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Arnaldo de Mattos (parte 2)

A entrevista deste mês é com o ex-jogador Arnaldo de Mattos. Paulistano, criado na famosa Vila Maria Zélia, considerada a primeira vila operária do Brasil, Arnaldo atuou nas categorias de base do Corinthians e em clubes do interior de São Paulo. O ex-jogador e comerciante relembra diversas passagens de sua trajetória futebolística; embora curta, uma carreira marcada por muitas estórias. Entre elas, sua participação como jogador da seleção brasileira nos Jogos Olímpicos de 1968, realizados na Cidade do México.

A entrevista integra o projeto coordenado pela professora Katia Rubio, intitulado Memórias Olímpicas por Atletas Olímpicos. Essa pesquisa tem por objetivo entrevistar os atletas que representaram o Brasil em alguma edição dos Jogos Olímpicos. Boa leitura! 

 

Arnaldo de Mattos participou dos Jogos Olímpicos de 1968. Foto: Sérgio Settani Giglio.

 

Segunda parte

Pensando nas relações com os técnicos, como você lidava com eles?

Olha, lembrando o que a gente escuta de treinador, chega a um ponto que parece tudo maluco. Eu conheci o ‘Rato’, o José Castelli, um homem fantástico, simples. Depois, quando cheguei a ser profissional, fui para a Portuguesa Santista. Lá, com Armando Renganeschi, a gente só treinava dois toques e coletivo. Nada mais. Depois, no Saad, cruzei com um treinador chamado Ilzo Néri , que era da Ponte Preta. O homem punha o tabuleiro com dois times de botão e começava: “Vai daqui, vem aqui, e cruza, gol, 1 x 0”. Um rapaz que jogava comigo falou assim: “professor, o time deles não se mexe”. Aí era só gargalhada. Depois veio o Baltazar para o Saad, quem eu tinha conhecido no Corinthians quando ele era auxiliar do treinador; ele só apitava, essas coisas, não tinha função nenhuma. Depois ele foi treinador do Corinthians e o Saad o contratou. Se eu falar, vocês vão falar que é mentira. Sabe como ele dava as instruções. Ele dava instruções para a defesa e o goleiro e depois dava instruções para a linha de frente. Separado um do outro. Jogam 11? Ele separava: 6 e 5. Você já viu isso? A gente conta essas histórias e é verdade. Pode perguntar para quem trabalhou com o Baltazar e você vai ver se é verdade ou mentira. Quando ele começou a fazer aquilo, eu não acreditei. Porque no vestiário é assim: quando você entra, tem um paredão, os chuveiros e os vasos sanitários. Ele levava a defesa e dava a instrução. Depois a defesa vinha para cá, ele levava o ataque e dava a instrução. Pô, é brincadeira, jogam 11 juntos. E o time ganhava, mas não por causa da competência dele. Dava sorte e ganhava. A gente comentava entre a gente, mas o que vamos falar? No fim, ele pode acabar te sacando do time e você não fez nada. Uma vez eu tive uma discussão com ele. Ele chegou no estádio e a primeira coisa que ele falou: “Jogador é assim: saiu machucado, quando ficar bom, volta para o time”. Se saiu por não estar bem, já é outra coisa. O que acontece? Eu fui jogar um amistoso contra o Figueirense e torci o tornozelo. Fiquei 15 ou 20 dias parado. Quando fiquei bom, ele mandou um cara vir me sondar para ver se eu não iria ficar nervoso, pois ele ia me tirar do time. Falei: “ah, vou ficar bem nervoso”. “Quem vai jogar agora sou eu”, falei para ele. Ele perguntou por quê. “Quando o senhor chegou aqui falou que quem machucasse, saísse por contusão, voltaria. É o meu caso. Quero jogar”. Treinador é difícil. Falava-se tanto do Lula, que foi treinador do Santos F.C. e Corinthians. Foi o cara mais simples que eu vi na minha vida. Fui jogar uma vez em Ribeirão Preto, ele me deu a camisa e disse: “joga o que você sabe”. E acabou. Não tem esse negócio de ficar inventando. Hoje tem um monte de coisa: atacar por aqui, voltar por lá. Antigamente era totalmente diferente.

Como o senhor lidava com a dor?

Tinha que vir para casa e encher de gelo. No Saad, na época quando comecei a jogar, nem médico tinha, só massagista. Depois é que veio médico. Os caras comentam hoje sobre esses casos de infarto. Graças a Deus eu não vi isso na época, mas foi sorte. Porque não tinha exames, não tinha nada. Uma vez eu estava pelo Saad contra o União Agrícola e abri a parte detrás da cabeça, me levaram para a Santa Casa. Não tinha ninguém. Se a pessoa tinha um tipo de infarto, naquela época morria mesmo, porque não tinha estrutura nenhuma. Campos ruins. No Saad, tinha só um par de chuteiras. Se estourasse a chuteira, tinha que ficar olhando os pés dos reservas para ver se sabia no teu pé. Quando chovia, os times grandes desciam para o vestiário e voltavam todos secos; nós, dos times pequenos, subíamos do mesmo jeito que descíamos. Não tinha como trocar, não tinha fardamento. Hoje, com os investimentos de propaganda na camisa, ficou melhor. Mas antigamente não tinha, era terrível. A gente não podia dar camisa para ninguém, pois iria faltar para o outro jogo. Não iria ter como jogar.

Arnaldo de Mattos relembra passagens de sua trajetória futebolística. Foto: Sérgio Settani Giglio.

Você falou um pouco sobre a questão dos amadores, que não tinham os contratos. Como funcionava isso na prática, no contato com os atletas de outros países nos Jogos Olímpicos?

A gente não entendia nada do que eles falavam. Todas as delegações ficavam na Vila Olímpica. A gente se cruzava, mas pouco se falava. O que víamos é que eles tinham mais estrutura que a gente. Não íamos ao campo que eles treinavam, mas a gente via, era diferente. A própria alimentação: eles bebiam vinho, bebiam tudo. Aquilo fazia parte do cotidiano deles. A turma da Itália bebia vinho durante o almoço. O brasileiro não bebia nada. A cultura deles era diferente. Via-se que eles vinham mais preparados. Eles tinham médico, tudo mais, e a gente não tinha nada.

E como eram os países da ‘cortina de ferro’?

Antigamente os países da cortina de ferro vinham com os times principais para disputar as Olimpíadas. Eles eram considerados amadores. Tanto é, que se eu não me engano, a Bulgária foi campeã em 1968. O time deles era o principal. A Tchecoslováquia foi com o time principal, a Romênia também. Lá não existia profissionalismo perante a FIFA. Então eles iam com os times principais. Aqui na América do Sul e na Europa os times eram amadores, não podiam ter o contrato de profissional. Não é que nem hoje que pode jogar três jogadores acima de 23 anos e pode ter os registros de profissionais. Antigamente não podia. Por isso que se chama Olimpíada. Não podia. O basquete sempre foi amador aqui no Brasil. Iam sempre os principais jogadores. O Amaury tinha quantos anos quando disputou as Olimpíadas? Mais de 30 anos? Amaury, Rosa Branca, Wlamir Marques, todos esses caras… Só que no futebol não podia.

Nesse momento em que vocês vão aos Jogos, aqui no Brasil está no auge da Ditadura Militar. Isso interferiu de algum modo lá? Havia algum tipo de pressão para a conquista de alguma medalha? Como vocês percebiam esse momento do país?

Não. A gente não tinha noção de nada disso. Tanto que é que fomos no avião da FAB; só o basquete foi separado. Mas não tinha pressão de lado nenhum. O próprio chefe da delegação e o próprio treinador não eram de insistir, “vocês têm que ganhar”, nada disso. A gente não percebia, jogávamos futebol, nem sabia o que era ditadura e o que não era, não tinha nem noção.

Você falou sobre a euforia, o fato de ficado contente de ter sido convocado para a Olimpíada. Em algum momento nutriu o sonho de ir para a Copa de 1970?

Ah, não tinha. Aquilo estava muito longe da gente. Muito longe. O único jogador que achávamos que poderia disputar a Copa do Mundo de 1970 seria o Manoel Maria. Ele tinha mais condições de ir. O resto não tinha. Ele tinha vindo do Santos e estava no auge. Só se falava do Manoel Maria. A gente não tinha nem passado pelo profissional. Como é que a gente ia ser convocado? E naquele tempo não se convocava um jogador que estava aparecendo agora para uma Copa do Mundo. Jamais isso iria acontecer. Não tinha chance nenhuma. E estava pertinho. Dois anos praticamente não era nada. A gente pensava no Manoel Maria, mas o resto não tinha condições.

Arnaldo de Mattos atualmente é comerciante. Foto: Sérgio Settani Giglio.

Como você percebe o futebol olímpico e o futebol da Copa do Mundo?

A diferença é essa que eu falei. Quando treinamos com o profissional, a gente pega mais bagagem, porque são jogadores mais preparados. A preparação do time amador, juvenil, era diferente do time profissional. Totalmente diferente. Quando a gente saiu do juvenil para jogar no time de cima do Corinthians, o professor Teixeira atuava como um preparador físico. O preparador do time juvenil não era um preparador físico. Era daqueles: “dá duas voltas no campo e vamos treinar”. Quando você caía na mão do professor Teixeira, você tinha os exercícios específicos, trabalhava junto, insistia, fazia, era diferente. Isso aí você sente muito. Não tinha como. Quando chegamos ao profissional o que mais sentimos foi a preparação física. O preparador que tinha era da guarda civil. Ele dizia: “vamos subir dez vezes as escadas do Parque São Jorge”. Subia e descia. Não tinha um exame específico, sabe? Quando nós subimos, com o professor Teixeira, já era diferente, tudo certinho. Mas ele era uma pessoa formada. Esse não era. A maioria dos clubes amadores tinha esse tipo de pessoal. Quando chegava ao time de cima, sentia. Sentia por causa disso. A preparação física era totalmente diferente. A Copa do Mundo era essa. Não dava para encarar o pessoal. Esses caras que vinham dos países da cortina de ferro levavam vantagem sobre a gente. Nós fomos para as Olimpíadas e não tínhamos preparador físico, um cara específico para ver que aquele jogador estava com a musculatura de tal jeito. Não tinha nada disso. Só aquecia e coletivo, aquecia e coletivo. Não tinha a estrutura que precisava para ganhar deles.

E como o senhor lidava com a derrota?

Era duro. Só chorava, não tinha o que fazer (risos). De três jogos, perdemos um e empatamos dois. A decepção pra gente foi muito grande.

E depois, no seu dia a dia no clube?

A gente esperava ter uma recepção diferente nos clubes. Foi que nem uma geladeira. Ninguém nem me ligou. Eu senti isso: eles não estavam nem aí, se ia ganhar ou se não ia. O Corinthians nunca deu muita oportunidade para o pessoal de baixo. Na minha época era terrível e era difícil alguém subir. Subia, ficava no aspirantes, não tinha acesso e ia embora para um lado, ia embora para o outro, e acabava parando de jogar por causa disso.

E depois na época da Portuguesa Santista, como era?

Não tinha estrutura. Esses times que eu joguei nenhum tinha estrutura. Nem a Santista, o Corinthinha de Prudente bem menos, o Saad pior ainda. É o que eu falo: não tinha preparação física, não tinha como emergir, crescer. Eu falo para os meus amigos até hoje. Até bem pouco tempo estava jogando futebol de salão com eles. Hoje a gente vê que a bola não encharca, não pega peso. Antigamente, nos times pequenos, você só via bola boa na quinta-feira, dia de coletivo; no resto não tinha, era com bola bexiga. Eu sempre fui um cara que batia muito forte, fiz muito gol de falta, desde o Corinthians. Mas nos times pequenos que eu jogava não dava para bater. A gente treinava coletivo e quando saía falta os caras falavam: “pô, não chuta na barreira”. Hoje não, os caras ficam treinando muito, tem barreira de madeira, hoje facilitou muito.

Logo após voltar da Olimpíada, foi dispensado pelo Corinthians. Como era para conseguir ingressar em outros clubes?

Era dificílimo. Antigamente tinha o passe preso ao clube. Foi quando apareceu esse tal de Afonsinho para tentar arrumar o passe livre. Foi a pior coisa que existiu para quem estava começando. Sabe por quê? Quando você era dispensado com o passe livre, ninguém te queria. Achavam que como tinham te mandado embora do clube, você não servia. O Corinthians teve várias ofertas para me vender. Nunca vendeu e no fim me mandou embora. Aí eu não tinha nem para onde ir. Antigamente não tinha a comunicação que tem hoje. Hoje, se você sair do Corinthians, o cara te envia para Belém do Pará, Manaus. Antigamente você não tinha contato, telefone, não tinha nada. O que ia fazer? Foi gozado. Quando me apresentei no Corinthians, após aparecer na lista de dispensas, tinha um cara que jogava de ponta-direita chamado Marcos. E o tio dele era presidente da Portuguesa Santista. Eu o marcava nos treinos. Ele falou: “Arnaldo, vai para Santos, pois meu tio vai contratar”. E ele já estava lá no Parque São Jorge. Levaram também o Almeida. Nós fomos diretos para a Santista, logo após a dispensa. Acabei ficando na Santista. Só que depois acabou o dinheiro, não se pagava. Eu estava no fim do contrato com a Santista e os caras do Corinthians de Presidente de Prudente vieram ao Parque São Jorge, falaram com o Bijim (que morava na minha vila), disseram que queriam um lateral-esquerdo, e o Bijim me indicou. Fui para Presidente Prudente. Cheguei lá e também não tinha dinheiro. Tive que voltar. Aí fui para São Caetano, pois tinha um amigo que jogava lá. Mas é o que falo: não existia integração. Por exemplo: hoje vocês me acharam? Antigamente achavam ninguém. Não tinha como, não tinha contato. Era muito difícil.

Arnaldo de Mattos durante entrevista para o Ludopédio. Foto: Sérgio Settani Giglio.

O senhor tem alguma frustração em relação ao esporte?

Eu tenho. Eu queria seguir a minha carreira. Eu estava treinando um dia no Corinthians em 1968 e chegou o ponta-direita Bataglia, que já faleceu. Ele veio falar comigo. Teve um jogador do Corinthians chamado Lanzoninho, que jogou no Coritiba. Em 1968, ele veio no Corinthians e queria quatro jogadores: um beque central, um médio volante, um lateral-esquerdo e um ponta-esquerda. O Bataglia falou para ele: “você leva o Menez, que é o beque central, leva o Luis Américo, que é o volante, leva o Arnaldo, que é o lateral, e leva o Nilson na ponta-esquerda”. Ele perguntou: “você vai?”, “Não sei”, “Nós damos cinco milhões de luvas, um apartamento para morar em Curitiba e quinhentos mil cruzeiros por mês”. Eu falei: “Eu vou”. E ele: “Então vou falar com o Wadih Helu”. Sabe o que o Wadih falou? Pode levar os três, mas o Arnaldo não. O cara vem e transmite isso, o que você acha que vai acontecer com você? Você vai ser aproveitado. Aí no fim acontece isso. Por isso que a gente fica frustrado. Pô, não é para menos. Eu estou falando, a gente não tinha base nenhuma. Você escuta essas coisas e no fim é dispensado. Você fica com aquilo na cabeça: o que eu fiz e/ou o que eu não fiz? Alguma coisa errada eu não fiz, pois eu não fazia nada, só treinava. Como é que você vai fazer alguma coisa? Tanto é que hoje eu não torço pelo Corinthians. Por causa dessas coisas, a gente fica magoado. Eu não tenho uma camisa do Corinthians. Em 1967, faltavam quatro rodadas para acabar o campeonato juvenil. Jogou Corinthians e Portuguesa no Parque São Jorge. Eu fiz dois gols de falta, ganhamos de 3 x 0. Invadiram o campo, eu só saí de sunga; levaram camisa, calção, meia, chuteira, levaram tudo. A gente acredita que vai ser aproveitado, que vai ter uma oportunidade, porque na vida precisa ter uma oportunidade. Se eles tivessem me deixado jogar quatro ou cinco jogos e depois falar “não serve”, aí é outra coisa. Agora você não ter oportunidade e ser mandado embora? Eu não podia ser tão perna de pau, pois joguei numa seleção olímpica, joguei numa seleção paulista de novo. Você pega um país desse tamanho aqui e você está entre dezoito pessoas, você não pode ser tão ruim assim. Você tem que ter um mínimo de valor. Para o Corinthians a gente não tinha. Quando eu saí, acabou. Não tinha jeito. Fui para a Portuguesa Santista, fui para Prudente, você começa a rodar, você acaba pensando em parar, vai trabalhar, pois o que vai ser da minha vida? Cada vez ia para um lugar pior. Joguei no Corinthinha de Prudente. Assinei um contrato de seis meses e com dois eu vim embora. Eu morava numa pensão. Num dia, o dono da pensão, Seu Jacó, falou para mim: “Arnaldo, você vai me desculpar, mas vou te pôr para fora”. Perguntei por quê. “Por que o Corinthinha ainda não me pagou nem um dia seu”. Falei: “O senhor está no seu direito”. O que eu fiz? Fui lá pedir para rescindir o contrato, peguei o dinheiro e vim embora. Eu já não recebia. Na fosse posto para fora da pensão, como é que focaria ali? Eu sou de São Paulo. Os caras que moravam lá e eram de lá, é outra coisa. E eu, o que é que ia comer? Em sessenta dias não peguei um tostão na mão. Como não queriam pagar a pensão, vim embora para São Paulo. E você vê: em 1969 eu estava com 23 anos.

Hoje pensando nessa mesma estrutura que você apresentou: estava com o passe, mas tinha que correr atrás. Hoje tem os empresários.

Hoje seria uma beleza. Minha filha estava perguntando para mim outro dia: “O senhor acha que teria condições de jogar?”. Eu acho que teria condições de jogar fora do Brasil, em lugares como Portugal, Ucrânia, seria sossegado jogar nesses lugares. Era só arranjar empresário bom. A gente vê hoje uns caras que não têm nenhuma condição de jogar. Os caras estão em Portugal, na Ucrânia. Eu teria muito mais chances de jogar, bem mais.

Arnaldo, e como foi a sua experiência de excursão na África?

Olha, nós jogamos no Congo, depois fomos para uma cidade chamada Brazzaville, depois para uma cidadezinha que o campo era cercado por ripa, chamada Cotonou, nunca vou esquecer. Empatamos 1 x 1. Nós saímos daqui, passamos pela Itália, aí fomos para a Romênia e empatamos 1 x 1 com a seleção romena, depois fomos para a África. Tudo isso pela seleção paulista de novos. O time era o Getúlio, o Cláudio Deodato, Almeida, Guaci e eu. Jogavam Tião e Moreno, Edu da Portuguesa, China, Benê, Toninho. Os jogos lá eram uma roubalheira. Jogamos em Brazzaville e estávamos ganhando de 2 x 1. Saiu uma falta, o cara chutou, bateu no peito do Guaci e o juiz apitou pênalti. Não queria nem saber. Depois jogamos também na África do Sul. Depois voltamos. Nós ficamos 60 dias viajando na primeira excursão. Mas nem tinha comida: a gente vivia de pão e Coca-Cola. A gente não arriscava comer, tinha medo, não gostava, cheiro diferente da comida, um calor insuportável. Era um calor que você não pode imaginar.

E do ponto de vista de conhecer outras culturas?

A gente não tinha noção de nada. Não íamos a nenhum lugar que chamava a atenção para ver alguma coisa, não tínhamos nenhum tipo de orientação.

Arnaldo de Mattos jogou por clubes do interior de São Paulo. Foto: Sérgio Settani Giglio.

E a experiência de jogar contra jogadores bem desconhecidos?

Eles não sabiam nada, só corriam. Chutavam a bola e iam para cima de todo mundo. Tinha dia que pensava: “não vai dar para ganhar desses caras, porque eles derrubam a gente toda hora”. Eles não sabiam como se planejar no campo, não tinham orientação nenhuma. Tinham muito preparo físico, mas não tinham noção do que era futebol naquele tempo. O nome do empresário que levou a seleção era Elias Zacour.

Nessas experiências pelo Brasil e pelo exterior, você presenciou ou vivenciou alguma situação de preconceito?

Não, nessa época não vi nada disso. Era muito difícil. Inclusive nossos times estavam cheios de gente de cor. Fora, mesmo jogando que nem eu joguei na Romênia, no México, essas coisas, não tinha nada do que a gente escuta falar hoje. Não tinha nada disso. Normalmente, nunca vi.

Mesmo na Olimpíada?

Não, não tinha nada disso. Nem boxe, nem futebol, em nenhum deles em vida nada disso. A gente não escutava nada disso.

Vocês chegaram a acompanhar outros esportes nas Olimpíadas?

Muito pouco. Não tinha comunicação. A gente estava tudo no mesmo andar. Mas não se falava. A gente só se encontrou no avião praticamente. A gente tinha um pouquinho de amizade com os caras do waterpolo, uns caras do Rio, mas com o resto nada. Os caras do boxe, Servílio de Jesus e o outro rapaz, eram incomunicáveis. Eles só andavam os três juntos. Os caras do basquete vieram para bagunçar a vida da gente. Eles também não ganharam nada, foram eliminados logo. Eles foram para bagunçar, pode ter certeza, não foram para ganhar nada. E também não ia dar para ganhar porque tinha o EUA na parada.

Havia um clima político diferente na Olimpíada de 1968 no México. Era possível perceber isso?

Não percebia nada. Você vê: eu mandei uma carta de lá e acho que chegou aqui depois de cinco dias. A gente não via nada daqui, não sabia nada do que estava acontecendo aqui. Não chegava carta para a gente lá, não chegava nada. Totalmente diferente. Hoje a comunicação é fantástica.

Então, vocês namoraram bastante lá? (risos)

Nossa, o que tinha de mulher era brincadeira. Era o que mais tinha. Só tinha isso lá.

Vocês foram com o avião da FAB. Tiveram que esperar toda a deleção brasileira encerrar a participação na Olimpíada para voltar ao Brasil?

Nós fomos desclassificados em 18 de outubro, se eu não me engano, e voltamos 30 de outubro. O passaporte era coletivo. Nós fomos obrigados a ficar lá. Quando íamos voltar, o avião tinha tido um problema no motor. Eu lembro disso: fizemos uma bagunça na concentração, jogamos água em tudo; aí nós fomos ao aeroporto, chegamos lá e o avião não ia levantar voo, só no dia seguinte. Aí o homem falou: “vocês estão dispensados”. Bem, mas nós saímos de lá e paramos em Acapulco para abastecer. Ficamos no hotel em Acapulco. Já foi uma farra danada. No dia seguinte fomos embora. Aí ele anunciou: “dentro de instantes estaremos aterrissando no Aeroporto da Pampulha”. Sabe onde aterrissamos? No Panamá. Nós descemos no aeroporto e os caras todos de metralhadora na mão. Descemos, abasteceu e subimos no avião. “Dentro de instantes estaremos aterrissando no Aeroporto do Rio de Janeiro”. Os caras do Rio: “êeee”. Depois: “Não, no Aeroporto de São Paulo”. Os caras de São Paulo: “êeee”. Descemos em Manaus. Subiu de novo e começou a mesma coisa. “Dentro de instantes estaremos no Rio de Janeiro… São Paulo…”. Acabou em Minas Gerais. Demoramos uns quatro dias para voltar. Aí o Seu João Atala, chefe da delegação, falou: “quem quiser vir comigo de ônibus eu pago a passagem”. Nós viemos uma meia dúzia. Viemos num ônibus da Impala, que era um ônibus de leito. Demoramos seis horas. De avião o que é? 40 minutos. Nós não arriscamos, pois o avião da FAB vinha pingando de lugar em lugar. Um medo danado. Aquelas hélices lá do lado. Pelo amor de Deus. As coisas caindo do avião quando virava. Nossa senhora. Na época, quando é novo, a gente não tem medo de nada. Se fosse hoje eu não iria naquele avião. Naquela época você não olhava para nada, vai achando que nada vai acontecer.

Nesse período de 10 ou 12 após a desclassificação vocês fizeram algo? Tinham dinheiro?

Recebíamos uma diária de quatro dólares. Não dava para nada, pois o dólar na época aqui valia 150 cruzeiros. A gente imaginou que ia poder chegar lá e poder comprar alguma coisa. Só que quando chegamos lá, aumentou tudo por causa das Olimpíadas. E nesse período que ficamos lá 12 dias, ninguém treinava, ninguém fazia nada, ficava todo mundo ocioso. Um saía para um canto, outro para o outro, mas todo mundo duro. Tudo sem dinheiro. Ali nenhum tinha dinheiro. Desses caras que foram comigo, nenhum deles tinha dinheiro. Quatro dólares por dia não dava para nada. A sorte é que tomava café, almoçava e jantava lá. Então você saía para dar uma volta na cidade, não comprava nada e voltava para dormir.

Arnaldo de Mattos atuou nas categorias de base do Corinthians. Foto: Sérgio Settani Giglio.

Arnaldo, e se tivesse a chance de refazer essa trajetória, fazer de novo. Faria a mesma coisa?

Faria tudo diferente (risos). Eu seria um jogador que iria puxar o saco dos diretores. Eu era um cara que achava que o treinador fazia certas coisas que deixava a gente bronqueado. Seria diferente: ia puxar o saco, sairia com diretor. A gente achava que o cara que estava saindo com diretor estava levando vantagem. No fim, quem fez isso, deu certo. O Luiz Carlos começou a jogar comigo no infantil do Corinthians. A gente chegava para treinar e o pai dele estava na arquibancada. O Luiz Carlos era capitão do time e fazia de tudo. Por quê? O pai dele ficava na arquibancada, com os diretores. Ele era um bom jogador, mas o pai dele tinha uma certa convivência com os diretores. Os pais dos outros não tinham. Hoje eu não sei como é que é, mas deve ser a mesma coisa.

E eram vocês mesmos que cuidavam dessa parte de contrato?

É, antigamente ninguém tinha acesso. Você chegava na sala, sentava o presidente, o diretor do departamento de futebol profissional, o tesoureiro e o jogador. Aí começava: “nós te ajudamos, você tem que ajudar…”. Hoje é diferente. Você manda o empresário resolver. Eu fiquei invocado com um amigo meu na Portuguesa Santista porque eu nunca tinha sido profissionalizado. E ele já tinha jogado no Votuporanga como profissional. Chamava Nelson Oliveira, centroavante. Ele jogou com a gente no juvenil, mas como ele era um ano mais velho, ele estourou um ano antes. Ele foi para Votuporanga e voltou para o Corinthians, que o emprestou para a Santista. Chegou lá, estava eu e o Almeida juntos na sala de espera e ele foi lá. Ele saiu da sala. O apelido dele era Jacaré. “Jacaré, como é que foi?”. “Olha, é três milhões de luvas e 600 mil por mês”. Aí entramos os dois na sala do presidente. Ele falou: “Vou oferecer para vocês o que eu ofereci ao Nelson: três milhões de luvas e 600 mil por mês”. Nós assinamos os contratos. Ele tinha fechado cinco milhões de luvas. O que ele falou para nós? Não tínhamos noção nenhuma, nunca tinha assinado um contrato profissional. Aquilo lá, para nós, era um dinheirão. Imaginamos que daquilo iria surgir muito mais. Depois eu falei para ele: “pô Jacaré, você viveu com a gente o tempo todo e deu preferência ajudar ele e não a gente? Se você fala cinco milhões, a gente ia bater nos cinco para pegar”. Essas coisas que o futebol deixa a gente chateado. Os caras falam muito do Rivellino. O Rivellino foi sempre um cara sensacional comigo. Enquanto tive Corinthians, apesar de não jogar, ficava na reserva, concentrava e dormia no mesmo quarto. Uma vez, quando nós subimos, eu ganhava 300 mil cruzeiros. E subiu eu, Almeida e Tião. Eles ganhavam 500 mil. Eu soube e logo pensei: “vou apertar alguém”. Cheguei no Riva: “Riva, precisava de um favor teu”, “O que é?”, “Eles subiram e foram aumentados, eu não fui. Tem condições de você dar uma força para mim?”, “Pode deixar. Na hora que subimos no ônibus, você me avisa e eu vou falar com o Lula, o treinador”. Subimos e ele foi falar com o Lula. No dia seguinte, estava lá o meu aumento. Então, comigo nunca teve problema nenhum. Um cara sensacional. Essas coisas que deixam a gente injuriado no futebol, pois um esconde do outro. E naquele tempo era pior ainda. Você vê: eu nunca tinha assinado um contrato profissional, você chega num lugar, quando seu amigo sai de uma sala, você pergunta a ele, ele fala, o homem faz a melhor proposta, claro que você assinou. Imaginou que ele estava sendo honesto com você. Eu falei para ele: “Pô Jacaré, essa daí foi o fim da picada”. Essas coisas dão bronca na gente e você acaba nem mais falando com o cara. Você fica chateado. E quantas vezes deve ter acontecido isso por aí.

Os clubes acertavam os salários, mas muitas vezes nem sabiam naquele momento se tinham condições de pagar?

Dependia muito da renda. Antigamente, os clubes pequenos viviam de jogar com os grandes. É que nem a Santista. Na minha época, a Santista contratou um monte de jogador. O que acontece? Começou a ir mal e cadê o dinheiro para pagar? A Santista só tem o campo. De onde vai arrecadar? Não tem arrecadação. Antigamente não tinha propaganda em camisa, não tinha propaganda nem letreiro, não tinha nada. Mandava todo mundo embora, não pagava. Você ia à Federação, tinha que brigar, ia ao Sindicato (que estava começando), para pegar o dinheiro deles. Eu fui mandado embora do Santo André em 1971. Eu tive uma contusão e ninguém descobria a contusão. Começou a me dar um puxão na perna direita e eu não conseguia chutar a bola, doía. Então, por exemplo, eu começava a treinar normalmente, tudo bem, mas quando ia jogar e começava a bater na bola, a perna prendia. E eu tinha um contrato com o Santo André e ganhava 450 na carteira e 450 por fora. Aí eu me machuquei, me levaram em curandeiro, me levaram para fazer negócio de macumba, mas não tinha jeito. Fui ao hospital, fizeram uma junta médica e eles queriam me operar a apêndice. Eu falei para o presidente: “Operar a apêndice? Eu não tenho nada. Eu não tenho ânsia de vômito, não tenho disenteria. A única coisa é que eu puxo a perna, mas eu não vou deixar operar”, “Mas assim não pode continuar, você não joga”. Eu falei: “então vamos fazer o seguinte: vocês me levam num doutor do Hospital Dom Pedro e se falar que eu não tenho nada eu rescindo o contrato e tudo bem”. Chegamos lá e o homem veio na ferida. Ele falou: “Arnaldo, deslocamento do osso da bacia. Seis meses inativo. Nós vamos começar a infiltrar hoje”. A agulha era grande. E eu levei junto o secretário do Santo André. No dia seguinte, nós chegamos em Santo André e o secretário falou para o presidente: “Olha presidente, se ele não tiver nada, ele é muito macho. Uma agulha daquele tamanho…”. Era uma agulha daquela por semana. Passou o primeiro mês, no segundo mês o Santo André me mandou embora. Eles pensaram assim: “Vamos mandar embora, aí ele vai entrar na justiça e nós vamos pagar ele sobre os 450 que está registrado”. Eu fui ao Sindicato. Cheguei lá, tinha um advogado chamado Gérson Pasadoni, que tinha jogado no São Paulo. Ele falou: “Você tem como provar que ganhava 900?”. Eu falei: “Os três primeiros meses que recebi é de 900 mil”, “Traz aqui. Eles vão pagar até o fim”. Eles não podem mandar embora, pois enquanto está machucado você não pode exercer a profissão. Entrei na justiça e eles foram obrigados a pagar até o fim. Quando perderam na justiça, eles foram bloqueados, não poderiam jogar no domingo enquanto não me pagassem. Então vieram em casa tentando fazer um acordo. O advogado falou: “Você não faz acordo nenhum, tem que vir todo dinheiro em sua mão”. Eles foram obrigados a pagar direitinho. Como é que eles podem mandar embora se eu estou em tratamento? Os times pequenos viviam disso, de fazer essas coisas com os outros. Mandavam embora, não davam nem satisfação, não queriam pagar nada. O Nabi Abi Chedid, no Bragantino, fazia muito isso. Ninguém queria jogar lá por causa disso. E ele, como tinha muita influência na Federação Paulista de Futebol, não pagava ninguém. É doloroso, os caras têm família. Eles não respeitam ninguém.

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