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Xeque-mate: o vírus que venceu o esporte

Wagner Xavier de Camargo 19 de abril de 2020

Nestes dias de pandemia, e com tempo de sobra apesar de todos os afazeres inventados por causa de um trabalho que migrou definitivamente para o universo on-line, basta zapear a televisão que a maioria dos noticiários e programas estão, de algum modo, falando sobre o coronavírus e seu rastro de destruição. Nos canais de esporte, agora completamente escancarados, reprises de grandes momentos são mostradas à exaustão. O que vemos de esporte-espetáculo é aquilo que já foi. É como se a pandemia tivesse desencadeado um looping de bons momentos: a Copa do Penta, as frenéticas corridas de fórmula 1, os melhores jogos do Brasileirão de todos os tempos e, inclusive, finais emocionantes de patinação no gelo. O vírus, portanto, fez a indústria bilionária deste esporte parar!

O que acontecerá com as multidões torcedoras de futebol no primeiro jogo pós-pandemia? E os ginásios lotados da Superliga de voleibol, voltarão a se encher rapidamente? E as lutas de MMA nos famosos octógonos estadunidenses, como ficarão? O Superbowl ainda continuará sendo um megaevento inesquecível? Frente ao pavor instalado mundialmente diante do contato corporal, de mãos potencialmente contaminadas, de roupas impregnadas que carregam o vírus por quilômetros e dos tais assintomáticos (que o carregam e nem sabem), pode-se afirmar que o coronavírus venceu o esporte! Ou, pelos menos, o esporte-espetáculo como o conhecemos.

Os jogos de futebol, vôlei, basquete e de inúmeras outras modalidades esportivas estão interrompidos. Competições regionais e estaduais, mesmo amadoras, foram adiadas ou canceladas. Calendários esportivos de toda sorte estão proibidos de acontecerem porque muita gente junta vai espalhar mais facilmente o vírus e a doença se instauraria rapidamente. Se sistema de saúde não quer isso, o sistema esportivo o desejaria?

Dizem que pelas terras germânicas se fala em retomada dos jogos da Bundesliga, a poderosa liga profissional do futebol alemão, sem público e já no mês de maio.[1] Um amigo de lá, fissurado em jogos de futebol ao vivo no estádio, se contenta por hora em ver pela televisão, mas está terrivelmente abalado. Como deixar de partilhar o jogo no coletivo, na multidão? Como afastar o gosto amargo de não poder ocupar aqueles espaços vazios das arquibancadas? Nesse sentido, o vírus é o arquiteto das zonas fantasmas agora implementadas nas instalações esportivas.

Até os disciplinados japoneses foram vencidos pelo dileto micro-organismo. Depois de pressão por todos os lados, a trigésima segunda edição dos Jogos Olímpicos de Verão de Tóquio foi adiada.[2] Isso não aconteceu antes na história dos esportes contemporâneos, a não ser nos períodos de exceção que marcaram as Guerras Mundiais: nos anos 1916, 1940 e 1944 não houve qualquer edição olímpica. Reconhecem alguns organizadores da trademark (marca comercial) “Tokyo-20” que talvez nem em 2021 a “normalidade” olímpica/paralímpica seja restabelecida.

Troca de fluidos em momentos de êxtase, como um gol no futebol, é comum nos esportes. Foto: Reprodução/TV Globo.

Lembro-me de assistir um jogo de futebol masculino do Campeonato Brasileiro entre Grêmio e Internacional, no antigo Estádio Olímpico Monumental, em Porto Alegre, a convite de um amigo. No meio de quase 40 mil pessoas, torcemos, gritamos, pulamos, suamos e nos roçamos com outros torcedores, também suados, molhados, embebedados. Quando chegamos à casa dele, nem bem reconhecia mais meu cheiro, dado à mistura de odores que me impregnava. Hoje isso é impensável. O remédio que nos curará da COVID-19 conseguirá tirar de nós a desconfiança sobre esses esbarrões aleatórios e nos devolver o prazer de se misturar à multidão torcedora?

Os canais de esporte (pagos ou não) passam reprises, jogos antológicos, lutas fenomenais, finais emocionantes de campeonatos, inúmeras situações que nos rememoram o quanto fomos felizes enquanto apreciadores/as de esporte. Até vitórias fantásticas de Ayrton Senna nos anos 1990 estão sendo reprisadas. Será que voltaremos a viver a emoção de novo ao vivo, mesmo pela TV, de disputas que nos tiram o fôlego? Em que medida tudo será “como antes”? – aspas irônicas aqui para me lembrar das pessoas que defendem a “volta à normalidade” (outra ironia).

Na semana passada, alguns/mas atletas olímpicos/as disponibilizaram dicas em suas redes sociais de seus treinamentos: o ginasta Arthur Nori se exercitando em sua sala; Alexandre Pato fazendo exercícios intervalados no meio de sua casa em construção; jogadoras do selecionado nacional de voleibol partilhando experiências de alongamento; e mesmo a atleta Nathalie Moellhousen explicando como esgrimar dentro de casa.[3] Interessante perceber que o vírus impõe outro proceder às celebridades do esporte. Entre perecer no esquecimento ou escancarar a intimidade, que resta a tais pessoas?

Atletas paralímpicos/as, ou pelo menos alguns/mas com condições financeiras, fazem o mesmo. No entanto, a maioria desses últimos/as está parada, simplesmente porque a pandemia, nesse ponto, é discriminatória: pessoas com deficiência que praticam esportes precisam de ajudantes que as auxiliem, transportes que as levem, instalações abertas para que consigam treinar. Com a pandemia e o isolamento social, tais pessoas voltam a um estado que bem conhecem: isolamento em casa, restritas à cama, ao sofá, ou a cadeiras-de-roda, apenas tendo contato com cuidadores/as.

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A sofisticada e tecnológica Fórmula 1, para quem os parceiros comerciais estão em primeiro lugar, prometeu cumprir o calendário do Mundial em 2020. Com menos etapas e, provavelmente sem público, os pilotos correrão 15 dos 18 circuitos então planejados.[4] Afinal, se há centenas de milhares de expectadores que assistem ao esporte pela TV ou internet e torcem por ele, estando aí milhões de dólares em jogo nos patrocínios. Aqui o vírus é manager dos contratos entre financiadores, construtores, pilotos e empresas. Quem ousa questioná-lo?

Não sou fatalista, muito menos pessimista em relação a tudo o que estamos vivendo. Entretanto, estou longe de achar que nada vai mudar no esporte-espetáculo (para uns e outros) depois desta pandemia. Inclusive para quem o vive (como espectador) ou o vivencia (como amador), tudo já mudou. Estando em casa, nosso nível de prática de exercício físico já caiu.

Mesmo com remédio e vacina contra a COVID-19, o esporte depois disso será outro, bem como serão outras as formas de sociabilidade, afetividade e esportividade que desenvolveremos entre nós, dentro dele. Será outro jogo, possivelmente sob outro modelo esportivo.

Assim como na situação de xeque-mate no xadrez, não há mais qualquer possibilidade de defesa ou fuga no jogo estabelecido, o que implica que fomos derrotados pelo vírus, que nos colocou enquanto pessoas (esportivas), em xeque-mate!


Notas de rodapé

[1] Bundesliga planeja retomar temporada em maio e não terá torcida em jogos em 2021. O Globo/Esportes. 08 abr. 2020.

[2] Olimpíada de Tóquio é adiada para 2021. Olhar Digital. 24 mar. 2020.

[3] De Alexandre Pato à campeã mundial de esgrima: fãs treinam com ídolos na quarentena. Globo.com/Olimpíadas. 09 abr. 2020. 

[4] Coronavírus: Fórmula 1 não desiste de temporada 2020 e projeta campeonato com 15 a 18 etapas. Globo.com/Fórmula 1. 23 mar. 2020.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Xeque-mate: o vírus que venceu o esporte. Ludopédio, São Paulo, v. 130, n. 25, 2020.
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