07.3

Arnaldo de Mattos

A entrevista deste mês é com o ex-jogador Arnaldo de Mattos. Paulistano, criado na famosa Vila Maria Zélia, considerada a primeira vila operária do Brasil, Arnaldo atuou nas categorias de base do Corinthians e em clubes do interior de São Paulo. O ex-jogador e comerciante relembra diversas passagens de sua trajetória futebolística; embora curta, uma carreira marcada por muitas estórias. Entre elas, sua participação como jogador da seleção brasileira nos Jogos Olímpicos de 1968, realizados na Cidade do México.

A entrevista integra o projeto coordenado pela professora Katia Rubio, intitulado Memórias Olímpicas por Atletas Olímpicos. Essa pesquisa tem por objetivo entrevistar os atletas que representaram o Brasil em alguma edição dos Jogos Olímpicos. Boa leitura!

 

Arnaldo de Mattos participou dos Jogos Olímpicos de 1968. Foto: Sérgio Settani Giglio.

 

 

Primeira parte

Arnaldo, conte-nos um pouco sobre sua história de vida…

Eu nasci na Vila Maria Zélia. Em 1947. Essa vila fica no Belenzinho e é muito grande, tem tudo. Hoje não tem mais, mas tinha escola, campo de futebol etc. Eu nasci ali. Nós somos em cinco irmãos, nascemos ali, fomos criados lá. Com dezesseis anos fui para o infantil do Corinthians. Disputei dois campeonatos infantil e fui campeão infantil; depois fui para o juvenil e fui campeão juvenil, depois vice-campeão juvenil e campeão juvenil de novo. Nessa passagem fui convocado para a seleção paulista de novos. Nós excursionamos para a África. E depois fui para as Olimpíadas. Voltei para o Corinthians e fui dispensado. Aí joguei na Portuguesa Santista, depois fui para o Saad, depois para o Santo André, para o Corintinha de Prudente, voltei para o Saad e aí eu parei de jogar bola. Porque era muito difícil. Não tinha acesso, não tinha descenso, ficava limitado, não tinha dinheiro. Começava o campeonato e se ia mal já mandava todo mundo embora, não pagava, era uma coisa horrível. Então, acabei parando de jogar futebol. Casei, tive dois filhos, um moço e uma moça. Meu filho é médico e minha filha é psicóloga. Comecei a trabalhar com vendas. Montei uma loja de perfumaria, depois montei um laticínio, não deu certo, voltei para a perfumaria, continuei vendendo as coisas e estou até hoje trabalhando.

E porque o senhor escolheu o futebol?

Eu gostava muito de bola, era fanático por bola. Ficava batendo bola na parede a tarde inteira. Então, eu adorava futebol. Quando eu fui para o Corinthians, achava que não iria ficar. Fui eu e mais dois rapazes.

O senhor foi sozinho ou alguém levou o senhor lá?

Tinha um senhor na Vila Maria Zélia chamado Bijim. Ele levou eu, um beque central chamado Rafael e um tal de Zinho que era médio volante. Mas só fiquei eu. Então dei sequência, porque eu gostava muito de futebol. Mas depois que você entra no futebol, acaba vendo as coisas, acaba meio que ficando com o pé atrás. É um querendo engolir o outro. É terrível. Futebol é que nem política, é que nem televisão, um querendo engolir o outro, disso ninguém escapa.


E como foi a experiência na Olimpíada? O senhor tinha ideia do que era?

A Olimpíada é um negócio fantástico. A gente não tinha ideia nenhuma. Tanto é que na nossa própria preparação ficamos em Campos do Jordão quase 60 dias, depois fizemos uma excursão para o Norte (Manaus e Belém), depois acabamos indo para o Nordeste, onde machucou um monte de jogador. Tinha um rapaz chamado Guaci, que jogava no Guarani, ele era o titular e acabou sendo dispensado. Eu acabei me machucando. Depois houve quatro cortes. Mas a gente não tinha ideia do que era Olimpíada. Olimpíada é um negócio fantástico. Mas só que o Brasil nos mandou sem estrutura nenhuma. Fomos sem médico, nós lavávamos o calção e a meia. Uma coisa absurda. Pô, nosso time era badalado, nosso time era bom. A estrela do time era o Manoel Maria. No primeiro jogo o Manoel Maria foi expulso. Aí acabou com o nosso time. O Lauro foi machucado, não participou de nenhum jogo. Nós fomos em 18 jogadores e o Lauro era o centroavante. Manoel Maria foi expulso e o Plínio foi obrigado a jogar na ponta-direita. O Ferreti estava mal e não tinha quem jogar. Mas, olha, as Olimpíadas são um negócio fantástico, a gente não tinha ideia de como era. A vila olímpica é fantástica, com tudo o que a gente pode imaginar, tem de tudo, o dia inteiro, dia e noite. Só que eu acho que o no nosso grupo é que estrutura, gente muito nova, a própria orientação não era muito bem feita. Saímos daqui sem médico, o massagista fazia o papel de roupeiro e massagista, e com o treinador só. Não tinha estrutura. A gente lavava calção e meia, para você ver como era.

Para vocês irem às Olimpíadas, vocês ganharam a sul-americana?

No Pré-Olímpico eu não fui. Eles foram para o Pré-Olímpico na Colômbia, foram 22 jogadores, quando voltaram, dispensaram um jogador do Olaria, chamado Alfinete. Sei que eles ficaram com 20 jogadores. Eles iam convocar mais dois jogadores para fazer 22 e depois cortar quatro. Foi aí que eles convocaram o Hamilton, que era do Juventus, e eu. Aí eles cortaram quatro jogadores: Dionísio, que jogava no Flamengo; Major, do Vasco; Sá, do Bonsucesso; Guaci, que era do Guarani, por contusão. Foi aí que eu entrei, eu e o Hamilton. Nós não tínhamos ido ao Pré-Olímpico.

Arnaldo de Mattos relembra passagens de sua trajetória futebolística. Foto: Sérgio Settani Giglio.

E como foi quando você chegou ao México?

É um negócio sensacional. Mas precisa ter estrutura. E a gente via que os outros países tinham estrutura. A gente dormia com nove jogadores num quarto, que era comandado pelo senhor João Atala, chefe da delegação, e os outros nove dormiam num outro quarto com o treinador, chamado Celso Marão.

O senhor estava com quantos anos nessa época?

Vinte e um. E era dividido. Tem coisas que acontecem que a gente nem acredita. O goleiro Raul era um cara fantástico. Ele dormia no quarto do Marão e eu dormia no quarto do Seu João Atala. Teve um dia que acordamos cedo para ir treinar, era 7h30, tomamos café, subimos no ônibus e ele estava ao meu lado. Ele começou a roncar. Eu falei: “Pô Raul, acordamos agora e já está roncando?”. Ele falou: “não, eu não dormi”. Isso foi antes de começarem os Jogos, ainda estávamos treinando. “Como você não dormiu?”. Ele falou: “Eu saí com a turma do basquete”. “Como? E o homem, não viu?”. “Não, o Marão deita às 22h e começa a roncar. Então eu ponho os travesseiros assim, cubro e saio”. Perguntei: “Quem você levou junto?”. “Levei o Getúlio”. Getúlio era o outro goleiro. Getúlio era o titular e Raul era o reserva. Eu falei: “Pô, você ainda vai levar o cara no buraco?” (risos). Na época das Olimpíadas, o xodó do Brasil era o basquete. Tinha Amaury, Rosa Branca, Wlamir Marques… Inclusive, nós fomos de avião da FAB, com toda a delegação. E eles foram num avião particular, da Confederação Brasileira de Basquete. Eles tinham uma mordomia danada. Eles chegaram lá, saíam de noite e não queriam nem saber. E o Raul foi na barca deles. E eu falava para o Raul não levar o Getúlio. Vai levar o principal jogador para o buraco? É o que estou falando para você: não tinha estrutura. Depois que nós perdemos a Olimpíada, Seu João falou para mim: “Arnaldo, seu eu soubesse, eu trazia os caras da primeira divisão, mais maduros”. Você pega uns caras com 21 anos, joga num país como aquele lá, as mulheres ficavam em cima da gente que nem loucas, porque mexicano adora brasileiro, como é você vai segurar? Cada um saía de um lado, não tinha como.

 

Conte um pouco como foi a participação do Brasil…

O primeiro jogo do Brasil foi contra a Espanha. A seleção estava jogando direitinho. Nós tomamos um gol, infelizmente, numa jogada boba do Mané [Manoel Maria]. O Mané foi na linha de fundo, o adversário estava dando pancada nele, o Mané deu biquinho no tornozelo do cara, o juiz viu e expulsou. Ali nós perdemos o jogo. Saímos de lá e fomos jogar em Puebla. Eu sempre fui lateral-esquerdo, não tenho cacoete nenhum para jogar de centroavante, nem nada. Nós estávamos jogando contra o Japão, estava 1 x 0 para o Brasil, aí o Marão gritou: “Arnaldo, aquece. Você vai entrar no lugar do Ferreti”. Pensei: “Ele deve estar brincando, né? Ferreti é o centroavante”. Não tinha mais ninguém para jogar na frente. Ele falou: “Você joga lá na frente e vê se segura”. Nisso, o Japão empatou. Acabei entrando e não fiz nada. Acabou o jogo 1 x 1. Ali mesmo em Puebla jogamos contra a Nigéria. Também fiquei na reserva aquele dia. Virou 3 x 0 para a Nigéria. Ele falou para eu entrar de quarto-zagueiro. Empatamos 3 x 3. Mas como o Japão tinha ganhado da Nigéria e perdido da Espanha, ficou Espanha e Japão. Nós fomos eliminados. Foi um fiasco. Ninguém acreditava que naquela chave – Brasil, Espanha, Japão e Nigéria – o Japão ficaria na nossa frente.

Vocês conversaram sobre as possibilidades?

Não, não tinha isso. Não tinha estrutura, era tudo dividido. Um ia para cá, outro ia para lá, não tinha aquela união de um time de futebol que tinha uma incumbência de disputar uma Olimpíada, de ganhar, não tinha isso. Era o que faltava. Eu acho que a direção precisava fazer isso aí… unir.

Mesmo pensando em termos de experiência de vocês, você disse que quando era mais novo foi para uma excursão na África. Mesmo ali não tinha essa experiência de jogar contra outras equipes?

Não tinha também. Acho que o brasileiro não se preparava para isso. Os restaurantes que a gente almoçava eram aqueles restaurantes coletivos, com almoço de bandeja. Víamos os caras da Espanha sentados, tomando vinho, e brasileiro não tinha. Brasileiro saía para beber cerveja. Eu nunca bebi, mas a maioria do meu grupo bebia. A gente não tinha união, não tinha estrutura. Tem que ter uma estrutura, um médico, talvez um psicólogo, um próprio treinador que agrupasse. Não tinha isso. Não era eu que sentia. Depois, com a experiência de vida, eu vi que era também daquele jeito que eram os outros. A gente não tinha uma união. Hoje, eles vão disputar uma Olimpíada, eles têm que ir com uma incumbência diferente, séria, aí dá para ganhar. Mas do jeito que nós fomos não ganhava nada. Tanto é que nós ganhamos duas medalhas: uma de prata, com o Nelson Prudêncio, e uma de boxe, com o Servílio de Jesus. Eles tinham determinação, a gente via. Eram dois boxers, Servílio e outro rapaz. E tinha o treinador. Eles acordavam cedo; iam os três tomar café; os três saíam para treinar; os três voltavam para almoçar. A rotina deles era essa, a nossa não. Na nossa, acabava o treino e era uma bagunça, cada um para um lado, todo mundo atrás de mulher pra lá, mulher pra cá, aí não tinha jeito, ninguém segurava. Dezoito pessoas, tudo cara novo, de 21 anos, ninguém segura, num país daquele lá. As meninas ficavam atrás dos brasileiros, não só dos jogadores de futebol, mas de todos. Não tinha como segurar.

Arnaldo de Mattos atualmente é comerciante. Foto: Sérgio Settani Giglio.

E quanto te falaram… “você vai para a Olimpíada”! Qual foi a sua sensação?

A minha sensação foi fantástica. Por quê? Eu não esperava. O Almeida, o Tião e o Plínio tinham ido ao Pré-Olímpico. Quando eles voltaram, eles falaram: “Arnaldo, se prepara, porque você vai ser convocado”. Eu não acreditei. Naquele tempo, a Gazeta Esportiva sai no domingo a noite, e eu morava na Vila Maria Zélia, e fui buscar a Gazeta Esportiva às 21h da noite no Largo da Concórdia, primeiro lugar que abria. Foi uma festa, ninguém esperava, fiquei todo contente. Eu pus na cabeça que eu ia e não iria ser cortado. Eu achei que não fui ao Pré-Olímpico porque fiz muita bagunça na viagem à África. Quando fomos convocados, ficamos 60 dias treinando em Campos do Jordão. Falei: “Agora vou treinar e me dedicar. Não quero ser cortado”. Tinha que ter determinação. Muita gente não tinha, também porque não tinha orientação.

O técnico do Pré-Olímpico foi o mesmo da Olimpíada?

Foi. Ele era de Minas Gerais. O mau era esse. Ele não conhecia nenhum jogador daqui. Tanto é que não foi convocado nenhum jogador mineiro. Quem fazia a convocação era o Seu João Atala. Ele convocava todo mundo. Só tinha jogador do Rio de Janeiro e São Paulo; metade do Rio e metade de São Paulo.

Isso é interessante de pensar, Arnaldo. Uma seleção na época com vários jogadores de clubes considerados menores. Algo hoje impensável…

É. Antigamente, você poderia estar jogando na equipe de cima de um clube profissional e você poderia ir para a Olimpíada se não fosse profissional e tivesse a idade. Você não podia estar registrado na Federação. O Getúlio era da Ferroviária e titular. Jogava na Ferroviária e foi para as Olimpíadas. O Hamilton era do Juventus. O Sá era do Bonsucesso. Tudo time pequeno. De vez em quando, não era todo ano, jogava a seleção juvenil do Rio de Janeiro contra a seleção juvenil de São Paulo. Só que o Wadih Helu, que era presidente do Corinthians, às vezes não cedia jogadores. Em 1967 aconteceu um fato curioso. O juvenil do Corinthians foi campeão invicto e saiu a convocação para jogar a partida contra a seleção do Rio de Janeiro. Convocaram dez jogadores do Corinthians, só não convocaram o goleiro. O Wadih Helu não deixou ir, porque em vez do treinador ser do Corinthians, foi o treinador do Palmeiras, que era o Mario Travaglini. Ele não cedeu ninguém. A gente ficava na mão desse tipo de pessoas. Eles faziam o que queriam. Quando você entrava num clube, se você passasse na peneira você levava um contrato para casa que eles chamavam de “contrato de gaveta”. Você assinava e o seu pai assinava. Se você ‘vingasse’, eles preenchiam e davam entrada na Federação. Se você não vingasse, eles rasgavam e jogavam fora.

E você chegou a ser profissional no Corinthians?

No Corinthians não. Joguei dois jogos no profissional, mas não cheguei a ser registrado como profissional. Depois saí do Corinthians e joguei na Portuguesa Santista. Aí já era profissional. Joguei no Corinthinha de Presidente Prudente, depois Saad, Santo André, Saad de novo, aí eu parei de jogar bola. Você não tinha estabilidade, né?

Você soube por que não foi aproveitado no Corinthians?

Até hoje não sei. Joguei quatro anos no time de baixo. Joguei no infantil e três juvenis. Jogamos quatro anos, praticamente quase todos juntos. Quem chegou em 1964, participou até estourar a idade, que estourava com 20 anos. Nós disputamos quatro campeonatos. Dos quatro, nós ganhamos três. Então, o time era bom, né? No fim, quem vingou? Luis Carlos, que jogou, e o Tião. Mandaram o resto embora. Antigamente era muita politicagem. O que o Corinthians perdia de jogador era uma fábula. Em 1967, nós fomos campeões invictos, faltavam quatro rodadas para acabar o campeonato. E antigamente era assim: o diretor do departamento profissional era um cara bem sucedido na vida financeiramente, só que ele não tinha como aparecer; então ele ia ser diretor de algum clube, ficava em evidência. No Corinthians tinha um chamado Chico Mendes, o ‘Chico do Charuto’. Ele tinha muito dinheiro. Na entrega das faixas e medalhas, estava sentado o Wadih Helu, o Seu João Atala, e o Chico Mendes foi entregar a faixa para mim e ele disse: “Presidente, esse aqui é o futuro lateral-esquerdo do Corinthians”. Depois eles me mandam embora sem dar satisfação nenhuma. Hoje perguntam se eu torço, eu falo: “não torço mais”. Não torço mais para o Corinthians, não adianta. Eu era vidrado no Corinthians até chegar lá. Depois você começa a entrar e ver um monte de coisa terrível. Quando fui convocado para a seleção olímpica, isso foi num domingo. Eu fui me apresentar no Corinthians na terça-feira para treinar. O treinador do time de cima do Corinthians chamava-se Oswaldo Brandão. Os caras falam maravilhas desse homem, mas ele detestava gente que vinha de baixo, não gostava de cara novo. Eu só batia com pé esquerdo. Ele me punha de lateral-direito para marcar o Eduardo. O próprio Eduardo falava: “Arnaldo, se eu sair para o lado esquerdo, eu te mato toda hora”. Ele fazia de propósito. Ele me punha de médio volante. Eu não tinha cacoete nenhum. Antigamente, jogava-se com quatro zagueiros, dois no meio e quatro na frente. Desses dois no meio, um jogava no lado direito e outro no lado esquerdo. Ele mandava dar dez voltas depois que acabava o treino. Quando fui convocado, pensei: “vou lá quietinho”. Cheguei lá, quando comecei a me trocar, ele falou: “É, você tem uma sorte danada”. Falei: “Por quê?”. “Eu tô te secando aqui e os caras te convocam para a seleção brasileira”. Antigamente, o exame médico dos clubes era dentário. Ele falou assim: “Você vai ao dentista. Se tiver alguma cárie, você vai ser cortado e vai ver o que é bom”. Eu fui e eu tinha uma cárie. Tinha um dentista no fim da Rua São Jorge, quase na avenida Celso Garcia. Cheguei lá e ele falou que eu tinha uma cárie. Eu falei: “Tenho que arrumar essa cárie, pois vou me apresentar amanhã à seleção e é capaz de seu ser cortado”. “São 14h? Pode voltar às 18h aqui”. Senão, eles me cortavam. Para você ter uma ideia, o exame médico era dentário. Não fazia outra coisa. Só via se os dentes estavam bons e ia embora. Mas o que o Brandão judiava da gente era brincadeira.

Arnaldo de Mattos jogou por clubes do interior de São Paulo. Foto: Sérgio Settani Giglio.

Mas por que ele fazia isso?

Ele gostava de gente de nome. Quando em cheguei em Presidente Prudente, tinha um rapaz que jogava no Corinthians chamado Sabiru. Isso eu não vou esquecer nunca. Isso aí foi em 1969. Em 1967 esse rapaz jogava na Prudentina e o Brandão era treinador do Palmeiras. E eles foram contratar o Sabiru. Ele falou para o Sabiru: “É $20 de luvas, $10 teus e $10 meus”. Ele falou: “Não, não vou dar”. “Então você não virá para o Palmeiras”. Depois, com a convivência, o Sabiru falou: “Se eu soubesse, eu tinha feito”. Porque além de ter ido para o Palmeiras, o Brandão iria ficar na mão dele, iria ter que por para jogar, porque teve o cambalacho. Mas ele ficou em Presidente Prudente. Esse Brandão era terrível. Não sei se alguém falou, mas eu tenho que falar. Outro dia escutei o Edu, ponta-direita do Palmeiras, falando numa entrevista que foi um dos melhores treinadores com quem ele trabalhou. O Edu jogou muito tempo no Palmeiras com ele. Mas ele só queria prejudicar os caras novos. A gente entrava no ônibus. Geralmente o treinador ficava sentado no banco da frente. Aí vai lá para trás. E o apelido dele era caçamba. E ele não gostava que o chamasse de caçamba. Só que chegava lá no fim o Rivellino começava a gritar: “Caçamba, Caçamba”. Pô, vai dizer que ele não sabe que era o Rivellino que estava gritando. Mas se sou eu, ele não deixa nem entrar no ônibus de novo… A segunda vez que joguei no time profissional foi com ele. Um amistoso em Londrina, no Paraná. Ia jogar Corinthians e Londrina. O Corinthians ia ver se trazia o Ado e o Lidú. O Brandão fez uma relação de 18 convocados e disse: “Amanhã, 7h, tem que estar todo mundo no Aeroporto de Congonhas. Quem não estiver de terno e gravata não viaja. Eu fui com o Tales, ele morava no Belém. Chegamos lá, apareceu o Lula, que veio do Náutico Capibaribe, de calça jeans, camisa sport, sem gravata. Entrou no avião, não deu nada. Fomos viajar. Chegamos lá e tomamos um baile do Londrina. Faltavam uns 15 minutos e ele mandou entrar. Estava uns 2 x 0. Não podia fazer milagre. Perdemos de 2 x 0. Voltamos para o hotel. Ele falou: “Nós vamos jantar numa churrascaria e da churrascaria vamos vir para cá. Não vai sair ninguém daqui”. Nós fomos na churrascaria, jantamos, voltamos e duas pessoas sumiram: o Flávio e o Lula. Estava um calor danado. Ficamos na porta: eu, Almeida, Luis Carlos. Era 23h30, quase meia-noite, escutamos um barulho e vem dois caras abraçados, um segurando o outro, Flavio e Lula. Falei: “Agora que o negócio vai pegar”. Sabe o que ele fez? Saiu na porta e disse para eles entrarem. Não deu nada. Mas porque era o Flavio e o Lula. Se fosse eu ou outro, ficávamos lá no Paraná. Quando eu cheguei no Corinthians, eu falava para os meus amigos: “Se eu assinar um no profissional, eu não trabalho nunca mais”. Os caras falam que não se ganhava dinheiro. Ganhava-se sim dinheiro, principalmente time grande, sempre se ganhou dinheiro. Você vem de família pobre, não tem estudo, não tem nada, o que você almeja? Você está infantil, juvenil, pensa: ‘vai dar certo’. No fim, um cara vem e interrompe com essas coisas. Você fica louco da vida. Eu não suportava esse homem. Não só eu, como muita gente, por causa disso. A gente luta, luta e não é assim que se interrompe a carreira dos outros. Mas ele sempre foi assim.

Você não chegou a trabalhar novamente com o Brandão?

Não, nunca. Depois dessa época, parei de jogar entre 1974 e 1975. Ele continuou, mas não saía dos times grandes. Estava sempre no Palmeiras, Corinthians, São Paulo de vez em quando. Os outros times do interior não contratavam. Mas era duro o futebol. Parei de jogar com 26 anos. Eu casei em 1975, tinha 27 anos.

Qual foi o motivo para parar?

Eu parei justamente por causa disso. Na época, não tinha nem acesso, nem descenso. Eu disputava a segunda divisão pelo Saad. Mas não tinha dinheiro. O homem contratava os jogadores, mas se não dava certo mandava embora, porque não tinha nem descenso, nem acesso. Então não corria o dinheiro. O Saad era um time que pagava pouco e dava um bicho bom. Ganhava um pouco, mas era muito limitado. Ninguém punha dinheiro na segunda divisão, pois não tinha mais acesso. Conheci a minha esposa e pensei: “Agora vai ficar assim? Sair daqui e jogar num time lá no fim do mundo, depois volta, não ganhava nada”.

Você se preparou para parar?

Não, conheci minha esposa, ela tinha uma loja de perfumaria na avenida Celso Garcia. No fim, toquei a perfumaria.

E como foi depois de parar?

É duro, parece que a gente morre. É uma vida totalmente diferente. Tem gente que fala que o jogador morre duas vezes. Quando para, morre. É um negócio diferente. Você concentra, você está sempre com outras pessoas, você treina todo dia, é um negócio gostoso. Eu adorava concentrar, pois fica todo mundo junto, está sempre com as amizades, aquele dia a dia de viajar, voltar. Quando isso acaba de uma hora para outra parece que você não tem mais chão. Hoje pode até ser que alguém se prepare, mas naquela época não se preparava não. Outro dia escutei falar que o Jorge estava jogando aí em times de várzea para pegar dinheiro. Porque o cara não tem estrutura. Geralmente, ninguém tem estudo. Eu cheguei a me formar em Química Industrial, um curso técnico. A maioria que conheci não tinha estudo nenhum. Um amigo que jogava comigo no Corinthians hoje também é vendedor, mas de camisas e outras coisas. Se eu não me engano, o Moreno trabalhou na Sabesp. O China parece que estava bem Catanduva. Mas a maioria não tem estrutura. É muito difícil, pois o cara começa a jogar futebol e ele não tem tempo de estudar. Por causa das viagens. Mesmo jogando em times pequenos, vai viajar na terça-feira e joga na quarta, chega em casa na quinta e na sexta-feira já concentra para jogar no domingo. Não tem como estudar.

Arnaldo de Mattos durante entrevista para o Ludopédio. Foto: Sérgio Settani Giglio.

Na época do infantil e juvenil, como era o apoio da sua família?

A minha mãe não queria que eu jogasse futebol. Minha mãe queria que eu estudasse. Meu pai já queria. Minha mãe sempre foi contra. Mas também eu não estudava, tem que gostar de estudar. Eu vejo pelo meu filho. Ele é formado já há 11 anos. Meu filho estuda todo dia. Ele gosta, é diferente, é dele. Sabe o que acontece? A própria cultura, a própria escolaridade da gente foi muito fraca. Antigamente estudava-se até o quarto ano e depois se passava no exame de admissão para ir para o colegial. Era diferente do que é hoje. Hoje tem mais estrutura para estudar. Antigamente não tinha nenhuma. Casei e fui trabalhar. Depois de um ano, nasceu o meu filho. Tinha que só trabalhar. Acho que daquele pessoal ninguém estudou. Se estudou, foi muito pouco. Antigamente não tinha essa abertura. Eu tentei fazer Educação Física, mas depois eu parei. O campo era muito limitado. Antigamente o treinador treinava o goleiro. Não tinha treinador específico para goleiro. O professor Teixeira ficou 20 anos no Corinthians. Como você vai ser preparador físico do Corinthians se tem um cara efetivo que não sai nunca? E quantas pessoas se formam? São milhares de pessoas que se formam. Não tinha campo. Hoje não. Hoje qualquer time tem treinador e auxiliar de treinador. O treinador fazia todas as funções, treinava tudo. Por isso que não fui. Se você pegar um time infantil do Corinthians para treinar, até chegar para treinar o profissional você já morreu, já tem 80 anos. Você não tem abertura. Se o Corinthians mandar o Tite embora hoje, ele vai atrás de um treinador de nome. Não puxa um cara que está lá embaixo. Isso é que precisaria ser feito. O São Paulo foi buscar o Leão e tinha o tal do Sérgio Baresi lá. Os clubes ficam sempre nos mesmos. E naquela época era pior. Só se falava em Brandão, Aymoré Moreira, Zezé Moreira, Lula… sempre os mesmos. Não tinha campo para subir. E precisava tocar a vida de alguma maneira.


Confira a segunda parte da entrevista em 22/08/12.

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