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Breiller Pires (parte 1)

Equipe Ludopédio 5 de dezembro de 2019

O mineiro Breiller Pires é daquelas figuras que te permitem resgatar o clichê da ‘alma’ hospitaleira do brasileiro. Recebeu nosso convite para a entrevista com muita disposição e nos abriu as portas da redação do El País para uma hora de bate papo que foi muito além das pautas do jornalismo esportivo. Como ele mesmo disse, o “o jornalismo no esporte não se resume ao campo, aos campeonatos e ao que acontece no jogo”. E não é por acaso: Breiller carrega na bagagem reportagens sobre a política da FIFA, escândalos de pedofilia no futebol e o encontro com ex-goleiro Bruno. Boa leitura!

 

O jornalista Breiller Pires durante a entrevista para o Ludopédio.

De onde vem sua relação com o futebol que o levou a se trabalhar com esporte?

A minha relação com futebol acredito que seja como a maioria dos garotos o Brasil, aquele sonho de virar jogador. No meu caso, minha família ainda tem um time de futebol no interior de Minas (Gerais), então, como eu sempre falo, os meus primeiros ídolos não foram Romário, Edmundo, os grandes jogadores da época. Foram meus tios, meu pai jogando.  Esse apego com o futebol me ajudou a desenvolver não só minha paixão, mas a vontade de jogar. Depois tentei categorias de base, e obviamente, não tinha talento suficiente pra virar um profissional.

As pessoas tendem a tirar do jornalista uma suposta imparcialidade que nunca vai existir porque, como qualquer outra pessoa, a gente é apaixonado por futebol e, naturalmente, por um time. A minha relação com meu time mudou de fato depois que me tornei jornalista, mas carrego comigo até hoje, acompanho.

Eu nunca vou tentar vender uma falsa imparcialidade, porque por mais que eu me esforce e use métodos jornalísticos para isso é impossível eu me descontaminar da minha paixão pra fazer uma análise futebolística.

Curioso é que o que mais me encantava (no Guarajá FC, time de várzea da família de Breiller que completa 100 anos em 2020) não era bem o futebol, mas todo o ambiente que o cercava. A gente ia pro campo e ficava ali. Tinha gente jogando baralho em volta, fazendo apostas, várias mulheres frequentavam o campo, continuava sendo um programa de família de interior e talvez um dos poucos programas culturais lá ainda é o futebol de várzea. E pra mim, depois que cresci, um dos momentos mais importantes da minha infância e adolescência foi quando eu estreei pelo time. Lembro exatamente de tudo o que aconteceu quando debutei pelo Guarajá. E tenho ainda minha vaga cativa lá, geralmente no segundo quadro. Eu gosto de jogar no meio-campo.

E o jornalismo nasceu dali ou veio por outro caminho?

Não, quando eu descobri que queria ser jornalista foi algo mais uma vontade de contar histórias, dar notícias. E acho que uma coisa que contribuiu também é que meus pais são gráficos, então desde pequeno eu frequentava gráfica, meu pai trabalhou num jornal e numa editora, então eu tenho um apego pelo papel muito grande. Quando eu cheguei na revista Placar a coisa que eu mais gostava de fazer depois do fechamento era receber a revista, sentir aquele cheiro da impressão. Acho que isso contribuiu para que eu me tornasse jornalista. Mas eu nem gosto do rótulo de jornalista esportivo, porque a partir do momento em que você faz jornalismo você precisa tá preparado pra cobrir diversos assuntos. Até porque o jornalismo no esporte não se resume ao campo, aos campeonatos e ao que acontece no jogo. A gente precisa expandir o olhar, então eu sempre me preparei e sempre quis ser jornalista pra cobrir o que viesse. Trabalhar com futebol foi um caminho natural para conciliar essas duas coisas que eu gosto.

Qual foi seu ponto de partida da carreira?  

Na época da faculdade, eu comecei com um blog (RolaBlog), como um hobby mesmo, mas me ajudou muito a treinar escrita, o olhar sobre outras coisas além do futebol. Os blogs eram diferentes, não havia blog patrocinado, conteúdo customizado, era uma coisa bem pessoal. Tinha algo que a gente chamava de blogosfera, em que todos comentavam num dos outros e linkava uma comunidade que discutia futebol. Eu sempre vi um blog como algo incomparável a sites e portais, era sempre com um olhar muito próprio e particular da realidade e da pessoa que faz.

Você sentiu uma diferença editorial da Placar nos últimos anos da revista?

A Placar teve várias fases. Teve o auge sob o comando do Juca Kfouri em que investia muito em pautas investigativas, como a máfia da loteria esportiva que repercutiu bastante e depois nos anos 1990 ela teve uma nova virada, uma fase “futebol, sexo e rock ‘n’ roll”, numa pegada jovem. Ela sempre esteve em mutação e num processo de tentativa de sobrevivência num mercado que é muito difícil. E eu cheguei em 2010 na Placar numa fase em que ela comemorava empatar custos. Nessa época a gente conseguiu produzir bastante coisa legal, essa veia história da placar (investigativa) se destacou por isso. Já em 2015, com a Abril numa crise profunda, ela resolve passar alguns títulos para a editora Caras, e a Placar tava nesse meio. Na primeira reunião, o CEO da Caras disse pra gente que queria contar o lado bonito do futebol, ele queria falar que a CBF era o Brasil que dá certo, resgatar o amor do brasileiro pela seleção… no fim da contas ele queria fazer uma revista chapa branca. Os integrantes daquela redação se recusaram a fazer parte desse projeto e aí todo mundo pediu pra sair da Placar. Eu saí com muita tristeza, cresci lendo a revista, até de certa forma aprendi a ler com a Placar, fez parte da infância. Eu sabia que uma hora iria deixar a revista, mas não queria que fosse dessa forma, vendo ela perder o que sempre foi sua essência: a postura combativa, crítica, o olhar contestador.

Alguma chance da gente ter uma Revista Panenka aqui? Por que a gente não consegue ter algo assim em um país que tem uma cultura de futebol tão forte?

É muito difícil e a gente tinha essa dificuldade na Placar de falar e contar o futebol que é algo muito dinâmico. Então, se você faz uma matéria sobre um jogador, pode ser que na semana seguinte ele já esteja negociado ou mesmo lesionado fora de campo por muito tempo..é bem complicado tratar o futebol com o olhar até literário. As pessoas não tem esse tempo e o jornalismo muito menos. Tem o tempo do futebol que é muito rápido. O tempo da notícia e o tempo da história que você precisa de anos, décadas que você precisa olhar para o que aconteceu e medir a verdadeira importância. Eu lembro do gol do Basílio do Corinthians em 77 e no ano seguinte o gol do Rondinelli quebrando um jejum do Flamengo e que significou muito para a geração de ouro do Flamengo desabrochar. As pessoas na época sabiam, a Placar noticiou na época, mas não conseguiam mensuram naquela momento o tamanho da importância. Mas quando a gente olha pra trás e vê o que aquele gol significou para o Corinthians, sustentação para a democracia corinthiana, e, para o Flamengo, significou o desabrochar do Zico, a gente dá o verdadeiro peso. E no jornalismo a gente não consegue isso. E essas revistas que tentam olhar para o futebol de um jeito menos temporal e factual, correm esse risco de contar uma história que quando a revista sair já é diferente, não existe mais. E aí é preciso, primeiro, quebrar uma cultura de um país que lê pouco e deu um país que se interessa muito pouco pela sua história. E o futebol entra nisso. Você pega as novas gerações de torcedores, poucos conhecem a história do clube, sabem como ele foi fundado, sabem os valores que ele representava e que muitas deixam de representar – até mesmo pra cobrar os dirigentes. Você vê o Corinthians se aliar com movimentos conservadores, com uma faceta fascista…você precisa questionar porque o grande ativo do clube que foi aquele momento da democracia corinthiana está sendo desrespeitado. Muitos clubes por não conhecer a própria história acabam a desrespeitando. Enfim, não é só a crise do impresso. Sempre vai ter gente disposta a ler. É uma crise de público, de pessoas que não se interessam em se aprofundar sobre o futebol e que não se interessam pela história.

Como você pensa, no próprio exercício do trabalho, levando em consideração a agilidade das notícias? Como é a sua produção jornalística, de contar uma história e saber que dali a 10 minutos a pessoa vai receber uma outra notícia? O que você vislumbra sobre isto?

Eu acho que nós, jornalistas, não podemos nos pautar pelos interesses das pessoas que é pueril. Na mesmo hora em que um assunto desperta o interesse daqui a pouco ele já não tem mais nenhuma atenção. Até o caso do Flamengo mesmo, do incêndio no Ninho do Urubu que matou 10 crianças, naquele momento foi uma comoção enorme. Hashtag de força Flamengo e hoje, muitos meses depois, quase ninguém lembra mais. O Flamengo gasta 50 milhões em uma contratação e ao mesmo tempo não acertou a indenização com as famílias das vítimas. Então, a gente tende a esquecer muito rápido as coisas e o jornalismo comete essa falha de não acompanhar as histórias. Um grande compromisso que eu tenho, por mais que a rotina muitas vezes nos consuma e que possamos ficar perdido neste emaranhado de acontecimentos, até mesmo porque o Brasil e não só o futebol brasileiro é uma sucessão de tragédias, de acontecimentos inesperados. Isto faz com que as coisas sejam rapidamente esquecidas. Então, eu tento debruçar meu olhar – eu tenho que cobrir o factual – mas estabeleço esse compromisso de acompanhar algumas histórias, de ter até mesmo como uma causa de lutar por um futebol melhor, lutar pela proteção do direito de crianças e adolescentes que estão inseridos neste meio, de lutar por mais igualdade de homens e mulheres, de lutar contra o racismo que no futebol tem praticamente uma licença poética para acontecer nos estádios. A gente vê isto com muita clareza. As pessoas costumam dizer que no Brasil o racismo é velado. Essas pessoas não frequentam um estádio de futebol. Porque o racismo ali é explícito o tempo todo. Xingam o jogador de macaco, jogadores também se ofendem com este tipo de insulto racista. O futebol ajuda a explicar muita coisa e explicar para um público que talvez não tivesse muito interesse em discutir, em olhar para estes temas se fosse tratado como política, economia. Então eu assumo o compromisso de tentar fazer um jornalismo que leva em conta o contexto e não fique preso a esta rotina de jogos e campeonatos.

Como tem sido para você, nos tempos atuais de polarização, de manter o compromisso com estas pautas?

Eu nunca omiti meu time de futebol nem meu posicionamento político. Sempre falei abertamente sobre isto. A gente precisa fazer com que estas coisas sejam naturalizadas. A gente precisa entender que as pessoas têm um lado. Que as pessoas tiveram um tipo de formação e que esta formação vai interferir em sua visão de mundo.

Eu tenho plena consciência disto, que a minha orientação política e a minha visão sobre a sociedade, de onde eu cresci, interfere de alguma forma no meu trabalho.

E isto não quer dizer que “ah, eu sou parcial”, mas quero que as pessoas saibam também que eu tenho um posicionamento, que eu tenho um time de futebol e isto não inviabiliza o meu trabalho. Eu tenho visto que as pessoas têm sido cada vez menos abertas ao diálogo, a entender estes posicionamentos e, principalmente, a entender posicionamentos que divergem deste governo e da sua orientação ideológica. E este é um governo que diz não ter, mas todos os atos desde o primeiro dia demonstrou ter um lado bem claro. Eu acho que é preciso que o jornalista também ajude a tornar isso mais presente. Não pode ser um tabu você ter um time de futebol. Não pode ser um tabu discutir sobre política. E acho que por muito tempo a gente contribuiu para fazer isto, o jornalista é uma figura imparcial. A gente precisa tentar olhar com isenção para as coisas e a partir disto, com métodos jornalísticos, trazer uma visão da realidade que não seja apenas o que a gente acha. Mas trazendo vários lados. Este é o nosso papel. Eu discuto a imparcialidade também porque há um mito dentro do jornalismo de que você precisa ser imparcial a qualquer custo e ser neutro. Mas como você é neutro, imparcial num caso como o da Vale, por exemplo? Em que a empresa por negligência matou várias pessoas, destruiu um ecossistema do qual muitas outras pessoas dependem. E você vai chegar e dar a visão da empresa e a versão dos moradores. E ao fazer isto em nome da parcialidade você está tomando um lado. Você está tomando o lado de quem foi negligente. De quem cometeu um crime. Então, é preciso que o jornalista também tenha essa visão de que acontece um fato e, volto a citar a tragédia no Ninho do Urubu. Por mais que as responsabilidades estejam sendo apuradas, o Flamengo tinha responsabilidade por aqueles garotos. Então, a gente não precisava de uma apuração para dizer que o Flamengo tinha que se responsabilizar e reparar o dano feito para as famílias daqueles garotos. É um momento difícil para o jornalismo em que o jornalista tem sido visto como inimigo da nação. O governo vende isto o tempo inteiro que a imprensa é inimiga. A gente precisa não só se posicionar, mas seguir com um olhar crítico porque se você tem um jornalismo chapa branca que aceita todas as coisas e principalmente de governos você não cumpre o seu papel. Então, mesmo sendo um momento difícil, de perseguição, há muitos jornalistas que resistem. Precisamos resistir a qualquer tipo de onda, seja de direita ou de esquerda para não cair em extremismos e seguir fazendo nosso trabalho.

Pensando no jornalismo esportivo até que ponto esta discussão sobre neutralidade/parcialidade pode levar a uma discussão de que o futebol não é espaço de política. De que não se pode fazer uma leitura política do futebol? E que há apenas o lugar para a piada, a brincadeira e o factual.

Esta é uma coisa histórica que o jornalismo esportivo sempre foi negligenciado e visto de uma maneira muito pejorativa. Antes quem caía na editoria de Esportes era uma pessoa que estava começando, que não tinha muito traquejo com a profissão. Esta pessoa ia fazer Esporte porque era vista como uma coisa menor. O Esporte não tinha muita importância. E essa visão foi se cristalizando, mas aos poucos, até com o aumento da notoriedade do esporte no país e as pessoas passando a enxergar que o esporte não se limita ao que acontece dentro de quadra ou dentro dos campos, o próprio jornalista passou a dar mais valor para a cobertura esportiva. E este valor vem justamente desta capacidade de enxergar o esporte além das quatro linhas. Enxergar as relações do esporte com a economia, com a sociedade, com a cultura, com a política. E estas relações estão presentes a todo momento. Você pode ir a um campo de futebol e quero apenas curtir um jogo de futebol, me alienar, mas aí você tem uma manifestação homofóbica no estádio. Você tem uma pessoa reivindicando direitos trabalhistas e isto já aconteceu no Brasil. Você tem da Democracia Corinthiana que o estádio era um espaço seguro para protestar contra a Ditadura. Talvez um dos poucos lugares seguros em que aqueles jogadores tinham o respaldo como ídolos para questionar o regime militar. A nossa história foi ensinando que o papel do jornalista não se limita ao campo, ao clubismo, a análise se um jogador é bom ou se um técnico deve cair. Amadurecemos bastante, crescemos bastante, mas o pública ainda precisa entender que é papel do jornalista falar de outras coisas que não seja o esporte. A gente não pode se alienar. E o jornalista que acha que esporte não tem nada a ver com política ou que não se deve fazer este tipo de associação precisa fazer outra coisa porque está na profissão errada.

Você cobriu Copa, Jogos Olímpicos, Champions, Libertadores. Você cobriu grandes eventos esportivos. Você cobriu para além do campo. Quais foram os seus maiores desafios? Você tem alguma história que exemplifique como é fazer um jornalismo investigativo dentro destas grandes competições e instituições esportivas?

Sempre foi um sonho para mim estar em uma Copa do Mundo, cobrir um grande evento, ver de perto isto. Eu digo isto sem hesitar de forma alguma que cobrir este tipo de evento me motivou muito menos do que fazer pautas que eu acredito, sobre histórias que eu acho que precisam ser contadas. Eu tive uma recompensa pessoal muito maior do que cobrir Copa do Mundo, Olimpíada, Champions ou qualquer tipo de megaevento fazendo matérias que produzam um resultado para a sociedade, que possa gerar alguma mudança. Uma delas foi a investigação sobre abusos sexuais no futebol que é um tema tabu. Foi uma investigação muito difícil de fazer e que eu precisei estudar para saber como lidar com traumas de vítimas e familiares. E depois de mais de um ano apurando sobre isto a satisfação não só de publicar, mas de saber que aquela matéria ajudou a responsabilizar dirigentes, treinadores que haviam abusado de crianças utilizando este sonho do futebol, mas também contribuiu para gerar repercussões na política, gerar projetos de Lei que ainda tramitam. É uma pequena contribuição social, mas eu falo que se a gente como jornalista não tiver aquela velha utopia que o nosso trabalho pode mudar a esquina de casa, que pode mudar a vida de um clube pequeno ou até a vida de uma pessoa que sonha ser jogador a gente perde a nossa essência. Que é a grande motivação do nosso trabalho que é gerar mudanças na sociedade. Muitas vezes a cobertura de grandes eventos não tem nada de glamuroso. É um trabalho árduo, o tempo inteiro acompanhando times, deslocamentos, mas ali tem pouca notícia. A grande notícia está fora dos estádios, está fora dos grandes eventos. E num país tão desigual como o nosso, se apenas cobrirmos jogos, campeonatos, o jornalismo negligência, talvez, a sua maior matéria-prima que é a sociedade. Contar porque a gente tem um país tão desigual e porque esta desigualdade se reflete no futebol. Este é um dos compromissos e eu lembro que um dos momentos mais gratificantes da profissão é quando me mandaram um texto de uma apostila da oitava série de Londrina, de uma escola pública, que usaram um texto meu sobre racismo no futebol. E aquilo ali me deixou feliz. Eu trabalho para isto. Para levar este tipo de discussão a pessoas que talvez não sejam do futebol e contribuir até de alguma forma com a educação. Então, isso me gerou uma satisfação muito maior do que cobrir uma final de Copa do Mundo.

Confira a segunda parte no dia 19 de dezembro!

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