá. Primeiro foi para o Futebol Clube do Porto, onde foi campeão da Copa dos Campeões, e depois ao Ascoli Calcio, onde não deixou a equipe na mão quando ela caiu para a segunda divisão, permanecendo para comandar a campanha da volta à Série A. Mas foi no Torino que ele se tornou ídolo, participando de excelentes campanhas, como a da vitória da Copa Itália em 1993 e a da Copa da UEFA um ano antes, em que balançou as redes em diversas partidas, inclusive na final contra o Ajax Amsterdã, por duas vezes. Mas, talvez mais importante que tudo isso para os torcedores do time grená tenham sido os gols nos derbies contra a Juventus: emocionantes, decisivos, vitoriosos. De volta ao Brasil para jogar pelo Flamengo, ouviu a Fiel torcida corintiana ovacioná-lo no Pacaembu em jogo contra seu time de origem, cantando que seu lugar era no Timão. Para lá, onde tudo começou, se transferiu e encerrou, ainda jovem, a bonita carreira.

Há uma semana, Casagrande completou 60 anos. A mesma dedicação, técnica e coragem mostradas dentro do campo têm sido vistas nos meios de comunicação em que trabalha e, principalmente, ao falar do enfrentamento da drogadição, mal que também afligiu Sócrates, seu grande parceiro dos campos, morto em 2011 em decorrência do consumo abusivo de álcool. Quando ouço o hoje colunista e comentarista falando das dificuldades em conviver com a dependência química, vejo alguém que respeita a dor, a própria e a do outro, sem escorregar para o moralismo ou a autocomiseração. Reconhecendo os próprios limites e entre eles transitando com as mais fortes ganas de viver, aí está um ser humano que admiro. Longa e boa vida para ele.

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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Walter Casagrande Júnior, 60 anos. Ludopédio, São Paulo, v. 166, n. 22, 2023.
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