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Abedi Pelé

Abedi, Maradona e Pelé num só – (Accra, Gana, 24 de Março de 2010)

Já imaginou chegar até Diego Armando Maradona, Franz Beckenbauer ou Eusébio através de um contacto na rede social Couchsurfing, em que os utilizadores disponibilizem o sofá para viajantes necessitados. Em África, isso é possível. A distância social entre famosos e anónimos é muito mais pequena. Osey Welbeck, 37 anos, que contactámos através dessa rede, conseguiu pôr-nos em contacto com um dos melhores jogadores africanos da história em menos de 48 horas. Encontrámos Abedi Pelé à tarde, no treino da equipa que preside, o F.C.Nania, na zona universitária de Accra. A conversa durou 30 minutos. Abedi Ayew foi sujeito a muitas comparações. Chamam-lhe Pelé desde os sete anos e, mais tarde, rotularam-no na Europa de “Black Maradona” (Maradona Negro). Na verdade, Abedi foi um jogador autêntico e com um palmarés registado. Foi tetracampeão francês e campeão europeu pelo Marselha, três vezes considerado como melhor jogador africano e venceu a Taça das Nações Africanas em 1982, com apenas 17 anos. Nunca participou num Mundial, mas ajudou a África do Sul a vencer a candidatura à organização do torneio de 2010. Acredita nas boas hipóteses de Portugal chegar longe, diz-se amigo próximo de Carlos Queiróz e acha que Ronaldo e Messi terão de discutir na África do Sul quem é o melhor do Mundo. Mas a sua maior vontade é que a taça mais ambicionada do Mundo fique no continente africano.

 

A sua equipa chama-se F.C. Nania. Como surgiu este nome?

É o nome da aldeia do meu pai, no norte do Gana.

Como surgiu a ideia de fundar uma equipa na aldeia das suas origens?

Venho de uma família muito pobre oriunda da região de fronteira entre o Gana e o Burkina Faso, a mais de 1000 quilómetros de Accra, a capital ganesa. Depois de uma carreira de tantos sucessos pensei que, se o futebol me tinha dado tanta coisa, eu teria de retribuir e dar alguma coisa ao futebol. Então, pegámos em crianças muito pobres de várias regiões do país e juntámo-las neste clube. Mandamos para a escola as que querem estudar e, às que não querem, ensinamos-lhes no cento de formação como se devem comportar socialmente. Se alguém se tornar profissional, nós vamos sentir-nos recompensados, mas o nosso objectivo é lançar homens para a sociedade. Educar jovens com disciplina e com personalidade para encararem o futuro, porque nem toda a gente pode chegar a futebolista profissional.

Disse-me que veio de uma família pobre. Como foi a sua infância no Gana antes de se tornar profissional?

Eu vivia na aldeia e enquanto jogava na escola primária, com oito ou nove anos, algumas pessoas descobriram em mim um certo talento para o futebol e convidaram-me para vir para a capital jogar na liga juvenil. Essa liga juvenil era disputada por crianças dos nove as 12 anos e, logo no primeiro ano, fui votado como o melhor jogador da liga a nível nacional. Mais tarde, com 14 ou 15 anos, fui para a escola secundária no norte do país e estava a jogar tão bem que me estreei na primeira divisão ganesa com apenas 16 anos, por uma equipa do norte chamada Real Tamale United.

Foi mesmo um talento precoce…

Sim, e as coisas correram-me tão bem que fui chamado à selecção nacional com 16 anos e meio e, com 17, disputei a minha primeira Taça das Nações Africanas, na Líbia, que o Gana ganhou. Aos 17 anos, era campeão africano.

A que se deveu essa pressa toda de vencer?

Uma coisa que acho ser importante é que naquele tempo, quando era miúdo, não imaginava que se podia ganhar dinheiro com o futebol, que se podia enriquecer. Jogava apenas para me divertir e isso ajudou-me a evoluir.

E qual foi a melhor coisa que o futebol lhe deu?

Deu-me tantas experiências…A oportunidade de ir para França exibir o meu talento, de ir para Itália jogar no Torino, de ir para o 1860 Munique, na Alemanha, e de retirar desses países tanto conhecimento. E também deu-me a conhecer treinadores como  Cappello, o Arrigo Sachi, conheci os melhores treinadores do meu tempo. Por isso, quis passar para estes rapazes do Nania a experiência assimilada no trabalho com esses técnicos, para que eles também saibam o que se passa do outro lado do Mundo.

Quais são os objectivos do F.C. Nania?

Começámos em 1998 e ainda somos uma equipa pequena. Em 1999, eu retirei-me e regressei ao Gana. Subimos para a terceira divisão, depois para a segunda e agora somos líderes da primeira divisão. Se mantivermos a posição, podemos disputar a Premier League na próxima época.

Abedi Pelé. Foto: João Henriques
Abedi Pelé é considerado o melhor jogador da história de Gana. Foto: João Henriques.

E sente-se realizado nesta tarefa?

Eu adoro fazer isto. Além disso, tenho andado muito ocupado. Durante dez anos liderei com o Danny Jordaan a candidatura da África do Sul à organização do Mundial. Fizemos campanha, visitámos presidentes, vice-presidentes e primeiros-ministros, para lhes dizer que África era o melhor sítio para receber a prova nesta altura. Perdemos a primeira para a Alemanha porque alguém se recusou a votar. Mas o presidente da CAF disse-me que tínhamos de tentar outra vez porque a segunda tentativa seria vitoriosa. Então formamos uma equipa e fizemos campanha durante três anos. No quarto ano fomos à decisão final e levámos o Mandela, Desmond Tutu, eu e o Danny Jordaan. Uma equipa de sonho. Tínhamos de fazer um discurso de sete minutos cada um em frente dos 24 membros do comité da FIFA. E conseguimos! O próximo desafio é mostrar ao mundo que os africanos não só sabem jogar futebol como também sabem organiza-lo. E as pessoas que forem à África do Sul não vão apenas ver uma cultura intensa e um futebol espectacular – vão também ver uma excelente organização. Vamos mostrar a nossa paixão pelo futebol.

Hoje os jovens ganeses saem de Accra para grandes clubes. O Abedi saiu daqui para o FC Zurique e ainda regressou para jogar no Benin. Acha que agora é mais fácil para um talento africano arrancar?

São tempos diferentes. Eu fui para a Suíça a meio de uma época e apanhei a paragem de Inverno. Eles disseram-me para regressar a casa, de férias, mas quando aqui cheguei não estava seguro de querer voltar porque não sabia se eles queriam ficar comigo na equipa. Recebi uma proposta de uma equipa do Benin, o Dragons, que queriam contar comigo para a Liga dos Campeões de África. Eu não tinha dinheiro, não tinha nada, e eles ofereceram-me 30 mil dólares para jogar lá durante seis meses. Eu sabia que, sendo um país francófono, teria a portunidade de me mostrar às equipas francesas. E assim foi. O Dragons nunca tinha passado a primeira fase e nesse ano chegou às meias-finais. Essa opção deu-me bastante publicidade e no fim dos seis meses estava a ser contactado pelo St. Etienne, pelo Lyon e pelo Nantes.

Foi mesmo para França e formou com Waddle e Papin um dos melhores trios de ataque da década…

Uma das equipas mais ofensivas que vi durante a minha carreira. Jogava o Jean-Pierre Papin no meio, o Waddle na direita e eu na esquerda. Nessa altura,  AC Milan era considerada a equipa mais forte da Europa, com Gullit, Van Basten, Baresi, Maldini, e nós ganhámos-lhes sempre que os encontrámos. Mas a nossa máquina ofensiva era temível.

Foi-lhe difícil adaptar-se à Europa?

Sim, muito difícil. Mas o compromisso e o amor por este desporto ajudam a ultrapassar essas dificuldades. Quando comecei a vingar nos campeonatos europeus, estava a abrir portas para a chegada de outros jogadores africanos como o George Weah, o Didier Drogba ou o Samuel Eto’o. Nós, na minha geração, fomos os pioneiros que estampámos o nome de África na cena europeia.

Tem a alcunha de Pelé e houve quem lhe chamasse o “Maradona Africano”, mas o que é certo é que conseguiu criar uma identidade própria como jogador. Como?

Quando um africano chega à Europa rotulado com o nome Pelé, a pressão é muito grande porque tem de mostrar que tem um talento excepcional. Não é qualquer um que se pode chamar Pelé. Por isso, senti uma pressão muito grande. Mas, felizmente, consegui mostrar esse meu talento e as comparações ajudaram a fortalecer-me psicologicamente para corresponder às expectativas.

Quem lhe deu a alcunha “Pelé”?

Quando tinha uns seis ou sete anos, costumávamos jogar atrás de umas casas lá na aldeia. Uns anciães viram-me jogar e disseram: “Este miúdo joga como o Pelé”. Eu era demasado novo para saber quem era esse senhor, mas o que é certo é que a partir desse dia toda a gente começou a tratar-me por Pelé. E o nome foi ficando…

Abedi Pelé. Foto: João Henriques
Abedi Pelé foi eleito pela revista France Football o melhor jogador africano três vezes consecutivas, 1991,1992 e 1993. Foto: João Henriques.

Porque é que o futebol no Gana tem uma tradição tão forte?

Bem, toda a gente sabe que foram os ingleses que deram o futebol ao mundo. Como os britânicos nos colonizaram, costumavam jogar futebol com os ganeses depois do trabalho e as pessoas adoravam. Mesmo quando estavam preocupadas, mesmo quando tinham fome, o futebol aproximava-as e conseguiam divertir-se. Por isso, nos anos 50 e 60, tornou-se como uma religião para o povo. É mesmo o único desporto no Gana, toda a gente ama o futebol, os outros desportos são muito pequenos. Quando o Gana joga no Campeonato do Mundo, os deputados não vão para o Parlamento, fica tudo parado e a oposição começa logo a criticar. Mas quem manda é o futebol.

No Gana, toda os jovens sonham em ser Abedi Pelé ou MIchael Essien. No entanto, muitos não conseguem chegar a profissionais. Estes sonhos podem ser prejudiciais?

Esse é um tema muito perigoso em África. Quando alguém sonha tão alto e depois cai numa realidade diferente, pode destruir o seu futuro. Antes e depois dos treinos, costumo falar com os meus jogadores e dizer-lhes para serem fortes psicologicamente e acreditarem mas para perceberem que nem todos vão ser profissionais. É importante que eles percebam desde cedo que, mesmo que não cheguem a profissionais, podem ficar empregados na comunidade do clube e de que não é preciso ir para as ruas, para a má vida, roubar ou fumar. Podem tornar-se treinadores, assistentes, ter qualquer outra função e crescer com o clube.

Muitos são enganados e vão para a Europa sem um contrato…

E sofrem muito…Estamos fartos de dizer aos jogadores para que se certifiquem se têm um contrato ou uma equipa garantida para fazerem os treinos de captação antes de viajarem para a Europa. E se não forem chamados nas captações, se não vingarem, que voltem! É melhor voltar! É melhor voltar para África do que dormir numa estação de comboio. Dizemos-lhes sempre que a fama e o êxito não são servidos numa bandeja de prata. É preciso muito trabalho e força mental. Por isso, não chega ir para a Europa. E se não conseguirem ficar nas equipas, o melhor é mesmo regressar.

Porquê?

Aqui em África, quando tens fome, vais bater à porta do teu vizinho ou mesmo de uma pessoa que não conheces de lado nenhum e, se ela tiver o que comer, dá-te uma parte e sais de lá sem fome. Na Europa, é mais difícil isto acontecer. Nós sabemos que somos pobres e que temos de tomar conta do nosso povo. Acho que é uma cultura secular que nos leva a sentir que unidos somos mais fortes. Esta é a filosofia de África.

E essa filosofia vai-se impor no Mundial?

Acredito nisso porque fizemos tudo bem. Há um ano e meio, estivemos no Parlamento e aprovámos o orçamento para organizar o Campeonato do Mundo. Com a chegada da recessão, todo o dinheiro que tínhamos pensado gastar com a organização da competição desapareceu. Os países ficaram todos falidos. Nem assim desistimos. Os responsáveis ficaram decididos a fazer uma boa prova para que, quem visite a África do Sul, leve para os seus países a imagem que os africanos são um povo maravilhoso. Começaram logo a chover críticas de pessoas que não acreditavam em nós. Mas o que é certo é que já organizámos uma Taça das Confederações e tudo foi fantástico. Agora falta a maior prova.

E acha que o mundo já acredita em África?

Deixe-me contar uma coisa. Antes de ganharmos ninguém acreditava em nós. Mal ganhámos, os outros países começaram a guerrear para virem trabalhar para África, o que foi muito interessante. Estavam todos contra nós, mas o presidente de França, na altura o Jacques Chirac e os japoneses ligaram logo a dizer que iam a caminho. Todos queriam fazer os caminhos-de-ferro para o comboio de alta velocidade. A África do Sul tinha tudo mas não tinha esse comboio. Agora tem e é por isso que acho que o nosso trabalho nunca será em vão. Gostava que toda a gente pudesse ir à África do Sul ver os excelentes estádios, os excelentes hospitais e os belos hotéis que construímos e sentirem a paixão dos africanos pelo jogo. Nós não vamos fazer um Mundial como em França, como na Alemanha ou como na Coreia e no Japão. Vai ser um Mundial puramente africano, com vuvuzelas e tudo isso. Não conseguimos mudar, isto África.

As selecções africanas têm conseguido excelentes resultados internacionais, principalmente nos escalões jovens. Acha que o futebol pode dar a auto-confiança necessária ao continente para crescer também noutros sectores?

É a hora de África. Não é que o tempo de África esteja a chegar…ele já chegou. O Gana ganhou o Mundial de sub-20, algo inédito no futebol africano. A Nigéria chegou à final dos sub-17. É uma mensagem para que o Mundo saiba que este Mundial na África do Sul, não vai ser fácil para os países que nos vêm visitar. Não quero dizer que temos muitas probabilidades de ganhar, apesar de termos chances, porque sei que as equipas europeias e sul-americanas têm mais experiência. Mas digo-vos que se os Camarões chegarem à final contra a Alemanha, contra a Inglaterra ou contra Portugal, o estádio vai estar cheio de africanos e aí a história vai ser outra. Isso é que vai fazer deste Mundial um evento único. Não sei qual vai ser a equipa africana que vai chegar mais longe, mas sei que os jogadores vão lutar para que a taça fique cá.

Abedi Pelé atuou pela Seleção Ganesa de Futebol de 1981 até 1998. Foto: João Henriques
Abedi Pelé atuou pela Seleção Ganesa de Futebol de 1981 até 1998. Foto: João Henriques.

O Gana está no grupo da Alemanha, Sérvia e Austrália. Tem hipóteses de passar?

Passa o Gana e a Alemanha. A Sérvia é uma boa equipa mas o nosso treinador conhece-os bem. Eu acredito que o Gana vai jogar bem porque sei que os jogadores estão determinados e encorajados para jogarem bem em solo africano. Quando um jogador tem força mental e motivação, quando dá tudo por tudo, fica umas 200 vezes mais forte.

Que equipas africanas têm mais hipóteses de chegar longe no torneio?

A Costa do Marfim tem uma selecção experiente e, se fizerem o trabalho de casa, podem ter sucesso. Acredito também na Nigéria e no Gana. E há a África do Sul, que não tem grandes nomes mas joga em casa. E todos nós sabemos que não são os nomes que jogam à bola.

E quais são para si as hipóteses de Portugal?

Vai ser um grupo difícil. Mas vocês conhecem o estatuto de Portugal, é uma grande nação, e tem um grande treinador. Eu e o Danny Jordaan somos muito amigos dele desde os tempos em que ele treinava a selecção sul-africana e quando ele foi para Manchester falávamos por telefone a toda a hora. Eu sei que vai ser muito difícil para ele mas Portugal é um dos quatro ou cinco países que pode realmente chegar longe na prova. Veja-se a forma de Cristiano Ronaldo, o que ele anda a fazer…marca golos todos os dias. Se ele marcar com essa regularidade na selecção portuguesa, os adversários vão ter muitos problemas. E não é só o Cristiano Ronaldo, há muitos jogadores portugueses a jogar bem em Inglaterra e em Espanha e juntá-los pode ser estrondoso. Ao olhar para este grupo com Portugal, Brasil e Costa do Marfim, todos a praticar o mesmo tipo de futebol, atractivo e atacante, vejo grandes probabilidades de bons espectáculos. Vai ser divertido.

Entre Ronaldo e Messi, quem vai ser o melhor do Mundial?

É nos Mundiais que se decidem essas coisas mas, para isso, ambos terão de marcar golos como fazem no Real Madrid e no Barcelona.

 *Tiago Carrasco, João Henriques e João Fontes estão rumo à Àfrica do Sul no projeto Road to World Cup. Foi mantida a grafia original do português de Portugal.

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Tiago Carrasco

Tiago Carrasco é jornalista e tem 34 anos. Publicou dois livros, centenas de reportagens nos mais prestigiados órgãos de comunicação social portugueses e é autor de dois documentários. Em 2013, ganhou o Prémio Gazeta Multimédia, da Casa de Imprensa, com o projecto "Estrada da Revolução". Com uma carreira iniciada em 2014, tem assinatura em trabalhos exibidos pela TVI e RTP, e impressos pelo Expresso, Sábado, Sol, Record, Notícias Magazine, Maxim e Diário Económico, para além dos alemães Die Welt e FAZ. Em 2010, desceu o continente africano de jipe num projecto que daria origem ao livro "Até lá Abaixo" (na terceira edição) e a um documentário com o mesmo nome. Em 2012, fez a ligação terrestre entre Istambul e Tunes durante a Primavera Árabe, que originou o livro "Estrada da Revolução" e o documentário homónimo. Foi responsável pelos conteúdos do documentário "Brigada Vermelha", sobre a luta de um grupo de adolescentes indianas pelos seus direitos enquanto mulheres. Cobriu importantes eventos internacionais como a guerra civil na Síria, o pós-revolução no Egipto, Líbia e Tunísia, o Mundial de futebol em 2010, a anexação da Crimeia por parte da Rússia, o referendo pela independência da Escócia, o movimento de independência da Catalunha, a crise de refugiados na Europa e a crise económica na Grécia e em Portugal. Muito interessado em desporto, esteve presente no Mundial'2010 e no Euro'2016 e já entrevistou grandes figuras do futebol: Eusébio, Madjer, Paulo Futre, Rivaldo, Deco, Roger Milla, Abedi Pelé, Basile Boli, Ricardo, Abel Xavier, Scolari, Chapuisat, Oscar Cardozo.

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