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Zé Carlos: o Hades do Mengão, o guardião de onde a bola morre

Fabio Zoboli, Elder Silva Correia 30 de novembro de 2022

O goleiro talvez seja a posição no futebol onde o jogador “cai do mais alto dos céus para o mais cavado das profundezas” em um tempo recorde. Basta que, por algum lapso, ele deixe a bola morrer no fundo de suas redes. O goleiro pode ficar partidas inteiras e seguidas sem tomar gol, pode pegar a penalidade de um grande craque, pode defender incontáveis bolas difíceis de sua meta, porém, qualquer erro crasso (ou nem tão crasso) o faz querer “cavar um buraco no chão e se enterrar”. Na mitologia grega, há um personagem que nos lembra em demasia o goleiro: Hades, o guardião do mundo subterrâneo, o mundo para onde vai a alma das pessoas que morrem[1]. Deste modo, este escrito tenta pensar o goleiro como o protetor do lugar que pode levá-lo ao submundo, às fendas silenciosas em que ele, solitário, tenta esquecer seus erros.

Para “trocar defesas difíceis” com Hades, trazemos à crônica o goleiro Zé Carlos (07/02/62 – 24/07/09), que atuou pelo Flamengo, de 1984 a 1991 e de 1996 a 1997. Ele é o goleiro que mais vi jogar enquanto criança, e que fez parte daquele time de 1987, o qual me deixou apaixonado pelo Flamengo. Para que o leitor tenha noção desse tempo, basta dizer que Zé Carlos foi o goleiro que tomou o gol da última final em que o Vasco ganhou do Flamengo. Foi no Carioca de 1988, o Vasco venceu o primeiro jogo por 1×2 e o segundo por 1×0 com o gol de Cocada, um lindo chute de pé trocado e o último gol feito no Fla, com vitória do Vasco em finais de campeonato. Lá se vão mais de 30 anos. Elder, meu parceiro de escrita, ainda nem era nascido, assim como muitos/as de vocês que nos leem também não eram (desculpa, Zé, mas essa nós tínhamos que contar!).

Hades é irmão de Zeus e Poseidon. Quando Zeus destronou Cronos, o deus do tempo, distribuiu os poderes governamentais dele entre ele e seus irmãos homens. Coube a Zeus o mundo dos céus e o mundo dos vivos, a Poseidon o controle dos oceanos e mares e a Hades o governo do submundo, para onde vão os mortos. O submundo era cercado por vários rios e só se tinha acesso a ele via barco, por isso entre os gregos o cadáver era sepultado com uma moeda na boca ou em cima dos olhos. Essa moeda deveria ser utilizada para pagar pelo trabalho do barqueiro Caronte, que remava a nau que levaria o finado até a entrada de Hades.

Zé Carlos
Fonte: reprodução

O goleiro Zé Carlos faleceu em 2009, acometido por um câncer no abdome, e partiu para o mundo de Hades muito precocemente com apenas 47 anos. Andrade, o então técnico do Flamengo na época, foi parceiro de Zé Carlos enquanto jogador[2] e dedicou a ele a vitória sobre o Santos na semana de seu falecimento. No jogo final, quando o Flamengo se sagrou campeão brasileiro de 2009, Andrade levou consigo a camisa de Zé Carlos para comemorar o título.

A imagem de Hades é a de um deus justo e sereno com uma grande chave nas mãos, a chave do portão do mundo dos mortos. Portão esse também vigiado por um cão monstruoso de três cabeças, chamado Cérbero. A função de Cérbero era não deixar que nenhum morto saísse dali, ao mesmo tempo em que era dele a responsabilidade de impedir que nenhum vivente entrasse para resgatar alguma alma penada. Hades é considerado o deus das riquezas, afinal é do fundo da terra que saem os produtos agrícolas, os minérios, o petróleo e a água. No sincretismo mítico romano, Hades é conhecido pelo nome de Pluto ou Plutão, daí o termo Plutocracia – governo onde só as pessoas de grande riqueza podem ocupar o poder. Zé Carlos literalmente tinha a chave da trave do Mengão e, por muito tempo, honrou as cores do clube com lindíssimas atuações que protegiam nossa meta. Quantas vezes nós torcedores escapamos do submundo pelas belas defesas de Zé Carlos? De 1985 até 1989, Zé Carlos teve a parceria de um fiel escudeiro, um zagueiro guardião que o auxiliava a proteger a trave do Fla, um cão de guarda chamado Aldair. Coincidências à parte, Aldair tinha o apelido de Pluto e tal qual foi deus em Roma[3]. Aldair era um jogador perfeito pelo alto, parecia ter três cabeças, a exemplo de Cérbero. No mundo do futebol é conhecida a expressão: “todo time campeão começa por um bom goleiro”. Neste sentido, Zé Carlos pode ser considerado um Plutocrático, pois se manteve titular da meta do Flamengo pelos troféus que arrecadou, foi um goleiro “muito rico em conquistas[4]”. Pelo Flamengo, ele foi tricampeão carioca (1986-1991-1996), campeão brasileiro (1987), campeão da Copa do Brasil (1990) e campeão da Copa Ouro Sul-Americana (1996).

Hades teve uma amante chamada Minta, porém, quando viu Perséfone se apaixonou loucamente por ela. Hades, então, largou Minta para se casar com Perséfone, e isso causou em Minta uma raiva gigantesca. Ira essa punida por Demeter, transformando Minta em uma planta rasteira que nasce à beira da estrada para ser pisoteada. Desse mito deriva uma planta conhecida pelo nome de menta[5], utilizada em cerimônias fúnebres gregas pelo seu delicioso cheiro para reduzir os odores da decomposição. Assim como a de Minta, a vida do goleiro é árdua, ele é facilmente trocado por outro. Os treinos excessivos debaixo de sua trave muitas vezes não são lembrados quando eles erram. Talvez pela maldição da torcida não nasça grama ali no miolo da trave, onde o goleiro pisa. Pelas vozes de Eduardo Galeano, o goleiro é amaldiçoado duplamente: por não fazer gols e por impedir que os façam. O gol é o momento de maior euforia do futebol, “o goleador faz alegrias e o goleiro, o desmancha-prazeres, a desfaz” (2015, p.12). Mesmo sendo goleiro, Zé Carlos fez um gol[6] com a camisa do Flamengo, foi em um jogo contra o Nacional do Amazonas pela Copa do Brasil de 1997, o gol foi marcado em uma cobrança de penalidade máxima.

Hades
Hades (à direita) e Perséfone (à esquerda). Detalhe de uma ânfora ática de figuras vermelhas, ca. 470 aC. Fonte: Wikipédia

Por questões óbvias, Hades era o único deus a quem não eram feitas oferendas. Ele é um deus prudente, muito respeitado e que cuida dos mortos que chegam à sua morada pelos remos de Caronte. Caronte passa por vários rios para chegar ao mundo de Hades, e um deles é o rio Léthê (o rio do esquecimento), que apaga as memórias do defunto. Hades não porta nenhuma arma, o único instrumento de poder que possui é um capacete, que quando utilizado o deixa invisível. A exemplo de Hades, no futebol dificilmente se dá ao goleiro alguma “oferenda” de “melhor do campeonato”, de “melhor do mundo”. Geralmente, esses prêmios são distribuídos entre os “deuses” atacantes ou a algum meio de campo habilidoso. Na cultura do futebol o goleiro é sempre o primeiro a ser esquecido, talvez por isso tenha estampado em suas costas o número 1. Por muito tempo o goleiro jogava de preto, a cor do luto. Zé Carlos foi o último goleiro do Flamengo que vi jogar de preto.

Depois que Andrade trouxe a camisa de Zé Carlos ao Maraca para celebrar sua memória no título de 2009, Hades sempre empresta a Zé o seu capacete. Com ele, José Carlos da Costa Araújo passa pelos portões do estádio e com o calor de sua alma ajuda a nação a empurrar para o submundo dos mortos os times adversários. Que até o fim de meus dias, eu continue tendo você como o último goleiro a perder uma final para o Vasco, e que Elder nunca passe por tamanho desgosto fúnebre… Oxalá que vivamos por mais de 100 anos!

Notas

[1] Diferentemente de algumas míticas religiosas, o subterrâneo de Hades não é um lugar onde vão as pessoas más, ao contrário das boas que vão para o céu. Na mítica helênica, qualquer pessoa que deixe o mundo dos vivos (boa ou má) passa a habitar o submundo de Hades. Hades não é um deus mau, ele é o deus guardião do mundo dos mortos e não tem sincretismos ligados ao diabo ou ao satanás. O mundo subterrâneo dos mortos não tem relação com o inferno, a não ser pela derivação do prefixo latino inferus, que faz alusão “ao que está abaixo” ou infra, que significa “abaixo, sob”. No entanto, no mundo subterrâneo de Hades há três lugares: “o campo dos Asfódelos”, onde ficam as pessoas normais; “o campo dos Elísios”, onde ficam as celebridades; e o “Tártaro”, onde ficavam as pessoas que mereciam castigo. Este último sim, tem relação imagética com o inferno.

[2] Zé Carlos e Andrade jogaram juntos no Flamengo e na seleção brasileira.

[3] Aldair jogou durante 13 anos pela equipe de futebol da Roma (Itália). Quando Aldair se despediu teve sua camisa — a de número 6 — aposentada. Porém, em 2013 o clube voltou a utilizá-la a pedido do próprio craque que a aposentou.

[4] Zé Carlos foi campeão da Copa América de 1989, com a seleção brasileira, e campeão da Supercopa Libertadores defendendo as cores do Cruzeiro, em 1992.

[5] A menta é uma planta da família das Lamiales, de onde também deriva a hortelã.

[6] O primeiro goleiro a marcar um gol pelo Flamengo foi Ubirajara pelo campeonato carioca de 1970 contra a equipe do Madureira.

Referências

GALEANO, Eduardo. Futebol ao sol e à sombra. Porto Alegre: L&PM, 2015.

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Fabio Zoboli

Professor do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Sergipe - UFS. Membro do Grupo de pesquisa "Corpo e política".

Elder Silva Correia

Mestre em Educação Física pela Universidade Federal do Espírito Santo - UFES. Membro do Grupo de pesquisa "Corpo e Política" da Universidade Federal de Sergipe - UFS.

Como citar

ZOBOLI, Fabio; CORREIA, Elder Silva. Zé Carlos: o Hades do Mengão, o guardião de onde a bola morre. Ludopédio, São Paulo, v. 161, n. 30, 2022.
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