Depoimento de Armando Giesta (1928-2011), torcedor-símbolo do Fluminense, ex-presidente da Young-Flu e fundador da ASTORJ (Associação de Torcidas Organizadas do Rio de Janeiro), em 1981.


– Entrevista concedida a Bernardo Borges Buarque de Hollanda
– Gravada em áudio no dia 2 de março de 2005
– Local: Biblioteca do Fluminense Football Club.
– Transcrição: Bernardo Buarque de Hollanda

– Edição: Pedro Zanquetta Junior.

 

Bandeira com Armando Giesta.

Terceira parte


Gostaria que você falasse sobre o surgimento da Associação das Torcidas Organizadas do Rio de Janeiro, em 1981. Como nasceu a ideia de vocês se unirem?

Desde o meu ingresso na Young-Flu, em 1974, eu tinha intenção de articular algo nesse sentido, pois já vivíamos um momento em que cada torcida reivindicava medidas para seu benefício e nada conseguia. Havia a necessidade de se estabelecer uma representação forte com um porta-voz que falasse em nome de todas as organizadas.

Sob essa premissa, em 1981, eu e outros líderes aproveitamos a anistia política e fundamos a ASTORJ. Fui o primeiro presidente e, logo no início, exigi uma reunião na Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro. Pleiteamos, na ocasião, o direito à participação e voto no Conselho Arbitral, o que acabamos obtendo. A partir de então, colaboramos na formulação das tabelas do Campeonato Carioca e discutimos os valores dos ingressos. Por diversas vezes, conseguimos abaixar os preços e, em consequência, lotar os estádios. O Octávio Pinto Guimarães (ex-presidente da Federação Carioca de Futebol, da Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro e da Confederação Brasileira de Futebol) reclamava bastante, porém nos ouvia e costumava aceitar nossos pedidos.

Ele comandou o futebol no Rio de Janeiro por muitos anos, não é?

O Octávio passou quase vinte anos no poder. Só saiu quando foi eleito presidente da CBF. Naquela ocasião, o Eduardo Viana (presidente da FERJ entre 1984 e 2006), ocupava a vice-presidência da federação e assumiu o cargo. Ele exercia uma influência no interior e foi esperto ao unir todos os clubes do Estado e filiá-los. Feito isso, substituiu o voto qualitativo – que privilegiava os clubes grandes -, pelo unitário e, devido à gratidão dos dirigentes dos times menores, vem se elegendo ano após ano.

Durante quanto tempo a ASTORJ teve uma participação efetiva nas decisões do futebol carioca?

De 1981 até 1992, ela manteve uma importante influência.

 

Quem substituiu você na presidência?

A associação teve três presidentes: eu, o Wilson Amorim (ex-chefe da Bancica, torcida organizada do Bangu) e o Roberto Luís Branco (ex-líder da Raça Rubro-Negra).

O sucesso da nossa união, infelizmente, nos trouxe problemas, pois as torcidas ganharam muita expressividade e o Léo (Leonardo Ribeiro, mais conhecido como Capitão Léo, dirigente da Torcida Jovem do Flamengo no final dos anos 1980 e início dos 1990) iniciou um conflito terrível contra o Vasco e seu presidente, o Eurico Miranda. Quando os dois entraram em confronto, a coesão de todas as organizadas desapareceu. Algo muito prejudicial, tendo em vista que aqui no Rio de Janeiro, os clubes são dependentes entre si, dentro e fora do campo. Por exemplo, quando o Fluminense caiu para a Série B do Campeonato Brasileiro, nenhum clube carioca conquistou o título. Do mesmo modo, na ocasião em que o Botafogo foi rebaixado, o tricolor não foi campeão porque faltou o alvinegro para tirar pontos de um dos times grandes que disputava conosco. Há essa dependência. O que ocorreu com as Escolas de Samba no Rio também ilustra bem isso. O samba não significava nada aqui até os anos 1950, quando o Anísio Abraão David e sua turma decidiram fundar a Associação das Escolas de Samba da Cidade do Rio de Janeiro. Dali em diante, ganharam tudo, pois constituíram uma força terrível. Eles tinham suas diferenças, porém, na hora de votar, estavam juntos.

A ASTORJ pretendia seguir esse exemplo da Associação das Escolas de Samba?

Sim, e, durante um bom tempo, fomos tão unidos quanto elas. Lamentavelmente, o Eduardo Viana e o Eurico Miranda foram capazes de nos desarticular. Se concebíamos uma greve, o Eurico chamava a torcida do Vasco e oferecia dois mil ingressos para eles. Os vascaínos iam ao jogo e os demais ficavam na porta em protesto. Em virtude disso, perdemos a solidariedade e, na sequência, a nossa sala, os programas de rádio e televisão que produzíamos… Tivemos tudo na mão e não fomos capazes de conservar. Por isso, somos fracos hoje. As torcidas ainda tem um papel importante no estádio, mas politicamente são insignificantes. Os tricolores não fazem um protesto sequer. Não reclamam, não reivindicam absolutamente nada e dependem do clube. Ganham o ingresso dos dirigentes e, por estarem em torcidas pobres, já se dão por satisfeitos. A única organizada que ainda luta é a do Flamengo. A do Vasco está morta, completamente dominada pelo Eurico.

Grande parte dessa decadência está ligada ao fato de os líderes de torcida atuais não serem como os da minha geração… Os chefes antigos eram bravos e tinham personalidade.

Você considera possível uma reversão desse quadro atual?

Acho muito difícil. Para ser como antigamente, é preciso extinguir as torcidas e começar tudo de novo. É imprescindível também que apareçam bons líderes e que se acabe de qualquer maneira com os ingressos gratuitos. A submissão a essa prática é tão grande atualmente que, se fosse abolida de uma hora para outra, as únicas que suportariam seriam a Força Jovem do Vasco, a Pequenos Vascaínos – por ser comandada pelo Zeca (José de Souza Barbosa), um cara carismático e rico -, a Fúria Jovem do Botafogo, a Young-Flu, a Força-Flu, a Jovem do Flamengo e a Raça Rubro-Negra.

A figura do chefe de torcida é muito importante, não é?

É fundamental. Não podem ser pessoas sem gabarito e formação. Por exemplo, a Helena Lacerda, antiga chefe da Fiel Tricolor, era esposa de um juiz. O Armando Cavalcante (um dos fundadores da Young-Flu) é presidente da Companhia Boa Vista de Seguros. Eu, o Sérgio Aiub e o Ely Mendes (ex-dirigente da Força Jovem do Vasco) éramos empresários. O Marcelo Penha e o Raul Prata, da Garra Tricolor, são advogados. O Cássio, da Força-Flu, e o Banha, da Torcida Jovem do Flamengo, são engenheiros. A maior parte das pessoas daquela época ocupa hoje cargos de importância nos próprios clubes ou em seus empregos.

Em contrapartida, com exceção da Força Jovem do Vasco, as torcidas cariocas não têm mais lideranças assim. Quem comanda a Jovem do Flamengo por trás do José Carlos Peruano (integrante da Torcida Jovem do Flamengo e ex-presidente da Associação das Torcidas do Flamengo) é o Léo. Na Raça Rubro-Negra, não há mais alguém com a personalidade e respeito do Cláudio Cruz. Na Força-Flu, quem dirige é o Papagaio e mais dois que não têm linhagem e moral para os cargos que ocupam. Um quadro muito diferente daquele que existe em São Paulo, onde os diretores são todos engenheiros, advogados ou empresários que não precisam ir aos clubes pedir ingressos ou dinheiro para custear as suas viagens.


Você sabe explicar por que há essa distinção?

Isso ocorre porque as organizadas de lá têm poder econômico e seus chefes são, em maioria, de classe média alta. A qualidade daqui é menor. São pessoas da classe média baixa que encontraram um tipo de diversão no qual entram de graça. Eu não quero estar em uma torcida na qual os dirigentes usam drogas e só pensam em dar tiro e matar. Muitos componentes antigos se afastaram em virtude disso. O futuro das torcidas cariocas é uma incógnita para mim.

Símbolo da ASTORJ.


No período em que você a dirigiu, a Young-Flu frequentava eventos de outras modalidades como o basquete e o vôlei?

Nós tentamos por um tempo, mas houve dificuldades, pois acabamos levando a violência do futebol para as quadras. A briga que existia nesses esportes antes de nós se restringia aos jogadores ou, no máximo, à meia-dúzia de sócios. A partir do momento em que solicitaram a nossa presença, os conflitos se tornaram generalizados. Então, não quis mais comparecer. Se não íamos, nada ocorria.


Vocês costumavam realizar alguma ação social?

Algumas. Às vezes ajudávamos um asilo, fornecendo um televisor ou consertando a geladeira… Íamos também ao Retiro dos Artistas, onde organizávamos churrascos e passávamos o dia todo dançando com eles. [Risos]

Eu nunca rejeitei um convite e sempre levava um grupo grande comigo. Os diretores atuais não sabem fazer isso. Eles alcançaram um poder, porém quiseram mais e perderam tudo. No meu caso, alcancei um respeito e poderia ter ido mais longe, todavia nunca aproveitei minha posição para ter vantagens pessoais. Eu participei de muitas sessões da Câmara dos Vereadores e dos Deputados e, por diversas vezes, sentei-me à mesa de prefeitos do Rio, como o Marcello Alencar e o Saturnino Braga. Até hoje, se eu quiser falar com dirigentes como o Márcio Braga, o Eurico Miranda ou o Bebeto de Freitas, sou recebido na mesma na hora. A respeito disso, o Robson Gracie costumava brincar: – “Se qualquer um bater na porta do Gabinete do prefeito, ele manda voltar no dia seguinte. Pode ser general, coronel… Mas se o Armando Giesta for lá, é atendido na hora, pois o prefeito sabe que o Armando pode levar um caminhão de eleitores para ele”. Certa vez, ele chegou inclusive a me questionar: – “Por que você nunca pediu nada para você, seu otário?”. Dada a minha influência, eu poderia facilmente ter obtido um cargo qualquer de assessoria, entretanto jamais quis.


As torcidas costumavam apoiar um candidato?

Nós sempre apoiamos e pedimos votos. Todavia, nunca agi com interesse particular. Em 1986, por exemplo, fizemos campanha para o Di Giorgi, um tricolor doente que foi conselheiro do clube e vereador.


Vocês chegavam a participar de comícios?

Sim. Íamos a muitos eventos com nossas bandeiras. Ainda em 1986, atuando na ASTORJ, conseguimos eleger o Márcio Braga como deputado federal com apoio das torcidas dos quatro times grandes do Rio. Tivemos êxito mesmo com todo o ciúmes que há entre elas. Geralmente, quando uma facção apoia um candidato, a rival busca outro, ao invés de se unirem para alcançar um benefício comum. Algo que atrapalha bastante.

Após a eleição, o Márcio Braga cumpriu tudo que nos prometeu. Fomos à Brasília, participamos de sessões solenes na Câmara dos Deputados… O problema é que não soubemos aproveitar a oportunidade. Chegamos até lá e reivindicamos ações para todos, ao invés de nos concentramos nos nossos próprios problemas.

Além de idealizador da ASTORJ, você também foi o fundador do Grupamento Especial de Policiamento em Estádios, não é?

Exato. Foi uma ideia minha e do Márcio Braga. Ele me convidou para elaborarmos isso após assumir a administração do Maracanã no segundo mandato do Leonel Brizola (governador do Rio de Janeiro entre 1983 e 1987 e de 1991 a 1994). Eu tentei estruturar o GEPE e implantar o JECrim (Juizado Especial Criminal) no estádio, mas não consegui levar o segundo adiante, pois o governo não tinha dinheiro na época e havia uma série de exigências para que ele fosse instalado lá. Naquele momento, eu considerava importante termos um juizado de pequenas causas para julgar o torcedor infrator na hora e facilitar o trabalho da Polícia Militar.

Então, ao mesmo tempo em que liderava as torcidas, você também tomava parte na elaboração das políticas de policiamento?

Correto. Eu era presidente da Young-Flu, da ASTORJ e conselheiro do GEPE. Fui eu que indiquei o Capitão Siqueira para ser o primeiro comandante do grupamento e, em conjunto, realizamos uma minuciosa investigação em relação a cada um dos cento e vinte homens que compuseram a primeira tropa a fim de garantir que lá só haveria pessoas da fina flor. Por infelicidade, seis meses depois já estava uma porcaria… [Risos] Na minha época, o GEPE não teve apoio e enfrentou crises porque o Brizola, às vezes, era democrata demais. Ele foi um sonhador, uma pessoa boa que acreditava em todos e se perdeu em virtude disso.

Você falou sobre a influência que a organização do samba carioca teve na elaboração da ASTORJ. Você teve vínculo com alguma Escola de Samba?

Eu frequentei muito a Portela até o início da década de 1980, quando o Nézio Nascimento foi expulso da escola após uma confusão com o Carlinhos Maracanã e fundou a Tradição.

A Young-Flu chegou desfilar pela Portela?

Muitas vezes. Nós tínhamos uma ala na escola, assim como a Jovem-Flu, a Raça Rubro-Negra, a Jovem do Botafogo e a Força Jovem do Vasco. Contudo, após o episódio que mencionei, todas migraram para a Tradição. Eu não desejava fazer o mesmo com a Young-Flu, mas o Sérgio Aiub tomou as rédeas e a conduziu com as outras. Mesmo contrariado, contribui com a escola até ela atingir o primeiro grupo. Nesse momento, levei nossos componentes para a Grande Rio, onde ainda estão. Na Tradição, permaneceram a Força Jovem do Vasco – até a morte do Ely Mendes – e a Jovem-Flu que preserva alas lá até hoje, apesar de também desfilar pela Beija-Flor. Faltou muita união entre nós quanto ao carnaval. É uma tarefa difícil congregar todos sob uma mesma bandeira.

Houve um período em que as músicas cantadas nas arquibancadas foram muito influenciadas pelos samba-enredos, não é?

Sim, todas as torcidas cantavam algum em especial. Os tricolores entoavam os da União da Ilha e do Império Serrano. Os flamenguistas gostavam mais dos sambas do Salgueiro, enquanto os botafoguenses e vascaínos escolhiam os que estavam no auge.

Quando a torcida organizada cantava um samba, significava que ele era bom. Hoje, não canta mais, pois nenhum presta. [Risos] O samba-enredo acabou. Há uma valorização maior do carro-alegórico do que da música. Quem constrói o maior, ganha o carnaval.

Além dos samba-enredos, havia antigamente uma porção de músicas de provocação aos rivais como aquela: “Ado-ado-ado, pó-de-arroz é pra v…”. Em resposta aos rubro-negros, nós gritávamos: “Pó-de-arroz passa no rosto, urubu toma no…” [Risos]. Já para os vascaínos, entoávamos: “Ê bacalhau, ê bacalhau, sobe no meu p…, que eu te levo a Portugal”. Todas tinham sacanagem, mas era algo que só se ouvia na arquibancada. Na rua, existia respeito, sentávamos juntos… Agora, é diferente. Eles extravasam no estádio e ainda querem dar porrada na rua.

Confira a quarta parte da entrevista no dia 06/08/2014


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Bernardo Borges Buarque de Hollanda

Professor-pesquisador da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV).
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