Depoimento de Armando Giesta (1928-2011), torcedor-símbolo do Fluminense, ex-presidente da Young-Flu e fundador da ASTORJ (Associação de Torcidas Organizadas do Rio de Janeiro), em 1981.


– Entrevista concedida a Bernardo Buarque de Hollanda
– Gravada em áudio no dia 2 de março de 2005
– Local: Biblioteca do Fluminense Football Club.
– Transcrição: Bernardo Buarque de Hollanda
– Edição: Pedro Zanquetta Jr.

Armando Giesta, fundador da torcida organizada Young Flu do Fluminense.

Primeira parte

Gostaria que você se apresentasse e dissesse onde e quando nasceu.

Meu nome é Armando Martins Giesta. Nasci no dia 6 de janeiro de 1928 em Rio das Flores, município do Estado do Rio de Janeiro. Atualmente, essa cidade é conhecida por ser a terra do Bispo Edir Macedo (fundador da Igreja Universal do Reino de Deus). Inclusive, eu o conheci lá quando ele tinha 8 anos e era coroinha da igreja.


Fale um pouco sobre seus pais e seus irmãos.

O meu pai era português e se chamava Manuel Martins Giesta e minha mãe, Emília Rosa Giesta. Eles tiveram sete filhos, quatro homens e três mulheres.


Quanto tempo você viveu em Rio das Flores?

Até os meus 6 anos, quando viemos para a cidade do Rio de Janeiro. Chegamos em uma terça-feira e no domingo, meu irmão mais velho – que era tricolor doente – me levou para assistir um jogo entre Botafogo e Fluminense no antigo campo do América.


Foi esse irmão que te levou a torcer pelo Fluminense?

Não apenas ele. Meu pai ajudou também.


Apesar de ser português, seu pai era tricolor?

Nós éramos do interior do Estado do Rio e, antigamente, quem nascia nessa região era Fluminense.

Qual era a ocupação dos seus pais?

Meu pai tinha uma fazenda, mas, por motivos políticos, precisou vendê-la. Ele não gostava da ditadura do Getúlio Vargas e,naquela época, as pessoas eram obrigadas a terem um retrato do chefe do Estado em suas casas. Ele adquiriu um, porém três meses depois, passaram oferecendo outro e meu pai se recusou a comprar. Os vendedores o intimidaram: – “Oh, Português! Vamos deixar aqui e depois passamos para receber”. Quando voltaram, ele quebrou o quadro na cabeça dos sujeitos. Eles eram da Polícia Especial do Getúlio e meu pai acabou preso. Em razão disso, vendeu a fazenda, a casa… Éramos garotos e passamos o diabo nesse período.Todavia, minha mãe aguentou firme e colocou todo mundo para trabalhar e ajudar. O dinheiro que conseguíamos, além de nos sustentar, custeavaas despesas com o advogado.


Quanto tempo seu pai ficou preso?

Aproximadamente seis meses. Entretanto, o processo durou quatro ou cinco anos. Após a saída dele da prisão, começamos tudo de novo. Compramos uma fábrica de tintas e vernizes e,graçasaos frutos dela, conseguimos sobreviver e estudar.


Como foi sua formação escolar?

Completei o ginásio, masprecisei parar os estudos para trabalhar.


Quais ocupações você teve?

Trabalhei desde muito pequeno. Quando adulto, fui vendedor da General Electric e da Philips. Na década de 1990, retomei minha participação nos negócios da minha família e ajudei meu irmão – que passava por problemas pessoais – a administrar a fábrica de tintas. Após sua morte, me aborreci, paguei todas as dívidas e fechei a empresa. Fiquei sem nada. [Risos] Agora, estou batalhando outra vez para juntar um dinheiro. A melhor coisa do mundo é trabalhar. O idoso, para viver, tem que dever. Se não se ocupa para pagar as contas, morre jogando baralho na praça, falando mal dos vizinhos… [Risos]


Como começou a sua história como torcedor?

Naquela ocasião em que fui pela primeira vez ao estádio do América com meu irmão, o tricolor venceu o Botafogo por 4 a 1 e gostei muito. Passamos, então, a ver juntos todos os jogos do Fluminense. Ainda não existiam as torcidas organizadas, mas estabelecemos contato com um grupo grande de tricolores.


Em que lugar ficava o campo do América nessa época?

Na Rua Campos Salles, onde atualmente é a sede do clube. Infelizmente, elescometeram a besteira de vender o campo. Isso explica porque estão nessa tristeza hoje em dia. Todo time que negocia o próprio estádio, sem ter outro, morre. O Botafogo sofreu o mesmo.


Você frequentou o Estádio das Laranjeiras na época em que havia o anel completo de arquibancadas?

Sim! O estádio era muito mais bonito. Porém, nos anos 1950, com a abertura da Rua Pinheiro Machado, demoliram a parte de trás de um dos gols. Além disso, após a inauguração do Maracanã, os jogos dos times grandes passaram a ser realizados lá. Era uma época em que até as partidas contra o Olaria enchiam o estádio. Ir ao Maracanã se tornou o passeio predileto das famílias cariocas aos domingos. Era um lugar de lazer em uma época em que não havia mais o que fazer, poisCopacabana não era como hoje, não havia Ponte Rio-Niterói e Barra da Tijuca, o acesso à Petrópolis era difícil…


Nessa época, você morava em que bairro?

Eu morava no Maracanã, ao lado do que viria a ser o campo.[Risos]. Cheguei lá em 1938, época em que ainda havia o Derby Club. Como eu havia sido criado na fazenda, consegui um emprego lá quando tinha 8 anos. Às quintas-feiras e sábados, eu montava um cavalo e puxava outros dois até a praia do Flamengo ou do Caju para tomarem banho de mar. Eu começava às quatro da manhã e acabava às sete horas, a tempo de ir para a escola. Tive essa ocupação até que veio a Segunda Guerra Mundial e o local se transformou em uma garagem de carros de combate do Terceiro Batalhão. Em razão disso, as cocheiras foram transferidas para Petrópolis. Com o final do conflito, o espaço ficou abandonado até a construção do estádio.


No período anterior à fundação do Maracanã, quais estádios você frequentava?

Além do campo do América e das Laranjeiras, íamos muito ao São Januário que, até então, era o maior estádio. Lá havia partidas da Seleção Brasileira pela Copa Rio Branco ou Copa Roca, da Seleção Carioca contra a Seleção Paulista… Tudo acontecia ali e frequentávamos bastante.


Lá também eram realizadas as paradas militares do Getúlio Vargas, não é?

Exatamente. Todo ano, no feriado de 7 de setembro, o Gustavo Capanema ( Ministro da Educação entre 1934 e 1945) gritava, berrava, fazia o diabo lá… Nós íamos para perturbar. [Risos] Éramos retirados da arquibancada, armávamos uma confusão danada. Naquele tempo, quem não rezava como havia sido ordenado, era posto para fora. Enquanto crianças, o máximo que podia acontecer era sermos expulsos da escola. Na verdade, eles imputavam os pais como responsáveis por colocarem ideias subversivas na cabeça dos filhos.

O estádio de São Januário teve seu período de glória, porém, na década de 1940, surgiu a campanha para o Brasil sediar a Copa do Mundo e, em virtude disso, construir novos estádios. Houve uma oposição terrível a essa ideia liderada pelo Carlos Lacerda, o maior tribuno do Brasil. Para derrubá-lo, todo dia quando acabava a aula, uma turma grande – da qual fiz parte – se concentrava no Maracanã e ia de ônibus até a Câmara dos Vereadores, no Largo do São Francisco, para ocupar as tribunas e ajudar o então vereador Ary Barroso. Ele próprio e o Mário Filho pagavam as passagens para nós. Ao lado de outros vereadores e pessoas ligadas ao futebol como o José Maria Scassa e o Dario de Mello Pinto, eles conseguiram derrubar o Carlos Lacerda.

Ele queria que o estádio fosse erguido em Jacarepaguá, não é?

Sim. Hoje, penso que ele tinha razão. Era inteligente e enxergava à frente. O Maracanã hoje é um elefante branco, encravado no meio do progresso. Mas, como não há outro, vamos levando. Fizeram tantas obras que agora é impossível abandoná-lo.


Gostaria que você falasse sobre o surgimento das torcidas organizadas. Quando elas começaram?

Em 1942, com a Charanga do Flamengo, que não era, de fato,uma torcida organizada. OPaulo Eugênio não permitia de jeito nenhum que a chamasse assim. Para, ele, era a Charanga do Jaime.


Os responsáveis pelo nome ‘charanga’ foram o Ary Barroso e o Dario de Mello Pinto, não é?

Sim, foi o Ary Barroso que contratou a primeira charanga. Coincidiu de ser a do Jaime e foi um sucesso. Na sequência, surgiu a Torcida Organizada do Vasco, do Botafogo, do Fluminense… E o Jornal dos Sports passou a organizar concursos de torcidas.


As torcidas nasceram em função desses concursos?

Não. O Jornal dos Sports as promoveu. A torcida foi uma necessidade e apareceu em todos os clubes.


Você acompanha as partidas do Fluminense desde a década de 1930, não é?

Exato. Para se ter uma ideia, de 1936 até hoje, só perdi dois Fla-Flu. Um em 1978 e outro em 1995. Nas duas ocasiões, eu estava hospitalizado.

No tricampeonato carioca do Fluminense, entre 1936 e 1938, você estava presente?

Sim. Peguei até o time básico que era Batatais, Guimarães e Machado; Marcial, Brant e Orozimbo; Sobral, Romeu, Russo, Lara e Hércules.Depois,o Timentrou no meio de campo e o Moisés, na defesa. Essaequipe venceu cinco vezes o Campeonato Carioca e durou até 1944.

Naquela época os times duravam, não é?

Bastante. Os jogadores eram criados no próprio clube. Alguns casos mostram o vínculo que era estabelecido entre atletas e o Fluminense. Por exemplo, em 1973, o citado Guimarães, colocou o sobrinho dele – o Manfrido – para jogar no time. Até 1986, um atacante uruguaio dos anos 1920 chamado Bacchi, frequentava a nossa sede. Alguns jogadores da equipe de 1983, como o Assis e o Washington são tricolores doentes e não saem daqui. Eles têm uma identificação com a camisa, algo cada vez mais raro. Hoje, o dinheiro tomou conta.


Quando você acha que começou o dinheiro começou a prevalecer?

A partirdo crescimento da mídia estabeleceu-se uma integração mundial e um progresso muito rápido. Hoje, daqui até à Europa é pertinho.


Antigamente, era caro ir ao estádio?

Eu considerava, pois recordo que para ir a uma partida era preciso juntar dinheiro. A arquibancada era mais elitizada. Atualmente, vejo pessoas de sunga, praticamente nuas, no estádio. [Risos]Não era assim. Para permitirem a entrada de bermuda no Maracanã foi uma guerra. Havia um repórter chamado Espezim Neto que considerava o estádio muito quente e passou a ir de bermuda. Ele era barrado na porta, mas insistia a cada jogo. Estabeleceu um conflito e passou a ajudar o pessoal da torcida. A Polícia Militar cansou de bater e não resolver nada. Por fim, acabaram liberando.

Apesar dos ingressos serem caros, naquela época só havia jogos aos domingos. Então, quando o Fluminense jogava em um final de semana no Maracanã, no seguinte atuava no campo do Madureira. Desse modo, muita gente só ia a cada quinze dias e conseguia juntar dinheiro.

Nos dias atuais, acredito que pagar quinze reais para ver uma partida é caríssimo. Em relação ao que o povo ganha, dez reais estaria de bom tamanho. Os clubes que se virem, afinal eles já têm patrocínio. O torcedor de verdade no Rio – aquele que chora e passa mal -, não é da classe média, é pobre. Quando o clube aumenta o preço das entradas, esse público não vai e é um fracasso. Em São Paulo, as coisas são diferentes. Devido às poucas opções de passeio, o paulista se dedica mais ao clube e é a classe média que frequenta os estádios.


Você acredita que os torcedores das organizadas de lá também são diferentes?

Sim. Se você andar no meio da Gaviões da Fiel ou da Mancha Verde, vai perceber que eles tem grana. São filhos de comerciantes… Nenhum é favelado. O poder aquisitivo deles é muito maior que o nosso. O carioca, se não almoçar antes de ir ao Maracanã, passa fome. [Risos] Para viajar, rouba para comer, beber e ainda faz de tudo para não pagar o ônibus. [Risos] Hoje, se o clube não financiar, nenhuma torcida do Rio consegue trinta ônibus para se deslocar.

Confira a segunda parte da entrevista no dia 23/07/2014

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Bernardo Borges Buarque de Hollanda

Professor-pesquisador da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV).
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