02.16

Basile Boli

Conversa com Boli – (Abidjan, Costa do Marfim, 18 de Março de 2010)

Tinha tirado o dia para actualizar as crónicas e pensava que nada de significativo se ia passar hoje. Mas, em África, está sempre a acontecer qualquer coisa. Ao fim da tarde, deslocámo-nos à zona 4 de Abidjan, a zona industrial, onde, segundo Thomas, um bar ia emitir o Marselha-Benfica e o Sporting-Atlético de Madrid em directo. Temos lutado bastante para acompanhar os jogos das equipas portuguesas no campeonato e nas competições europeias em África, incluindo incursões clandestinas a hotéis de cinco estrelas e ligações desesperantes à emissões pela Internet, mas, ao todo, só pudemos ver quatro ou cinco jogos em directo. Mas Thomas tinha razão e quando chegámos ao bar, já o televisor estava sintonizado no Vélodrome de Marselha. No meio do fumo de charuto que saía da mesa de um grupo de magnatas franceses, alguém me chama a atenção para a presença de um homem robusto, vestido com uma t-shirt preta e com um boné também preto na cabeça. É Basile Boli, ex-jogador do Marselha e da selecção francesa, o defesa-central que deu uma Liga dos Campeões ao Marselha com um golo decisivo e solitário contra o AC Milan. Boli nasceu em Abidjan em 1967 e emigrou para França com nove anos. Foi jogador do Auxerre e do Marselha, onde ganhou a liga francesa e a Liga dos Campeões. Após o escândalo que envolveu o clube do sul de França e o seu presidente Bernard Tapi, em 1994, Boli transferiu-se para o Glasgow Rangers, da Escócia, onde também conquistou o campeonato. Antes de terminar a carreira passou pelo Mónaco e pelo Urawa Red Diamonds, do Japão. Após o golo de Kardec que deu a vitória ao Benfica em Marselha, Boli, triste com o resultado, manteve o fair-play e convidou-nos para conversar num bar mais tranquilo. Estes são alguns excertos de uma conversa bem-humorada.

Boli no banheiro de um bar em Abidjan. Foto: João Henriques.
Boli no banheiro de um bar em Abidjan. Foto: João Henriques.

Hoje foi o Marselha-Benfica. Qual a sua opinião sobre o jogo?

Estou triste porque o Marselha perdeu. O Benfica sempre nos bateu. Lembro-me do jogo da mão de Vata. Acho que o Marselha estava cansado, estão muito dedicados ao Campeonato e o Benfica mereceu ganhar porque jogou muito melhor na segunda parte.

Quais são as suas memórias desse jogo de 1990 que acabou com a mão de Vata?

A minha maior memória é a do Estádio da Luz. Impressionante. Costumo dizer que vi três estádios com um ambiente fora de série: Primeiro, o da Luz, segundo, o Santiago Barnabéu, terceiro, o San Siro. Nesse dia, vi que o Benfica era o maior clube português e que a atmosfera no estádio era arrepiante. Ainda hoje, o nome Benfica traz-me muito más recordações.

O Boli tem uma história muito parecida com a de Drogba. Foi muito novo para França. Porquê?

Fui para França com nove anos mas não fui para jogar futebol, era para ir à escola. Foi um acidente. Viram-me a jogar na rua e levaram-me para o centro de formação do Auxerre, onde prossegui os estudos e comecei a jogar a sério. Apanhei uma geração de grandes valores no Auxerre, em que se destacavam Laurent Blanc, Eric Cantona e o meu irmão Roger. Joguei nove anos no Auxerre, na primeira divisão, e cinco no Marselha. Perdemos a final da Taça dos Campeões Europeus contra o Estrela Vermelha de Belgrado e, dois anos depois, em 1993, conquistámo-la contra o AC Milan. Tive uma carreira de 20 anos na primeira divisão.

Foi-lhe difícil adaptar-se à Europa?

Bem, temos a vantagem de conhecermos a cultura francesa, falamos francês, portanto, torna-se mais fácil a um jovem marfinense chegar a França e adaptar-se. Mas no futebol, é mais complicado, porque há muitos futebolistas e poucos lugares. É por isso que jogadores como Kolo e Yaya, que tiveram a sorte de ter um verdadeiro educador aqui em Abidjan, uma pessoa com bastante conhecimento do futebol profissional como Guillou, chegaram à Europa com mais bases para vingar do que eu ou o Didier Drogba.

Porque escolheu ser internacional francês?

Escolhi a equipa francesa porque, na época, a selecção marfinense não era como hoje, era mais fraca. Mas isso não invalidou que hoje trabalhe com a Federação da Costa do Marfim, reportando a minha experiência para ajudar a equipa do meu país.

Como se sentiu quando marcou o golo decisivo da vitória do Marselha na final da Liga dos Campeões?

É inexplicável. É uma recordação que ficará para sempre na minha cabeça e na memória dos marfinenses porque, na época, todos os marfinenses puxavam pelo Marselha por causa de mim como hoje puxam pelo Chelsea por causa do Drogba.

Vivia fora do país quando o conflito rebentou. Como foi ver, ao longe, o seu país em guerra?

Foi muito difícil porque a Costa do Marfim tinha um passado de paz, todas as etnias se davam bem. Ainda hoje, continua a ser muito triste para nós, porque há uma divisão total do país. Mas, na Europa, as informações são empoladas e dão a sensação que está tudo louco na Costa do Marfim. Vocês vieram cá e puderam ver que não há grandes problemas, excepto uma ligeira tensão no norte do país. Portanto, só espero que as eleições se realizem rapidamente para que o país encontre o seu caminho.

O Boli está a trabalhar na equipa da Federação que está a escolher o treinador para a selecção. pode dizer-nos quais as hipóteses mais fortes para ocupar o cargo?

Temos duas hipóteses: ou um treinador que venha por três meses e que faça só o Mundial ou um treinador que fique dois anos e que oriente a equipa na CAN 2012, no Gabão. Todos os treinadores que querem vir, só querem fazer os três meses para depois se irem embora. Ora, isto é muito injusto para nós porque sentimos que estão a usar-nos. O Mundial é uma montra e é visto por milhões de pessoas pelo que os treinadores têm interesse em lá estar. Porém, nós procuramos um treinador que tenha as mesmas ambições que nós. Claro que sabemos que não podemos ganhar o Mundial, temos Portugal pela frente. Mas espero que possamos bater Portugal.

Phillip Troussier é a hipótese mais forte?

Não. Troussier está excluído.

E Hiddink?

Não posso falar de nomes.

Qual o seu prognóstico para o jogo contra Portugal?

Acho que, actualmente, Portugal está mais forte do que a Costa do Marfim, porque a Costa do Marfim vem de uma CAN catastrófica. Portugal teve dificuldades em qualificar-se, tal como a selecção francesa. Aliás, eu comparo muito a selecção portuguesa com a francesa. Tem bons jogadores que jogam em bons clubes, mas não grandes, grandes, jogadores. Por exemplo, a França tem o Diarra, que joga no Real Madrid, mas não se pode dizer que seja um grande jogador, como era Makalele ou Zidane. O mesmo se passa com Portugal. À excepção de Cristiano Ronaldo, não há jogadores com o nível de Paulo Sousa, Figo ou Rui Costa. A França caiu depois de 2006 com o fim da geração de Zidane e a Portugal aconteceu-lhe o mesmo com o fim da geração de Figo. Em relação ao jogo, acho que Portugal nos pode vencer, mas vamos estar num Mundial e num Mundial pode acontecer qualquer coisa de surpreendente.

O que acha de Carlos Queiroz, seleccionador de Portugal, que também foi seu treinador no Japão?

É um bom homem, um bom pedagogo.

Porque é que os marfinenses não estão optimistas para o Mundial?

Porque temos bons jogadores mas não temos uma boa equipa. O futebol é duro porque é feito por 11 homens, se os 11 não tiverem a mesma vontade não há nada a fazer. E também não temos preparado bem as grandes competições, começamos a trabalhar nelas apenas 10 dias antes do seu começo. Nestes casos, é preciso estudar e antecipar tudo.

Existe um conflito entre os jogadores formados na academia ASEC e os formados no estrangeiro?

Não diria que existe um conflito. Eles jogam todos em grandes clubes e sabem comportar-se. Mas numa equipa há sempre grupos, há jogadores que são amigos e outros que não são amigos. Na selecção da Costa do Marfim também existem esses grupos, os jogadores da academia são muito amigos, mas acho que não há um conflito entre esses ex-jogadores do ASEC e os outros.

Gostava de enviar alguma mensagem para Portugal?

Só um grande abraço para os meus amigos e ex-colegas Paulo Futre e Rui Barros.

*Tiago Carrasco, João Henriques e João Fontes estão rumo à África do Sul no projeto Road to World Cup. Foi mantida a grafia original do português de Portugal.

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Tiago Carrasco

Tiago Carrasco é jornalista e tem 34 anos. Publicou dois livros, centenas de reportagens nos mais prestigiados órgãos de comunicação social portugueses e é autor de dois documentários. Em 2013, ganhou o Prémio Gazeta Multimédia, da Casa de Imprensa, com o projecto "Estrada da Revolução". Com uma carreira iniciada em 2014, tem assinatura em trabalhos exibidos pela TVI e RTP, e impressos pelo Expresso, Sábado, Sol, Record, Notícias Magazine, Maxim e Diário Económico, para além dos alemães Die Welt e FAZ. Em 2010, desceu o continente africano de jipe num projecto que daria origem ao livro "Até lá Abaixo" (na terceira edição) e a um documentário com o mesmo nome. Em 2012, fez a ligação terrestre entre Istambul e Tunes durante a Primavera Árabe, que originou o livro "Estrada da Revolução" e o documentário homónimo. Foi responsável pelos conteúdos do documentário "Brigada Vermelha", sobre a luta de um grupo de adolescentes indianas pelos seus direitos enquanto mulheres. Cobriu importantes eventos internacionais como a guerra civil na Síria, o pós-revolução no Egipto, Líbia e Tunísia, o Mundial de futebol em 2010, a anexação da Crimeia por parte da Rússia, o referendo pela independência da Escócia, o movimento de independência da Catalunha, a crise de refugiados na Europa e a crise económica na Grécia e em Portugal. Muito interessado em desporto, esteve presente no Mundial'2010 e no Euro'2016 e já entrevistou grandes figuras do futebol: Eusébio, Madjer, Paulo Futre, Rivaldo, Deco, Roger Milla, Abedi Pelé, Basile Boli, Ricardo, Abel Xavier, Scolari, Chapuisat, Oscar Cardozo.

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