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André Ribeiro (parte 2)

Equipe Ludopédio 25 de abril de 2012

André Ribeiro tem procurado criar um “espaço para reflexão e incentivo à literatura esportiva brasileira”. Esse é o objetivo do seu blog, Literatura na Arquibancada, ponto de parada obrigatório para todos os passageiros que trafegam por duas grandes artes e paixões: esporte e literatura. Autor de diversos livros de sucesso, como Diamante Negro, biografia de Leônidas da Silva; Fio de Esperança, biografia de Telê Santana; Os Donos do Espetáculo; André também trabalhou na TV Cultura, participando das equipes que arquitetaram dois programas pioneiros dentro do jornalismo esportivo brasileiro: Vitória e Grandes Momentos do Esporte. Confira este e outros temas na entrevista abaixo.

André Ribeiro
André Ribeiro mantém o blog Literatura na Arquibancada. Foto: Enrico Spaggiari.

Segunda parte

Como você vê a produção de material esportivo na televisão brasileira hoje em dia, principalmente quando comparado ao que você observou e vivenciou desde a TV Tupi? 

Eu era muito jovem, não queria ser jornalista, queria ser mecânico, trabalhar na Volkswagen, montar carro. E fui fazer mecânica no lugar errado, em mecânica industrial. Quando comecei a ver que não era aquilo que queria fazer, já tinha perdido quatro anos da minha vida. Estudava muito. Mas esse fator da organização me deu metodologia para no futuro produzir livros, trabalhar em redação, ter organização para tudo que faço. O que via na época da TV Tupi era a desorganização. Era uma grande bagunça que dava certo. Os profissionais eram muito bons, tudo feito na unha, na paixão, na camisa. Lembro que carregava latas de filmes até a rua Turiassu, onde existia um laboratório de revelação. Peguei essa fase ainda, no final da década de 1970. A Tupi ainda utilizava filmes de 16mm e eu era um dos responsáveis a sair correndo da emissora, muitas vezes sem transporte, a pé mesmo. Tinha de descer lá de cima da rua Alfonso Bovero até a rua Turiassu. Quase derretia. O material revelado tinha que entrar no jornal às 8 da noite. O laboratório revelava e alguém da emissora passava por lá para pegar esses filmes para botar no ar. Olha a loucura!


Tinha que subir correndo novamente? (risos)

Não, porque a partir de determinado horário, sabia que não adiantaria correr, pois o material não entraria no ar naquele mesmo dia. Eu era a “mula de entrega”. Era uma loucura. E o que mudou para o jornal 30 anos depois? Na TV Cultura, tal como quando descia correndo trinta quarteirões na Tupi, havia um garoto caindo pelas escadas com pilhas de roteiros na mão. Tenho uma teoria: no mundo, nada de novo acontece; tudo se reproduz em outra hora, lugar e espaço. Fiz isso há 30 anos e hoje continuam a acontecer. O que muda é a “bitola”: o roteiro, fitas, cartucheira etc. Se pararmos para pensar, o mundo é mais ou menos assim. Se alguém ler o livro “Mauá”, a biografia de um dos maiores empresários do país e que acontece no final do século XIX, poderá pensar que está lendo algo sobre a economia atual. É incrível. Tenho isso na cabeça. Todo o processo numa redação, não é diferente. Antes era a máquina de escrever, hoje os computadores conectados à internet. Lembro até hoje do velho Madureira, um dos redatores da Tupi. Ele sentava-se com a perna cruzada, terno e gravata, bigode e cabelo brancos. O jornal num desespero para fechar e ele dizia: “Não estou com pressa”. Não entregava a lauda sem antes fazer um bonequinho, um soldadinho, com as teclas da máquina de escrever. Quando errava, arrancava a lauda fazendo aquele barulho inesquecível do rolo da máquina. Pelo menos umas dez pessoas enfartavam na redação (risos). Hoje, o que as pessoas fazem? Quando vocês entraram aqui no meu escritório me encontraram terminando uma conversa no bate-papo do Facebook. É ou não é a mesma coisa? Só mudou o tempo, a hora e a ferramenta. Se compararmos, o processo é igual, um chefe que controla cinco, dez ou vinte de uma redação. Os processos de produção são iguais. As ferramentas mudaram. Não vejo essa evolução que todo mundo fala. Vejo a evolução das ferramentas, não dos processos.


E conteúdo do jornalismo?

Involuiu. Antigamente tínhamos apenas as agências de notícias. Minha primeira função na redação era pegar numa sala cheia de “maquininhas” o que vinha da Reuters, AP, todas as agências internacionais, JB, radiofotos internacionais. Cuidava de tirar tudo que chegava, máquina por máquina, colocava em caixas diferentes (havia uma bobina com quatro cópias) e distribuía pela redação para as editorias competentes. Tudo muito rápido, afinal, algo importante poderia estar acontecendo e virar notícia rapidamente em algum plantão da emissora. É ou não é o que acontece hoje de forma instantânea com a ferramenta da internet e redes sociais? A velocidade da ferramenta é diferente, mas o principio do processo é o mesmo. A TV Tupi produzia o grande jornal da época. Quando entrava no ar, às 20h, era o maior ibope da TV brasileira, superior ao Jornal Nacional, da TV Globo. Era um terror fazer aquilo, uma tensão enorme, pressão, e só os melhores trabalhavam. Então, tudo é muito parecido. No rádio, hoje é a mesma coisa. Só que involuiu no sentido de que os profissionais de hoje não são experientes, a maioria jovens recém-formados, que não tem a nobreza de checar informação, e não só por culpa deles. As chefias não ensinam que eles devem primeiro checar as fontes da informação. Quantos erros vemos hoje que dificilmente eram vistos no passado? Hoje o negócio é replicar, compartilhar sem checar. Reparem: se o UOL, Terra ou algum grande Portal errar, todos erram. Efeito cascata. No passado não se via isso, mesmo com a precariedade e as dificuldades na comunicação via telefone. Nesse sentido, involuiu, perdeu a qualidade da informação passada a frente, era muito raro acontecer isso. Não vejo graça trabalhar hoje em uma redação. A única coisa que rezo todos os dias é para não ter que voltar à uma redação. É uma máquina de fazer loucos, ‘pastelaria’, onde não se pode pensar em nada diferente, especialmente pautas. Quantos conheceram, por exemplo, a página cor de rosa do Jornal dos Sports? Era algo fantástico. Todos os domingos, uma página inteira do jornalista Geraldo Romualdo e Silva contando histórias do futebol. Maravilhoso. Sem muitas dessas matérias, não teria condições, por exemplo, de produzir livros como o do Telê Santana, ou de Leônidas da Silva, o Diamante Negro. Onde estão os colunistas? Quem são os cronistas de hoje? José Roberto Torero seja talvez o único que faça uma linguagem diferente. E os outros? Os jornais cada vez mais tiraram o espaço de matérias maiores, da reflexão. Por quê? A informação instantânea e curta é a prioridade, até pelo espaço dedicado às notícias do esporte. Basta abrir os diários esportivos, como o Lance!, e tudo que se lê é notícia curta. Alguns blogs provam que é possível fazer jornalismo verdadeiro utilizando-se “ferramentas” que agilizam a chegada de informação. A grande maioria confunde informação com agilidade. Posso usar um exemplo do que aconteceu com um livro que escrevi. Por que o diário Lance! não tenta, pelo menos uma vez por semana, fazer duas páginas, como fez a respeito do livro Diamante Negro? No meu caso, não foram duas, mas três páginas falando sobre a internação de Leônidas da Silva. Há alguma coisa errada nesse princípio editorial que hoje rege o mercado jornalístico. Já recebi proposta para voltar ao meio, mas estou muito feliz com o que faço. É inimaginável, para quem escreve, o retorno que estou tendo agora com o blog Literatura na Arquibancada. Só quem já viveu essa experiência para entender o que estou falando. Um livro é feito para 5 ou 10 mil pessoas, enquanto um blog, bem produzido, pode atingir milhões. Enquanto isso, certos lixos que estão no mercado vendem milhões. Isso machuca muito. É a vida, não se consegue mudar as regras para quem quer entrar no jogo. Mas fazer o que o tal “mercado” dita só para sobreviver, isso não faço.


Como funciona o seu trabalho de pesquisa para fazer as biografias? Quais são as suas metodologias e quais são as dificuldades encontradas? Tendo em vista que biografia é um tema complicado, pois lida com pessoas já falecidas, suas famílias ou mesmo pessoas vivas.

Essa pergunta é interessante. No blog Literatura na Arquibancada já fiz várias matérias com alguns dos formadores de opinião no esporte, como Milton Leite, Mauro Beting, Celso Unzelte e outros grandes nomes que pautam o mercado editorial do jornalismo esportivo. A tentativa foi procurar entender os processos de produção e criação destes profissionais. É um tema fascinante para quem está começando na profissão ou ainda para aqueles que passaram uma vida inteira tentando ser “multimídia” sem sucesso. Quantos não devem se perguntar: “Como Mauro Beting, Juca Kfouri e outros conseguem fazer tudo o que fazem?”. Todos trabalham em rádio, televisão, jornal, etc. Como conseguem administrar tudo isso? Cada um tem um processo de organização muito pessoal. Eu tenho o meu. Quando fiz a primeira biografia, Diamante Negro, olhei para a montanha de papéis que havia juntado e pensei: ‘Não vou dar conta. O que fui arrumar?’. Mas, consegui. Quando se termina uma obra desse tipo, vem a sensação de prazer, de como é gostoso fazer aquilo. Depois, parti para a biografia de Telê Santana. Quando percebi que tinha dois baús antigos de madeira lotados até a boca de papel, pensei novamente: ‘O que vou fazer com esse monte de papel?’. É assustador, mas a vida ensina e agora já estou no sétimo livro. Cheguei até a fazer palestras sobre esse método de organização que criei. Mas deixo claro às pessoas que esse “método”, funciona para mim. Cada um pode e deve adaptá-lo ao seu jeito de trabalhar. Sobre esse “método” existe um item que batizei de “como organizar uma montanha de papéis?”. E fiz porque produzir uma biografia é exatamente isso. Alguém que seja um bom pesquisador, reunirá, fatalmente, uma montanha de papéis. O que fazer com tudo isso? Curioso é que esse processo de organização pode servir também para a produção de monografias, TCC, ou qualquer trabalho escolar. Sistematizar a informação é fundamental para se ter ao final de um período pré-estabelecido uma obra na mão para escrever. A pesquisa é a obra em matéria bruta. “Amarrar” essa pesquisa de maneira que ela seja útil e prática para o momento em que se for escrever de forma definitiva, também é fundamental. A maioria dos autores utiliza esse processo de produção. Ninguém leva um ano para “escrever” um livro, conta-se neste período o processo de organização e roteiro da tal pesquisa. Tempos maiores na escrita são para romances, que tratam de temas abstratos, ficção. No caso de biografias, com uma pesquisa bem “amarrada”, quatro meses é um bom prazo para se escrever um livro. Tudo dependerá do método, organização, do processo de criação. Muitas pessoas se perdem neste caminho, exatamente por não saberem se organizar. É realmente difícil, mas é fundamental ter um método, seja ele qual for. Digo isso porque também faço roteiros para o programa Jogo de Ideias, do Itaú Cultural, e ali já ouvi de vários autores consagrados as mais variadas formas de que se utilizam para produzir suas obras. Existem os metódicos, que estipulam um horário e condições ideais para trabalhar. Se irá de fato escrever algo ou não, pouco importa, tem que estar ali, sentado à frente do computador, independentemente do ambiente em que esteja, tentando criar algo. O escritor José Castello, por exemplo, só consegue escrever com todas as interferências possíveis. É natural, e quase obrigatório para ele, parar para atender um telefonema, fazer um café, atender a campainha, e voltar a escrever como se nada tivesse acontecido. Aquilo é necessário para ele. Cada um tem o seu processo de produção. Isso pode inspirar e tranquilizar muitas pessoas que sonham em um dia escrever um livro. Já ouvi de muitos autores consagrados ficarem parados à frente da tela do computador sem nada escrever, apenas vendo aquele traço vertical piscando sem parar. O que se perguntam? Cada um terá uma resposta. Quem escreve, vive diariamente esse drama. Escrever é obrigação para quem tenta viver disso. Haverá dias em que se produzirá muito e em outros, nada. Essa é a chave do ‘escrever’. Um ponto de equilíbrio. Existe muita discussão no meio literário sobre isso, inclusive em workshops. Citando novamente José Castello, ele não se cansa de afirmar que não existe fórmula mágica para escrever, existe o seu jeito. E o seu jeito passará fatalmente pelo próprio enfrentamento. Isso é fantástico. Ter de se enfrentar na hora de fazer, seja uma biografia ou uma ficção. É você com você, ou você com a tua pesquisa, mas na hora de sentar para escrever tem muito de você. Lembro novamente José Castello quando disse que nunca mais iria escrever uma biografia depois de ter escrito sobre a vida de Vinicius de Moraes. Aconteceu uma história sensacional: José Castello chegou a ir ao cemitério pedir perdão ao Vinicius com os originais debaixo do braço. É a dor e o sofrimento, pois uma biografia nunca será completa. Também já passei por isso. Sofri muita crítica anos após o lançamento do livro sobre Leônidas da Silva, o Diamante Negro. Juca Kfouri revelou a descoberta de um filho que Leônidas teve fora do casamento e que eu não o teria revelado. A verdade é que eu simplesmente não sabia, porque tanto os vários entrevistados como sua viúva não me falaram absolutamente nada a respeito. São “buracos” na história da vida de uma pessoa que nunca vão se encontrar, a não ser neste caso de Leônidas, pois uma pessoa que morava nos Estados Unidos leu o livro e questionou a obra. E você sofre o tempo inteiro com isso. Na biografia de Telê Santana havia informações que poderia ou não colocar. Você sofre, fica o tempo inteiro se degladiando com o personagem e os fatos reais.


Mas o que é pior: os buracos ou as saliências? Uma vez questionei o Ruy Castro – ele inclusive ficou bravo – e ele disse que não usava o gravador. Anotava tudo a mão.

Nunca soube desse detalhe, mas isso só faz aumentar o respeito que tenho pelo trabalho de Ruy Castro. O Ruy é jornalista à moda antiga, romântico. Conheço ainda outros jornalistas que não abandonaram essa forma de trabalhar. Vários deles nunca usaram gravador, até porque, em muitos casos, na época em que trabalhavam no dia a dia, não existiam, ou quando existiam, eram de péssima qualidade.


Para um jornalista, isso é complicado…

Já falei aqui sobre as mudanças das ferramentas. Qual a confiabilidade desse método de escrever com a memória? Isso é o que talvez possa ser questionado. Só que “eles”, jornalistas do tempo em que não se usava gravadores, sabiam “ouvir” e contar a história. Era assim a nossa profissão, a arte do ouvir e memorizar. Só depois criaram a ferramenta gravador para facilitar. Muitos jornalistas foram criados dessa forma. Muitas histórias são recontadas depois por quê? É aquilo que ficou, a versão. E muitas vezes a versão acaba virando verdade. Hoje, com os recursos tecnológicos, gravadores sofisticados, nunca abri mão dessas ferramentas. Primeiro, minha memória é um lixo. Não consigo me lembrar do que fiz ontem, imagine fazer uma biografia assim? Tenho aqui um depoimento sensacional, o primeiro que fiz para um dos livros que estou trabalhando, sobre o jornalista Thomaz Mazzoni. Tenho na cabeça várias passagens, mas ter a forma e o jeito que essa pessoa te contou e encantou, vai facilitar muito mais a construção do texto. Admiro quem consegue se lembrar de praticamente tudo que o entrevistado conta. E não duvido, acho brilhante, a forma mais inteligente e talentosa de fazer e contar uma história. Também seria fantástico se fossemos capaz de lembrarmos tudo o que já lemos, especialmente, livros.


No caso do Ruy Castro, acredito que não se trata de uma biografia, mas sim de um romance. Mas é igualmente importante. Ao pegar o depoimento da Elza Soares durante meia hora e anotar somente seis palavras, ele está deixando os buracos, ali na hora. Por isso que fiz essa pergunta.

Mas qual é a sua finalidade ao questionar esse método de produção? Você acha que invalida o conteúdo?


Não. Mas não é uma biografia. É um romance.

A memória é algo maravilhoso. Hoje estamos aqui registrando esse momento e daqui alguns anos cada um de nós contará uma versão deste mesmo encontro. Isso é fascinante. É algo que o escritor Gabriel Gárcia Marquez revela em seu fantástico livro “Viver para contar”: “A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para conta-la”. Antigos jornalistas sempre fizeram isso. Eu não questiono. Quem gosta da literatura ficcional ou de romance admite que uma biografia também pode ter esses devaneios. Vários autores consagrados já disseram que “inventaram” muita história para poder tapar buracos que se formam na narrativa. Eu sou muito mais careta, mas também tento aqui e ali romancear fatos reais. Até porque quem me orientou quando comecei a escrever foi meu sogro, que é da “velha” guarda e respeito muito: biografia é biografia, romance é romance. No meu livro, “Os Donos do Espetáculo”, ele não gostou nada da forma como escrevi várias passagens, pois logo no início da narrativa utilizo uma ficção, baseada e inspirada em fatos reais. É uma forma de construir narrativas de cenários. Escritores consagrados, normalmente, recebem muita pesquisa feita por uma equipe. É um trabalho que já vem “mastigado”. Mas voltando a falar sobre a forma que antigos jornalistas trabalhavam, memorizando e escrevendo, gostaria de afirmar que não tenho capacidade intelectual e produtiva para fazer o que eles conseguem. Não tenho essa capacidade. Jamais faria isso. Tenho tudo organizado, sou metódico, é a coisa do cara da área de exatas. Só consigo me entender dessa forma. Na última palestra que fiz disse aos estudantes: “Não sou escritor. Sou um bom repórter que escreve reportagens biográficas”. Literatura é algo muito superior ao que escrevo. Sonho um dia chegar perto de um Ruy Castro, Luis Fernando Veríssimo, pessoas que têm a capacidade de criar da abstração. Literatura é isso: escrever tudo a partir do nada. Impactar tantas pessoas ao mesmo tempo com uma ideia que às vezes é imaginada, criada, num romance, ficção ou biografia. Acho isso uma arte. Você não está enganando as pessoas. Você está influenciando. Quando fiz o “Diamante Negro”, pensei: ‘Se conseguir chegar perto do que Ruy Castro fez com Garrincha e Fernando Morais com Olga, estarei feliz’. Se alguém reparar, o começo da construção narrativa do livro sobre Telê é idêntica a do livro sobre Garrincha. Aquilo me deixou encantado. Primeiro, um recorte romântico daquilo do que você está fazendo, a volta no tempo, e aí o retorno no tempo para começar a contar a história. Um consagrado autor brasileiro perguntou-me certa vez porque eu não tentava escrever biografias de outra forma, não linear. Meu argumento foi simples e objetivo. Se fizer isso, me perco. Cada autor tem um processo. E cada processo é uma forma que permite ao autor escrever melhor. O autor é um ser solitário, que vive naquela linha tênue entre se encontrar e se perder.


Você falou sobre memória. No ano passado, procuramos abordar a questão do dossiê sobre a unificação dos títulos brasileiros. Você acompanhou? Tem alguma opinião formada sobre esse tema que gerou tanta polêmica?

O Odir Cunha é um amigo, mas nunca discuti isso com ele. No Memofut, o grupo de Memória e Literatura, isso gerou um debate acalorado. Achei absurda a forma como foi feita inicialmente a discussão, online, entre os integrantes do grupo. Primeiro, não se discute longe das pessoas e não se crítica o que a pessoa faz sem ela estar presente. Esse foi um grande erro. Quando o chamaram, eu não estava presente no evento, mas me contaram. Nenhum dos comentários anteriores, absurdos para mim, foram feitos em sua presença. Vida de autor é muito complicada. Tudo o que contei até aqui mostra a dificuldade para sobrevivermos. Odir foi honesto e revelou em entrevistas para a mídia como surgiu a história do dossiê. Ele vendeu a ideia para alguém de (ou do) Santos, recebeu uma quantia, que não dava para nada praticamente. Quando percebeu que precisaria de investimento muito maior para concluir a abordagem, ele foi atrás de recursos. Não era um dossiê, mas virou um dossiê. Ele é honesto e conta isso. Qual o problema de um autor procurar recursos para o próprio trabalho? Isso vai tirar a credibilidade da obra e da pesquisa feita? Não li inteiro, mas o dossiê demonstra que Odir se se debruçou numa enorme pesquisa, referenciada em fontes de jornais, ou seja, um crítico pode não concordar com o argumento dele, mas não questionar a forma do trabalho. Mas o que pude perceber de repercussão, em alguns casos, a discussão ficou muito no aspecto de quem foi o parceiro político que o financiou. Ou seja, discutiu-se a qualidade da fonte do dinheiro que foi pago para ele fazer o trabalho. Acho que existe ali (no Dossiê) um estudo muito importante que pode até ser questionado, mas seu argumento é totalmente válido, porque se era uma competição oficial que valia dentro do calendário oficial das entidades que regiam o esporte, por que não ser contabilizado numa totalização de títulos? Não vejo a razão. Por que o torneio conhecido por “Robertão” não pode valer se clubes e jogadores comemoraram, levantaram troféu e todos os jornais os consideraram como campeões do Brasil? Só porque foi a partir de 1971 que começou a se batizar a competição nacional de Campeonato Brasileiro? Isso é uma incoerência. Então, tudo o que Leônidas da Silva ou Friedenreich fizeram nas décadas de 1920 e 1930 não valeu nada? Eles foram campeões brasileiros também. Era o campeonato brasileiro de seleções que existia na época, entre poucos estados. Por que esses títulos não podem ser reconhecidos? A história não existiu? O campeonato não existiu? Por isso dou muito valor à pesquisa de Odir, pois ele pesquisa e remonta a tudo isso. Questiona-se que existem buracos e erros históricos, mas não tenho capacidade de entrar nessa questão, pois não vi o trabalho completo, não sei e também não sou estudioso de estatística. Odeio estatísticas e até sou criticado por isso em alguns de meus livros, pois não as coloco. Infelizmente, nossas fontes de informação são precárias. É um tiro no pé, pedir para ser criticado, pedir para que digam que você se esqueceu de tal jogo.


Como você vê a preservação desses materiais e dessa memória?

Tenho orgulho em dizer que participei dessa história no Brasil. No programa da TV Cultura, Grandes Momentos do Esporte, fizemos uma matéria sobre como estava sendo preservada a memória dos clubes paulistas. Começamos pela Portuguesa, que tinha um pequeno memorial montado. Mesmo assim, cheguei a encontrar por lá um quadro do Enéas jogado atrás de um sofá em uma sala. Encontramos o filme da construção da Vila Belmiro jogado em um depósito debaixo das arquibancadas do estádio. Pegamos, recuperamos o filme e devolvemos os originais com uma cópia para os dirigentes santistas. Quando denunciamos essa situação em todos os clubes, dirigentes resolveram se mexer. Não imaginavam em que situação se encontrava a memória de alguns dos principais clubes brasileiros. No Corinthians, muitos arquivos foram, literalmente, surrupiados. Cheguei a ver parte da coleção de jornais de clubes, na casa de dirigentes, jornalistas e até mesmo em redações. Ou seja, foram surrupiados das fontes primárias. Dr. Rosmaninho, da Portuguesa de Desportos, encabeçou várias reuniões com vários dirigentes de clubes e o São Paulo Futebol Clube decidiu reverter esse quadro. Foi assim que surgiu o maravilhoso Memorial do clube. Aquilo revolucionou, mais pela inveja do que pela necessidade. Os outros clubes começaram a se mobilizar e organizar museus ou memoriais próprios. Hoje, o Corinthians tem um memorial lindíssimo. Se não fizesse, muito material teria sumido. A coleção do Mundo Esportivo, do jornalista Geraldo Bretas, simplesmente desapareceu. Encontrei apenas um volume, preservado pelo seu filho. A família de outro jornalista, Thomaz Mazzoni, jura que doou, além de sua biblioteca, vários objetos pessoais como medalhas, troféus e documentos, para a Federação Paulista de Futebol. Um estudante do Rio de Janeiro, que está fazendo uma tese sobre a vida de Mazzoni não encontrou esses objetos na Federação. Medalhas, troféus, taças, tudo o que ele ganhou: onde está isso? A alegação é que tudo se perdeu em um incêndio. Hoje a memória olímpica está na mão de um homem só, dentro da casa dele, no Amazonas. Mas também há boas notícias. O Museu do Futebol está ampliando seu acervo em um projeto sobre a seleção brasileira feito em parceria com a Fundação Getúlio Vargas. Acho que agora poderemos dizer que estamos preservando a memória de alguns dos nossos maiores craques. Creio que o memorial montado pelo Barcelona pode ser citado como referência mundial. Eles mostram como um clube pode ganhar dinheiro com memória, especialmente com a venda de produtos licenciados. Por aqui, essa visão de negócio está engatinhando.


Qual a receptividade dos jornalistas ao livro “Os Donos do Espetáculo”?

Vários jornalistas não deram valor, muitos por não terem aparecido no livro, mesmo tendo deixado claro na introdução que a obra não era definitiva e que muitos, evidentemente pela falta de espaço, ficariam de fora. Logo depois de lançara o livro, um pesquisador de Natal-RN me enviou um mapeamento completo feito por ele sobre rádios e locutores de vários Estados do país. Disse a ele que seu livro era um documento histórico. Não é literatura, mas uma pesquisa maravilhosa. Ele entrevistou várias pessoas por telefone. Humildemente, ele não sabe a importância deste trabalho. Muita coisa poderia ser utilizada numa eventual reedição do “Os Donos do Espetáculo”. Mas o mercado não deu o devido valor ao livro. Porém, nas universidades, é fonte de pesquisas em quase todas as teses de mestrado, doutorado e TCC sobre jornalismo esportivo na área de Comunicação. É indicado como referência em cursos de pós-graduação. Ou seja, no lugar onde menos imaginei, está sendo muito utilizado. Meu foco no livro foram as lendas, os grandes nomes e os grandes veículos. Não deixar esse material histórico se perder. Celso Unzelte, por exemplo, vai fazer um livro sobre as revistas esportivas, tudo por causa do Donos do Espetáculo. Ele me disse um dia: “Se você não tivesse feito isso aqui, eu não teria um ponto de partida”. Vocês sabem que para fazer o que vocês acadêmicos fazem, é juntar um quebra-cabeças. O livro também, mas nós damos um contorno literário, tentamos fazer isso para seduzir mais o leitor. Acho que essa é a grande diferença entre os nossos universos. O que é um pecado. Terminada uma tese, ela teria de voltar ao mercado na forma de livro. Existem grandes trabalhos que compravam isso. Voltando ao “Os Donos do Espetáculo”, acho que é o melhor livro que fiz até hoje. Não sei se teria fôlego e disposição para outro igual, porque é um trabalho de pesquisa gigantesco. O encadeamento das ideias, o roteiro, está muito bem amarrado, gostoso de ler. O que me importa é que o livro está servindo para muita gente. Tenho consciência do que fiz. Tem erros? Tem. Muita gente já me ligou questionando algumas informações. É assim, nunca é definitivo. Depois, se reeditarem, você pode ir lá e refazer. E o melhor, motivar outros autores a fazer outra obra.


Você acredita que daqui 10 anos contará a história de um novo ‘maracanazo”? O que você espera da Copa do Mundo de 2014?

Espero que não e, aconteça o que acontecer na Copa de 2014, minha contribuição para a literatura esportiva eu darei bem antes desse prazo de 10 anos. Estou trabalhando na biografia de, talvez, dois dos maiores jornalistas esportivos do país: Thomaz Mazzoni e Mário Filho. Serão dois livros, lançados antes do início do Mundial. Para construir a obra de Mazzoni recebi de sua família um acervo incrível de fotos e documentos de sua longa trajetória profissional. Foram mais de 20 livros publicados e quase 40 anos dedicados a consolidação de um dos jornais mais importantes da imprensa brasileira, a Gazeta Esportiva. Para comprovar a importância da realização de teses acadêmicas, a biografia de Mazzoni terá como base a tese de mestrado de Rafael Silva, pela PUC do Rio de Janeiro. No caso de Mário Filho, parece impossível que até hoje não se tenha uma biografia de sua vida e obra. Mas não tinha. Seu neto, Mário Filho Neto, mantém um acervo fantástico e tudo será devidamente pesquisado.

 
Por fim, como surgiu o projeto do documentário do esporte olímpico com a professora Katia Rubio (USP)?

Fiz o roteiro do projeto. Não ganhamos na primeira edição do concurso Memória Olímpica, patrocinado pela Petrobras em parceria com o canal ESPN Brasil. A Katia disse que haverá uma nova edição e vamos nos inscrever novamente. É um projeto fantástico e que merece ser conhecido em todo o planeta, pois é inédito, mesmo em países com cultura e estrutura esportivas mais avançadas que as nossas. Um acervo com mais de 500 horas de gravações com atletas olímpicos do país é um documento histórico impressionante. Pretendemos, inclusive, apresentá-lo e mostrar os resultados obtidos até agora também nos eventos presenciais do projeto Literatura na Arquibancada que estou organizando. Já enviamos o projeto até para a Universidade do Porto, em Portugal. Caso aprovado, serão três dias de evento. Num desses dias, mostraremos o projeto. Esperamos que por aqui, no Brasil, diversas universidades também se interessem, pois o projeto da professora e amiga Katia Rubio é espetacular.

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