07.10

Carmen Rial (parte 2)

Equipe Ludopédio 28 de novembro de 2012

Professora do Departamento de Antropologia e do PPGAS da UFSC, onde coordena o Núcleo de Antropologia Audiovisual e Estudos da Imagem (Navi) e o Grupo de Antropologia Urbana e Marítima, Carmen Silvia Rial tem trabalhado com a temática do esporte desde os anos 90. Publicou inúmeros artigos que abordaram, principalmente, a circulação transnacional de jogadores de futebol brasileiros no sistema futebolístico mundial. Nessas pesquisas, a antropóloga analisou as trajetórias profissionais, projetos, valores e estilo de vida de jogadores de futebol que emigraram para diferentes países e “clubes globais”. Ao longo de sua trajetória, porém, pesquisou diversos temas, entre eles: história da antropologia, turismo, antropologia visual, alimentação, comunidades pesqueiras e meio-ambiente.

Confira abaixo a segunda parte da entrevista com Carmen Rial, realizada logo após o II Simpósio de Futebol: migrações, mídias e sociabilidades.

Boa leitura!

 

Carmen Rial pesquisou o estilo de vida de jogadores de futebol que emigraram para diferentes países e “clubes globais”. Foto: Enrico Spaggiari.

 

Segunda parte

 

Carmen, você comentou que ficou 10 dias no Uruguai. Qual o mapeamento hoje da imigração de jogadores? Você teria um mapeamento atualizado dessa circulação?

Não se tem números exatos. Calcula-se que sejam uns cinco mil jogadores brasileiros atuando no exterior – mas podem ser mais. No geral, acho que damos uma visibilidade enorme à imigração dos brasileiros para a Europa e, no entanto, a maior parte dos jogadores brasileiros não se dirige para a Europa, fica na América do Sul. Até 2009, o Paraguai liderava na América Latina, com 176 transferências, depois vinha a Bolívia com 119, o México com 118 e depois o Uruguai com 97. É muito? É, mas no exterior e aqui é dado um grande valor para a emigração de jogadores brasileiros. No entanto, estava olhando recentemente, parece que na Europa, neste ano, há 114 jogadores brasileiros em equipes da primeira divisão – o mesmo número de jogadores argentinos. Então, se formos comparar com o total da população, percentualmente a Argentina está na frente. Não sei o Uruguai, mas pelo tamanho demográfico do país, ele também tem uma percentagem muito grande de jogadores atuando na Europa. Claro que o fato de ser o Brasil o país que mais jogadores tem na Liga dos Campeões deste ano – e não pela primeira vez -, de serem brasileiros os que mais gols marcaram, é eloquente. Mas isto precisaria ser revalorizado na análise desse fluxo; Argentina e Uruguai são países que exportam mais do que o Brasil, ainda que lideremos em números absolutos. No Uruguai, os brasileiros estão em vários dos grandes clubes, e nem todos vieram diretamente do Brasil. Encontrei um atacante, por exemplo, que estava emprestado pelo Palermo para o Peñarol. (Seu contrato estava terminando e ele e a esposa, italiana, não sabiam se retornariam para a Itália ou viriam para o Brasil – vieram para cá). Há vários brasileiros também em divisões inferiores – encontrei três brasileiros do Defensor (clube que foi o campeão no Clausura em 2012 – assisti a final), que tinham sido trazidos por uma dupla de empresários, um uruguaio e o outro um brasileiro. Estavam ali, morando em uma casa alugada pelos empresários, treinando entre os reservas do Defensor porque os empresários consideravam o Uruguai uma melhor vitrine para a Europa. Me disseram que o Uruguai está sendo muito observado pelos europeus, por causa da sua participação na última Copa do Mundo, mas também porque os grandes clubes se preocupam com a adaptação dos jogadores na Europa, num sentido amplo, que inclui do clima à disciplina. E os jogadores vindos do Uruguai são tidos como mais adaptáveis do que os brasileiros.

Nesta conta de cinco mil jogadores no exterior não estão as mulheres, e são muitas. Pegue a seleção da Guiné Equatorial: tem nove jogadoras brasileiras, a maioria vem de um clube que nunca tinha ouvido falar, São Francisco do Conde. E Guiné Equatorial, que é um país pequeníssimo, sem uma população numericamente grande, que vive do petróleo, foi a equipe campeã africana, da CAF, ganhou da Nigéria em 2008 e 2012. A Marta Saavedra, que pesquisa o futebol na África, com quem conversei recentemente em Berkeley, foi quem me chamou atenção para isto.

Se os jogadores que temos fora do Brasil voltassem, teríamos outra série A do Campeonato Brasileiro, e outra série B. Teria uma incrível movimentação interna…

É verdade… Mas eles estão sempre circulando. É um grupo para o qual se aplica a categoria de mobilidade – um deslocamento por um tempo e o retorno ao lugar de partida ou outro. Não são os únicos, claro. Os professores em pós-doutorado no exterior, os estudantes nos seus sanduíches, os trabalhadores em plataformas de petróleo, enfim, os trabalhadores em geral que tem um contrato temporário. E são cada vez mais numerosos estes contratos por um tempo pequeno, a duração do campeonato, e vai ficar cada vez menor, a medida que a lógica do neoliberalismo avança e vai substituindo a segurança de trabalhos a longo termo. Estou passando uma visão pessoal, e sei que parece dramática. Mas não encontrei esta consciência entre os jogadores implicados. Este retorno anunciado ao Brasil, para muitos dos jogadores que encontrei no Uruguai ao final do campeonato, é também a oportunidade de tirar uma férias, de rever e conviver com os familiares, de reformar uma casa, de construir um banheiro, em fazer um “bico” lado a lado com um amigo de infância. O que para mim aparece como um momento de instabilidade, de insegurança sobre os rumos futuros, está previsto neste trabalho sazonal – não sei se estou indo muito longe, mas trabalhando também com pescadores, e penso que há algo em comum neste sazonalidade do trabalho, e os benefícios do trabalho como um prêmio, uma conquista, uma aventura que faz o cotidiano do entressafra aparecer como uma zona de conforto bem-vinda, um descanso. Sim, se pensarmos estritamente nesta dinâmica de um ponto de vista econômico, o Brasil é um ponto de permanente retorno para encerrar a carreira, mas também como uma forma de voltar à vitrine. Os empresários estão sempre fazendo eles irem e retornarem. Talvez nem tanto as celebridades, mas os Kaká Noir que agora estão me interessando mais de perto, certamente. Temos que ver esse movimento não exatamente como tendo um momento aqui e outro lá, mas constituído por essa circulação. E tentar entender o que está implicado nesta mobilidade, para além apenas da eficacidade do capital de lidar com mercadorias/força de trabalho com maior flexibilidade, que também encontramos lá. E aí penso que se pode sair da antropologia/sociologia, ao encontro de autores como Simmel ou o Jankélévitch que podem ser bons guias, mas também a literatura. Há muito subjetivamente implicado, que não capturamos focando exclusivamente na lógica da eficacidade do mercado, esta parada como vitrine, os controles dos agentes etc.

Carmen Rial, durante uma de suas viagens internacionais. Foto: Arquivo pessoal.

Podemos falar que houve um significativo aumento de empregos no futebol brasileiro desde a década de 1990…

Exato! E em lugares improváveis. Quando eu estive na Índia, um dos diplomatas brasileiros do consulado em Mumbai me disse estar surpreso que existissem brasileiros trabalhando lá por períodos superiores a 3, 4 meses, que é o tempo que os técnicos brasileiros que passam tecnologia ficam. Fui no consulado porque o presidente da Federação de Futebol, com quem tinha falado no dia anterior, me dissera que os contratos dos jogadores eram assinados na presença de diplomatas brasileiros, com um ar de grande honestidade. Bem, isto não era assim, como o diplomata me esclareceu com um “ah, estes indianos, inventam…”. Surpreende a existência de brasileiros trabalhando no Índia, um lugar que tem um dos salários mínimos mais baixos do mundo e nenhum imigrante não-especializado. Então, sim, houve uma ampliação do mercado para os brasileiros. Que corresponde à expansão dos modos de recrutamento característico da segunda globalização do futebol, a partir dos anos 1970, com o que se chama de sul-global passando a lugar de grande recrutamento para o norte. Penso nos centros de treinamento nos países africanos, que fornecem jogadores para os países, muitos deles, suas ex-metrópoles – ainda que a África do Sul tenha se tornado um destino possível para os jogadores africanos. Também aí temos uma ampliação do mercado, e o acesso de sujeitos subalternos ao norte, ultrapassando fronteiras que não conseguiriam de outro modo. É ampliação de mercado, mas, de novo, mais do que isto.

O Ministério de Relações Exteriores parece ter se dado conta do quanto estes jogadores significam para a imagem do Brasil no exterior. Há uns quatro ou cinco anos criou um setor apenas que gerencia o esporte – aliás, comandado com muita eficiência pela ministra Vera Cintia Alvarez. Os jogadores brasileiros foram finalmente reconhecidos como “embaixadores” do país no exterior. Agora estão cuidando bem de perto disso e ela tem feito um trabalho interessantíssimo, com dificuldade, de apoio ao futebol praticado por mulheres no Brasil, buscando ganhos feministas trazendo para treinar aqui jovens palestinas, etc.

É isso que falastes. São vagas abertas, e para pessoas que no Brasil ganhariam metade do salário do que ganham lá fora, e que talvez não conseguissem trabalho no futebol, pois há um limite do que o mercado pode absorver. Embora a grande maioria não receba nenhuma fortuna lá fora, estão ganhando. E são pessoas que fazem com que o Brasil apareça cotidianamente na imprensa em dezenas de países no mundo, e apareça de uma forma positiva. Porque geralmente esses jogadores têm uma imagem muito positiva – há exceções (risos). Chame-se de capital-étnico ou de outro modo, mas o rótulo de brasileiro lhe dá um respeito que antecede a presença física – isto é fama, literalmente. O fato de existirem, sei lá, quinze ou vinte jogadores na Índia é super importante. Eles são ídolos. Claro, não é o principal esporte, está muito atrás do críquete. Mas eles são ídolos entre os que gostam de futebol – e dada a forte globalização, o futebol está crescendo também lá. Se afirmam como brasileiros, são vistos como brasileiros. E isso em outros lugares também. Porque essa é uma característica deste grupo, eles fazem questão de permanecerem brasileiros. Eu não quero soar nacionalista (risos), não é isso (pessoalmente talvez até preferisse que fossem mais cosmopolitas), mas é apenas apontar uma ideia de pertencimento que muitas vezes fica ausente das crônicas dos jornalistas, e que é cobrada pelos torcedores de modo injustificado, pois vi entre os jogadores de modo muito forte, é muito presente. Eles são muito nacionalistas. Tem esse sentido de pertencimento. E isso faz com que, digamos, o protagonismo do Brasil, que está crescendo globalmente em termos econômicos, políticos, acadêmicos, tenha um contraponto em termos futebolísticos que até antecede esta maior presença mundial de outros campos. Isso é que eu acho interessante. Falamos na colonização do Brasil, eurocentrismo, etc., mas não nos damos conta de quanto o Brasil tem colonizado o imaginário de uma população planetária com o futebol – uma população hegemonicamente masculina, é verdade. Não nos damos conta do que significa um jovem lá no interior da Tunísia usar a camiseta do Ronaldo, ou ter exposto num café pôster de jogadores da seleção brasileira. Como eu vi, fotografei. Essa propagação do Brasil é positiva, porque nós estamos “colonizando” sem guerra, nem armas; nós estamos globalizando uma coisa lúdica, e até artística, ligada a um gosto que não nasceu aqui, veio do Norte, mas que está hoje mais associado ao Brasil do que a terra dos seus inventores. É o Sul-global invertendo a dominação – e não me venham dizer que está é uma dimensão que conta menos, porque consumir futebol como se consome no mundo todo, durante muitas horas por dia, é algo de grande significância na imaginação de milhões, bilhões. Claro, não sou ingênua para não colocar a questão de quem lucra com isto. E aí, não há comparação. Os clubes brasileiros continuam ilustres desconhecidos em boa parte da Ásia, o grande mercado em expansão para o futebol, dominado pelo futebol da Premier Legue. O Brasil também já não está mais a frente da FIFA, o grande organismo transnacional. Temos a força-de-trabalho, mas ainda uma parte muito pequena do capital, para falar claramente. Só que o impacto simbólico desta é imenso. Demorou para que o governo brasileiro tenha se dado conta da importância que tem o futebol como propagador de um ideal de país. Se certas empresas vão lucrar com isso, bom, isto não retira a importância. O que eu estou discutindo, o que eu estou querendo que tenha mais visibilidade é essa colonização do imaginário dos jovens homens no mundo todo, e que eu acho que é bastante positiva, porque é a maneira como o futebol brasileiro é visto no mundo, de forma muito positiva. Durante muitos anos ele foi a segunda seleção no coração das pessoas. Isso vi em vários países – claro, também porque o Brasil vencia (risos).

Você comentou sobre como a circulação transnacional dos jogadores, o “rodar”, permitiu enfrentar categorias como fronteira, identidade, nacionalismo, e também permite trabalhar pensando algumas dimensões mais amplas, tais como política e economia. Partindo do “rodar” e das questões econômicas, até que ponto podemos pensar os jogadores dentro de uma análise mercadológica? Até que ponto podemos falar: ‘eles são mercadorias!’?

Ah, é engraçado isso, e muito difícil. Existe hegemonicamente no Brasil a ideia de que a Lei Pelé (que é uma versão local da Lei Bosman) foi uma coisa positiva, que permitiu aos jogadores terem autonomia na sua vida, que os libertaram de uma situação quase que escravocrata etc. Ao mesmo tempo em que ela deu uma certa autonomia para o jogador, traz aquela velha questão do Marx: liberdade significa o quê? Liberdade também é distância, alienação dos meios de produção. No caso do jogador, existem milhares deles que tem subcontratos e que ao final do contrato não levam nada, estão “livres”. É a maioria. Então, a Lei Pelé libertou sim os clubes desse compromisso que antes existia por causa do passe. Isso, por outro lado, claro, incrementou, numa lógica neo-liberal, essa circulação. Então se perdeu certos valores que existiam no futebol de pertencimento clubístico, de uma certa relação com aquele clube que formou, mas isso não tem sido muito abordado. Parece que estamos querendo trazer de volta um ‘passado feudal’, quando na verdade o que está se propondo – o que deveria se propor! – seria algo mais utópico, do futebol tentar – nisso que eu acho que ele serve também como um laboratório de práticas sociais – equacionar outras regras, que não sejam só essa da compra e da venda da mercadoria. Os clubes perderam o poder e quem ganhou? Os agentes, os empresários. Agora, do ponto de vista dos jogadores, eles não se sentem mercadorias. Falo como alguém que conversou com os jogadores. Eles também não se sentem peões na mão dos agentes. Claro que há graus; se encontra jogadores como vários anos em grandes clubes no exterior, como já encontrei, que me dizem: “Não, eu contrato um advogado quando eu preciso”. Quer dizer, esse era, digamos, um caso extremo de alguém que era capaz, inclusive, de contratar um advogado espanhol, sem nenhuma dificuldade. Eles pessoalmente não se sentem manipulados, muitos se sentem ajudados. Agora, eu vi momentos em que de fato eu os senti absolutamente vigiados. Um jogador com quem estive na Holanda seria outro exemplo extremo do que pode vir a ser o jogador de futebol; de ter alguém que mora na sua casa e todos os dias manda um relatório para três empresários que estão em outro país da Europa, e que são os que detém os direitos sob esse jogador; manda vídeos e fotos diariamente. Esse jogador, para mim, está sendo tratado realmente como mercadoria, que precisa ser vigiada. Ele pode sair daqui, ser levado para lá – agora ele está na Rússia – de acordo com a vontade do empresário. Mas ele não vai se sentir assim, está olhando para outros lados, para o fato de aos três anos ter que vender temperos na rua para ajudar a família e agora ter um carro, uma casa super-confortável, o filho na escola aprendendo outra língua. Diferentes agentes sociais, que em diferentes posições têm diferentes visões. É uma questão bastante difícil e deveríamos estar pensando mais a respeito dela. E não comprando muito facilmente esse discurso da autonomia, da liberdade, que a academia critica em relação ao neoliberalismo econômico, mas não suficientemente no futebol, onde parece existir um consenso em torno do futebol-empresa (felizmente, não entre os antropólogos).

Bem, mas esse não foi o foco da minha pesquisa. A única coisa que eu procurei mostrar também em termos de economia é que se supervaloriza essas vendas dos jogadores; elas estão na primeira página dos jornais. Mas, em termos de economia brasileira, estas transferências para o exterior têm um impacto muito pequeno. Na época em que escrevi o artigo Rodar, fiz uma análise do que estava sendo vendido – muitos produtos agrícolas que o país exporta, da soja ao café e a laranja, trazem mais divisas do que jogadores de futebol. Até aparelhos odontológicos traziam quase tantas divisas quanto a exportação de jogadores de futebol! Ora, quem é que sabe que o Brasil vende milhões em aparelhos odontológicos? Ninguém tem a mínima ideia. Então há um super-dimensionamento dessa venda de jogadores. Tudo bem, foi mais de um bilhão do ano 2000 até agora. As vendas trouxeram mais de um bilhão de reais para o país, mas tem que ver o peso disto em relação as nossas outras exportações, e é incomparável. Em termos de emigração, aí sim podemos pensar em um impacto significativo. O Brasil hoje é o segundo país da América Latina em recebimento de remessas do exterior, perde só para o México. Eu estou certa que os jogadores de futebol contribuem com uma parcela bastante significativa, principalmente essas celebridades que estão na Europa. Mas não temos a contabilidade de quanto entra desses jogadores ou de outros. É difícil ter essa contabilidade, pois no Brasil esses dados são obscuros. Não sabemos quase nada sobre esses fluxos migratórios e até recentemente sabíamos menos até sobre a vida desses emigrantes no exterior. Agora já existem mais pesquisas etnográficas, até para um redimensionamento do campo de pesquisa da academia, e das agências financiadoras, que têm permitido essas pesquisas no exterior com emigrantes brasileiros. Então, aumentou um pouco esses estudos, mas até pouco tempo isso era bastante obscuro.

Carmen Rial trabalha com a temática do esporte desde os anos 90. Foto: Enrico Spaggiari.

Carmen, nos estudos sobre futebol, o futebol praticado por mulheres é uma temática que sempre gera muito debate nos congressos. Olhamos muito para o futebol praticado por mulheres tendo como o espelho o futebol praticado por homens, sendo que não fazemos o mesmo quando vamos pensar outros esportes. Naturalizamos muito mais a ideia de vôlei masculino e vôlei feminino do que no futebol?

É, já existe uma certa igualdade, já conseguimos ver os dois vôleis, se fala sim em vôlei masculino. No futebol não tem adjetivo no masculino, ele é futebol e ponto. Ao passo que o praticado por mulheres aparece com o adjetivo feminino. Mas, olha, a história oficial desse futebol “feminino”– escrevi um artigo sobre isso – é muito recente, começa em 1979. Até 1979 existia uma proibição; as mulheres não podiam praticar futebol. O que não significa que não jogassem. O Luiz Carlos Rigo mostrou que jogavam até no interior do Rio Grande do Sul, em Pelotas; historiadores também, para São Paulo e Rio de Janeiro. Mas é significativo que tenha sido justamente no ano da anistia política, quando os refugiados políticos puderam finalmente retornar ao Brasil, que as mulheres tenham ganho anistia em termos de futebol no Brasil. Na Europa também é muito recente. No início, aqui no Brasil – como disse, tenho uma orientanda, a Caroline, que está estudando a equipe Radar e esse momento inicial -, era consenso que deveria haver regras especiais que “protegessem” a mulher. Então, o campo deveria ser menor; as mulheres deveriam ter proteções corporais; enfim, o que é uma bobagem, porque agora vemos que nada disso é necessário. Mas o que eu quero dizer é o seguinte: não é só no futebol que isso acontece. Em todos os campos profissionais em que a mulher ingressou isso ocorreu da mesma forma. Tenho participado de uma pesquisa de história da antropologia fazendo filmes sobre antropólogas. Recentemente fiz um sobre o povoado onde estudou a Margareth Mead. Na biografia da Mead, consta que ela estudou no Barnard College, que era ligado a Columbia University, mas só para mulheres. Na França a mesma coisa. Simone de Beauvoir não estudou no Collège de France, onde estava o Sartre – ainda que tenha se saído quase tão bem no concurso para professor, sendo mais jovem. Existiu, até pouco tempo atrás, todo um raciocínio de que as mulheres não eram apropriadas para uma carreira como engenharia, porque elas teriam que ir lidar com trabalhadores manuais; mulheres não poderiam dirigir caminhões, hoje existem muitas. “Ah não, mas teria que ser uma coisa especial”. Então, não é só o futebol, existem vários outros segmentos profissionais estes mitos de diferença e o sexismo continua forte, mesmo na academia – basta entrar em um sala de aula da Engenharia. Agora, o futebol é especial, ninguém se identifica como brasileiro através da engenharia, ou através da oficina mecânica; mas o futebol é expressa uma identidade nacional. Então, há uma dupla rejeição; a mulher, proibida de jogar futebol, proibida de discutir, de estar nesse mundo, é rejeitada como mulher e como cidadã brasileira, porque ela não tem essa plena identidade que o futebol acaba conferindo. E não estou dizendo que os homens sejam os culpados – são vítimas também. Ser homem no Brasil é entender de futebol. É difícil se considerar alguém plenamente homem se não tiver uma certa compreensão, mesmo que não pratique. Ora, nem todo homem se interessa por futebol, e com isto fica socialmente deslocado, pois a masculinidade hegemônica prescreve esta inclusão. No caso das mulheres, não são alguns casos, são todas, e vejo uma dupla exclusão – da prática e do pertencimento nacional que a acompanha – , que é mais grave. Agora, há colegas que ainda pensam que o futebol tem que ser especial para mulheres, que é preciso mantê-las separadas, pois competindo junto com os homens elas não vão ter chance. Olha, ‘elas não vão ter chance’ era o raciocínio também do pessoal que achava que mulheres não deviam ingressar na engenharia, pois mesmo que passassem no vestibular elas ‘não teriam chance’; não poderiam ser mecânicas, afinal, como é que elas vão concorrer com caras que são mais fortes, que vão ficar sujos de óleo, não é coisa para mulher! Esse raciocínio existe em outras profissões e foi aos poucos sendo colocado por terra. Ele agora está no futebol. Acho que o esporte é uma das últimas fronteiras a serem conquistadas, e tem a ver com o corpo, então por isso é muito importante. Quando leio um Pitt-Rivers escrevendo sobre a tourada espanhola com metáfora de uma violação sexual, o toureiro no papel do homem e o touro do da mulher, o sangue como sangue menstrual, a espada…bem, como disse um antropólogo que etnografou as touradas, ele nunca falou com nenhum toureiro na Andaluzia! Soa muito bonito, mas é um mito antropológico, orientado por um olhar que não percebe dinâmica nas relações de gênero. Claro que tem seu vice-versa; existem práticas esportivas, ou lúdicas, mas físicas, motoras, que eram consideradas femininas; por exemplo, um homem que dançasse balé, era visto como afeminado. Então, acho que isso aí está mudando. Agora, acho que o futebol (e o esporte em geral) é essa última fronteira a ser vencida. A ideia é essa, de no futuro ter como utopia a não-fronteira de sexo em qualquer esporte, que seja praticado por homens e por mulheres, os melhores vão praticar e ganhar. É claro que existem homens altos e baixos, fortes, e fracos, mulheres altas e baixas, fortes e fracas. É provável e possível, e ninguém discorda que homens, em média, são mais fortes e mais altos, mas isso é a média! E isso pode ser menos significativo do que se imagina. Estamos vendo estatísticas; o Barcelona é a equipe mais baixa da Europa entre todos os 500 clubes que atuam nas primeiras divisões. Então, há outras questões que podem estar em jogo… Agora, achar que futebol é coisa para homem porque há algo inato no homem, uma agressividade e uma competividade que o futebol requer, me faz pensar na Gayle Rubin quando diz que se a agressividade é inata então só há duas saídas feministas: ou se extermina o sexo agressivo ou se faz um programa eugênico para a transformação do inato….

Poderia se conjecturar uma liga? Uma liga unificada?

É uma proposta, Enrico! (risos). Seria o ideal. Não existe nada proibido, acho, teria que conferir a legislação. Então, porque não? Na Espanha tem uma menina que joga num clube da segunda divisão. Mas isso ainda é assim um pouco cômico. Embora lá o futebol praticado por mulheres já tenha uma cobertura da mídia, isso ainda é visto com um olhar de curiosidade, de algo que seja exótico, que é também a maneira como se praticava antes da proibição, antes dos anos 1940. Muitas vezes se fazia jogos, e eles eram vistos como o momento em que as mulheres vão se dar tapas, vão se puxar o cabelo, porque elas “não tem um controle das suas emoções”, como os homens têm. Então, essa é uma divisão que vem lá do Hipócrates, a gente sabe disso: a mulher é quente, o homem é frio; a mulher é corpo, o homem é mente; e que continua pela Idade Média, e chega até aqui. Não estamos libertos desta classificação. Os estudos de gênero/sexualidade tem procurado caminhar numa outra direção. Na sua primeira fase, estes estudos acentuavam a diferença. Hoje superamos isso, não achamos que se deva preconizar uma escrita feminina, por exemplo. Devemos preconizar uma igualdade na formação, e que joguem os melhores, sejam homens ou mulheres, pouco importa. A gente sabe que a supremacia física não é a determinante em todas as posições. O Neymar está aí para mostrar isso. Tantos jogadores, como o Zico e o Messi, mostram que nem todo mundo precisa ter um corpão de zagueiro. E talvez até existam mulheres muito fortes que possam ser zagueiros. Acho que não é pela questão física. Esses discursos se constroem utilizando a questão física como um álibi, mas as razões, sabemos, são outras. Como foram outras na segregação racial. Vamos ver, o tempo dirá. Mas vai precisar de tempo.

Carmen, você tem orientado diversas pesquisas no Departamento de Antropologia da UFSC. Qual a avaliação que você faz dessa produção?

No geral, eu acho excelente (risos). O Simpósio que organizamos aqui na UFSC revela isso. A ideia sempre foi pesquisar diretamente com os protagonistas do futebol. O Matias Gódio, que agora leciona na Argentina, pesquisou os dirigentes de futebol no doutorado, com dois clubes argentinos, trabalhou com a noção de elite. O Fernando Gonçalves Bitencourt, que tem uma formação mais filosófica, poderia ter feito uma tese teórica, mas eu insisti para que ele fizesse uma etnografia, e ele foi lá para o Atlético Paranaense, e ficou lá um tempo longo, e fez uma excelente etnografia sobre o corpo e a maneira como esse corpo é formatado por laboratórios no clube. O Maycon de Melo defendeu recentemente uma dissertação utilizando a ideia de performance no contato e entrevistas dos jogadores com os jornalistas. Como é que se dá essa performance nesse contato? Ele tem uns vídeos, junto com o Matias, no Avaí. Um, inclusive, sobre as jogadoras de futebol do Avaí, “Deixe-me Ir”. Agora tenho duas orientandas que, já falei, estão pesquisando o futebol praticado por mulheres. A Caroline Soares de Almeida pesquisa o Radar, o primeiro clube com projeção nacional e internacional. Ela vem da História, então achamos que seria legal ela trabalhar com alguma coisa que tivesse a ver também com pesquisa de arquivos; ela trabalha também com as jogadoras diretamente, mas tem uma parte de pesquisa em arquivos. Já a Mariane Pisani foi para o oeste do Paraná pesquisar as “poderosas” da Foz do Iguaçu, como diz. Tem a tese de doutorado em andamento do Luciano Jahnecka, que também é sobre jogadores e mobilidade, mais especificamente sobre jogadores infames, jogadores de clubes no interior, especialmente em Pelotas, e que agora terá um desdobramento na Europa, com jogadores que atuam nas segunda, terceira…divisões do futebol – o Martin Curi encontrou na Alemanha jogadores brasileiros na 4ª ou 5ª divisões!. Nós tivemos também em termos de esporte, mas não necessariamente futebol, a tese de doutorado do Wagner Camargo, que foi sobre esses grandes eventos LGBTTT, Gay Games e World Gay Games, out-games. O trabalho foi muito interessante, inclusive para o campo de gênero mesmo, e deu visibilidade para um tipo de megaevento que eu, particularmente, nem sabia que existia, eventos como esses dois que contam com cerca de 12 mil participantes, o mesmo número que tem nas Olimpíadas. Há o doutorado que estou co-orientando da Viviane Silveira, sobre tecnologias e androginia, novas possibilidades de corpos e sexualidades. E o mestrado já concluído da Ana A. de Souza, sobre mulheres surfistas em Florianópolis. Ah, tem o Eduardo Araripe, que co-oriento em Recife, e que tem um trabalho interessante sobre as alianças entre as torcidas organizadas no Brasil. É basicamente isso. Então, é nossa contribuição para um campo que cresceu bastante no Brasil e que passou a ter um outro recorte – e isso é muito importante -, pois passou a fazer etnografias. É um grupo que tem uma boa parte dele que se interessou por futebol, e que tem relação também com o grupo do Alexandre Vaz, professor da Educação, e o pessoal da Educação Física, com o Giovani Pires. Então, é nossa contribuição para um campo que cresceu bastante no Brasil, como mostram os GTs na ANPOCS, na ABA, na RAM. Aqui tentamos colocar acento nas etnografias.

Carmen Rial é Professora do Departamento de Antropologia e do PPGAS da UFSC, onde coordena o Núcleo de Antropologia Audiovisual e Estudos da Imagem (Navi) e o Grupo de Antropologia Urbana e MarítimaFoto: site do NAVI/UFSFC.

E desde as primeiras pesquisas sobre identidade nacional, passando por pesquisas sobre torcidas nos anos 90, até hoje, quais temas que você acha que ainda precisam ser abordados?

Empresários… eu acho fantástico que este tema seja explorado, numa antropologia que “olhe para o alto”. Porque esta segunda globalização trouxe para o futebol novos agentes sociais. As marcas, os patrocínios, a relação com a mídia… é espantoso como está crescendo a notícia/publicidade. Antes, era só a marca na camiseta que o jogador estava usando que aparecia, depois passou a ser também o banner com as marcas atrás durante as entrevistas, e agora os jornalistas parecem só ter acesso aos jogadores em ocasiões patrocinadas. Os treinos na Europa estão cada vez mais fechados. Sobra entregas de carros para os jogadores do Real Madrid, do Barcelona, com vídeos mostrando suas reações, encontro entre Kaká e Federer, raquete enviada de presente para o Gerard Piqué – olha, poderia ficar horas aqui. Isto é bem recente e não vimos ainda as consequências todas desta intervenção do campo econômico no jornalístico e deste no futebolístico. Quando tem um Dunga que diz não a este jogo, é posto na rua pela Globo/CBF. O Simpósio aqui, na verdade, mostrou alguns temas que realmente merecem sim mais abordagens. O futebol praticado por mulheres agricultoras, por exemplo; são dezenas de equipes pelo interior do país. Eu não sabia que existia. Existem objetos que são visíveis e estudados, existem objetos que são invisíveis e estudados, e existem objetos que são invisíveis e que não são estudados. Esse seria um desses últimos. É um objeto que eu desconhecia, mas que agora está começando a ser estudado. Um outro que precisaria ser estudado é o futebol indígena. Converso com os meus colegas etnólogos e sempre pergunto sobre isso: “Os indígenas não jogam futebol?”; e eles, “Jogam sim”. Alguns me contam que eles viajam, às vezes, muitos quilômetros para poderem assistir um jogo, ou ouvirem pelo rádio uma partida de futebol. Mas fica nisto. Agora que está começando, tem um ou outro trabalho. Incentivei muito o Maycon a escrever sobre isto quando esteve em Manaus acompanhando o Peladão, e ele fez um ensaio cinematográfico. A Barbara Arisi (UNILA) também escreveu algo. Tem um campo de futebol no centro de aldeias indígenas no Xingu, em várias deles! Só que o futebol pouco aparece nos estudos sobre grupos indígenas no Brasil. Então, isso aí é invisibilizado.

Torcida, como dissestes, já foi bastante (e bem) explorado, mas ainda há o que se ver. A categoria ‘torcedor’ tem que ser revista, porque uma outra coisa é vestir uma camisa, outra ser torcedor – penso escrever algo sobre isto para o livro que o Luiz Henrique de Toledo esta organizando. Tem outro significado vestir uma camisa do Barcelona, do Chelsea; pode inclusive estar falando de classe social, não? De possuir uma camisa oficial, que custa caro, fala de uma distinção social e menos de amor ao clube. A pessoa pode ter uma coleção de camisas – são torcedores/as?. Essas coisas precisariam ser um pouco mais vistas. O Toledo aliás tem um ensaio muito bonito sobre o futebol e as camisetas, de sua infância até hoje. E o Gastaldo está com um megaprojeto de etnografar as torcidas no Brasil durante a Copa. Claro que a proximidade da Copa do Mundo e das Olimpíadas traz à tona estudos sobre o impacto urbano, mas estes penso estão sendo realizados. Particularmente, estou tentando agora pensar em termos de futebóis nacionais. Quer dizer, não como reveladores de características culturais particulares (na linha do DaMatta e do Archetti), mas como contextos glocais (glocal no sentido do Robertson, de um local atravessado pelo global), que redefinem o sistema futebolístico global. Nos Estados-Unidos escrevi um artigo sobre a Major League Soccer apresentado na reunião da AAA (American Anthropological Association) em que procuro ver a imigração de jogadores brasileiros para cá e o quanto este fluxo é afetado pelo contexto norte-americano. Outro tema que andei explorando e deve sair na revista Vibrant em dezembro é a ascensão do neo-Pentacostalismo no futebol brasileiro. O que faz todo o sentido como uma religião mais consoante com as demandas do sistema futebolístico na segunda globalização. São os temas que acho importante serem explorados no momento.

Gostaria que você falasse um pouco sobre o contato e a influência da produção sul-americana nos trabalhos realizados realizados aqui em Santa Catarina e no Sul, de forma geral. O contato com a Argentina, por exemplo. Existe um intercâmbio, existe um contato forte mesmo, desde os trabalhos do Archetti, agora com o Pablo Alabarces…?

Não sei se este diálogo é com Santa Catarina, ou com o Rio Grande do Sul, acho que é mais nacional. Acho que o Archetti está no início disso. O diálogo que ele tem com o Roberto DaMatta, principalmente. Embora ele estivesse lá na Noruega, foi precursor desse diálogo entre o que se faz no Brasil e o que se faz na Argentina. Seus objetos, as preocupações, as questões sobre estilo de jogo, identidade nacional, masculinidade…a maneira como eles encaram o futebol naquele momento; DaMatta e Archetti são comparáveis. Acho que cada vez mais esse diálogo tende a se incrementar com o Pablo Alabarces, com o Matias Godio, com outros pesquisadores – Verónica Moreira etc.- que participam da RAM, um espaço onde esse diálogo acontece. E da RBA. Na verdade, me orgulho de ter organizado na RBA, de Brasília, o primeiro GT de futebol. Acho que em termos de congresso o grupo começa naquele ano, e dali continuou em todas as reuniões, como a ANPOCS. No II Simpósio de Futebol tivemos um pesquisador que veio da Argentina, o Daniel Bernardo Sazbón. Tem havido esse diálogo, mas não diria que é maior no sul, acho que é nacional – no sul, há um diálogo forte com a França, com a Inglaterra, com a Alemanha… enfim. Agora, acho os argentinos muito interessantes, porque em geral eles têm um olhar mais politizado do que o nosso. A tradição do marxismo na Antropologia na Argentina é muito forte. Não que no Brasil não exista, e de algum modo a recuperação do Bourdieu em estudos de futebol poderia ser alinhada nesta vertente, ainda que ele seja mais weberiano do que marxista, mas temos outras referências também. Então, essa politização do pensar o futebol eu acho que é muito importante. E entre os objetos a ver, voltando a outra pergunta, seria muito interessante a ser abordado também o estádio de futebol, enquanto espaço mesmo. Um espaço que tem diferentes utilizações dependendo do momento. Quando você falou na Argentina, eu comecei a pensar também nessa politização, e na forma como esses estádios já foram usados também como campos de concentração. Não fizemos muito esse tipo de estudo no Brasil, até porque eles não tiveram esse papel aqui, tal como no estádio nacional de Santiago, ou mesmo na Argentina. Eu acho que é um diálogo que vai crescer, não só com a Argentina, mas com vários países da América Latina. Agora, nós estamos começando a ter um diálogo muito forte com a antropologia mexicana. O Edison Gastaldo e a Simoni Guedes estiveram lá recentemente com um grupo de pesquisadores mexicanos, tivemos um encontro de antropólogos brasileiros e mexicanos no Ciesas [Centro de Investigaciones y Estudios Superiores en Antropología Social], organizado pelo Gustavo L. Ribeiro, e Simoni e eu estávamos, então está se incrementando.

A antropologia brasileira passa por um momento de grande ampliação de fronteiras, e o futebol é um dos campos em que a gente tem uma reflexão avançada em relação às outras antropologias, e isso eu acho que é bom. Vamos a congressos na Austrália ou na Índia, e as falas sobre esporte, sobre futebol são bem recebidas. Eles ficam fascinados, porque não é um campo que esteja tão desenvolvido assim em outras antropologias. Mesmo na França. Tem mais pesquisas na antropologia brasileira sobre futebol do que na antropologia francesa. Não consigo pensar em outro país no mundo. A Inglaterra e a Alemanha são muito fortes nos estudos sobre esporte, mas é mais na sociologia. Tenho encontrado com colegas estrangeiros em vários congressos. Em 2010 teve um em Lisboa, o Marcos Alvito também estava lá e outro em Copenhagen. Nossa perspectiva tem sido interdisciplinar. Em um momento inicial usamos muito as teorias sociológicas inglesas do Nobert Elias, Eric Dunning, depois tivemos um diálogo muito forte com a antropologia francesa. Com a Espanha também temos tido contatos promissores. Esse cosmopolitismo é característico da Antropologia brasileira, em geral, e isso nos dá um plus em relação a essas antropologias nacionais, que ficam mais entre si, uma conversa entre os seus, e dialogam menos com as antropologias em outras línguas.

 

ll Simpósito de Futebol. Foto: Divulgação.

Como que você avalia o “II Simpósio de Futebol”, esse espaço de debate, em comparação com a organização do primeiro GT na RBA de 2000?

Pois é, na reunião em Brasília, em 2000, organizei um GT que era para discutir futebol e imagem – eu acho que chamava assim – junto com o José Sérgio Leite Lopes, e aí veio a Simoni Guedes, e mais uma meia-dúzia de colegas, e dali em diante continuamos a nos encontrar em todas as reuniões da RBA, depois também na ANPOCS. O GT da RBA era um espaço mais para antropólogos, a ANPOCS é um espaço para antropólogos, sociólogos e cientistas políticos. Já o Simpósio é um espaço mais interdisciplinar, e o futebol é um objeto interdisciplinar, então participam também historiadores, pesquisadores da área da geografia, da educação física, da literatura… está aberto. Eu acho interessante que exista também um fórum assim mais interdisciplinar. Senti um crescimento muito grande entre o primeiro e o segundo simpósio. E não é só aqui, há reuniões em São Paulo, em Niterói. O terceiro Simpósio já não vai poder se numa sala só. Fiz questão que fosse uma sala só, pois achava que era mais legal, com as pessoas podendo debater. É mais legal, mas também ficou uma maratona. No próximo, teremos que fazer mesas simultâneas.

Ou mais um dia…

Mas três dias é pesado! Então, eu acho que está crescendo, está se estabelecendo como um espaço. Florianópolis é um lugar que as pessoas gostam de vir, é um lugar que tem tradição de eventos. Eu acho que tem tudo para se tornar também um espaço de diálogo sobre futebol, que inclua os argentinos, por exemplo; dessa vez veio gente de vários lugares do Brasil. Veio gente de Maringá, que não tinha vindo no primeiro encontro; Pelotas já tinha, mas aumentou; Distrito Federal, Minas Gerais, e até de Pernambuco. Houve um alargamento dessas fronteiras, e deu para perceber, nesse Simpósio, que não são mais pesquisadores individuais que vem. São também grupos de pesquisa. Tanto é que o Luciano Jahnecka teve a ideia de criar uma rede desses grupos. Isso mostra um dinamismo. Claro que os Megaeventos previstos para o Brasil acelerou, mas não só isso: acho que é um campo que teve seus fundadores, DaMatta, Leite Lopes, e já está mais consolidado agora.

Por fim, sobre a Copa do Mudo, em dois aspectos. Você tem acompanhado os preparativos? Se sim, quais são as percepções iniciais, como será o evento, qual será o legado? E outra questão: qual seria uma agenda de pesquisa para nós, antropólogos e pesquisadores das ciências humanas, nesses próximos dois anos e após a Copa?

Boas perguntas. Eu não estou estudando a Copa do Mundo – tomara que muita gente esteja -, mas é impossível não estar atenta, até porque a Copa é central aqui no Brasil, tem uma centralidade impressionante. Não era assim quando eu estava na França na Copa de 1998. A imprensa não estava nem aí para a Copa do Mundo, e menos ainda para a seleção da França – o cenário do principal programa de TV, da TF1, tinha um enorme boneco do Ronaldo, nenhum de jogador francês; o principal jornal esportivo, L’Equipe, ridicularizava a seleção nacional. Não houve discussões nos anos anteriores, não houve nada. Só no mês da Copa se pendurava bandeirinhas de todos os países nas ruas em Paris, onde estava. Então, foi uma Copa que aconteceu numa certa invisibilidade em relação à população em geral. O que não é o caso do Brasil. Qualquer chofer de táxi que a gente pega no Brasil sabe que vai ter uma Copa, e tem comentários e críticas. Mas eu fico contente de ter uma Copa no Brasil. Eu sei que tem mil críticas, e mil questões, e eu acho que é muito interessante as questões que a Copa está trazendo, inclusive essa, da relação entre um organismo transnacional, que é a FIFA, e o Estado brasileiro, questões de fronteira, de territorialidade, de soberania. Então, como eu digo, é um laboratório! A FIFA exige a liberação da entrada sem visto de dezenas de pessoas – integrantes de delegações, funcionários, etc. Quer dizer, para estas pessoas, a fronteira nacional – que atualmente são os balcões de aeroportos – não vai existir, eles terão livre-trânsito. Muitos vão permanecer numa bolha, nestes espaços protegidos que o futebol – mas não só ele – tem. Então, estes privilégios dados à FIFA por conta da Copa nos fazem pensar como vai ser daqui alguns anos com uma série de outros organismos que podem fazer o mesmo tipo de exigência. Mas a agenda de pesquisa? Poxa, eu vou ler no Ludopédio qual é a agenda de pesquisa que estão colocando (risos). Teu site, alias, é outra prova da consolidação desse campo, ter um boletim quinzenal, ou mensal, que traga notícias de simpósios, encontros, que traga entrevistas; isso cria a rede também. A formação da Associação de Torcedores, liderada pelo Marcos Alvito, é outra. Tem uma série de iniciativas de pessoas dentro da academia, mas que abrem para um público maior; acho que mostram a consolidação na academia desse campo de estudo. Mas eu não tenho uma agenda. Vamos estudar os estádios, vamos estudar a soberania, vamos estudar…

Tem muita coisa…

Sim, muita coisa… para todas as áreas. Sobre o legado: eu acho que a reforma do Porto no Rio de Janeiro será um legado, sim. Era uma área abandonada. Agora, o que está se fazendo no Brasil é muito diferente do que se fez na Inglaterra para as Olimpíadas. Na Inglaterra, realmente, a proposta foi de recuperar terrenos que estavam abandonados – e no papel a proposta do COI também para o Brasil era essa. Se olharmos onde foi construída a cidade olímpica em Londres, percebe-se que realmente eram áreas degradadas ecologicamente; eles tiveram que, em casos extremos, literalmente peneirar a terra para poder utilizá-la. No Brasil, o que há é a velha especulação imobiliária; escolhem-se terrenos, rapidamente os terrenos ao redor são negociados, populações mais pobres expulsas, enfim. A relação entre o esporte e a especulação imobiliária, a corrupção envolvendo as obras, tal como parece ter ocorrido no Pan-Americano. Isso é complicado. A Raquel Rolnik está denunciando isto, e bem.

Carmen Rial publicou artigos abordando a circulação transnacional de jogadores de futebol brasileiros no sistema futebolístico mundial. Foto: Enrico Spaggiari.

E o que você acha que vai ressoar da Copa do Mundo aqui em Florianópolis, Santa Catarina?

Pois é, nós vamos receber uma seleção. Parece que a Alemanha pediu para vir treinar aqui, por causa da proximidade com Blumenau. Pode ser que tenha um impacto, o futebol aqui está se transformando muito. Engraçado, eu estacionei o carro há pouco, com o rádio ligado, estava ouvindo CBN e tinha um comercial que dizia: “Há equipes muito importantes em Santa Catarina! Seja um torcedor dum clube catarinense!”. Ou seja, não estava fazendo propaganda de nenhum clube em particular, mas em geral. Quando comecei a dar aula aqui na UFSC, e lá se vão trinta anos, eu fazia uma pesquisa na sala de aula. Perguntava: “Vocês torcem para quem?”. Olha, dava Palmeiras, Corinthians, muitos clubes do Rio. Quase ninguém falava em Avaí, Figueirense ou nos demais clubes catarinenses. Porque aqui tem uma relação muito próxima com o Rio de Janeiro, porque nós – eu sou gaúcha, mas eu falo ‘nós’ me incluindo em SC – éramos ligados politicamente ao Rio de Janeiro, na época colonial. Santa Catarina estava subjugada ao Rio de Janeiro em termos de governo, e inclusive o serviço militar até algumas décadas atrás continuou sendo prestado no Rio de Janeiro, então existe essa relação ainda muito forte. E muitos pescadores trabalharam e trabalham no Porto de Santos. Hoje isso já mudou. Já muitos dizem que torcem primeiro para o Avaí, mas ainda, também, por um clube do eixo Rio-São Paulo. Já os gaúchos (e seus descendentes) são bem gaúchos, eles continuam torcendo para o seu clube, não importa morando aonde. O futebol de SC está num momento de consolidação. Se a Copa do Mundo vai ajudar ou não, não sei. Não tenho dúvida que esta mudança está muito ligada ao estabelecimento da RBS, com programas esportivos locais. Esse ano o Globo Esporte se tornou local, e passou a ser feito com jornalistas daqui. No rádio, a uma da tarde, eles fazem um Sala de Redação aqui. O programa tem grande tradição no Rio Grande do Sul, é bem melhor lá, mas foi necessário criar esse ambiente midiático local para impulsionar o pertencimento aos clubes daqui. Então, é isso tudo que cerca o futebol e é parte integrante, isto é muito recente, ainda que os clubes tenham uma longa história. Vamos ver no que vai dar com a Copa do Mundo. O que sei é que vai ficar muito ruim o trânsito para o aeroporto! (risos) O estádio do Avaí fica ali pertinho do aeroporto. Se a Alemanha for treinar lá vai ficar bem complicado. Mas quem sabe a Copa não melhore o sistema de transporte público da cidade, que é terrível, um dos piores e mais caros do país; quem sabe o legado da Copa não venha a ser esse? Vamos pensar em termos utópicos! Quem sabe não se cria uma ligação marítima? Estamos numa ilha, podíamos navegar ao redor. Quem sabe ciclovias? E ônibus com espaço externo para bicicletas? Isso tudo é muito otimista. O provável é que mais mangues sejam aterrados, com outros shoppings centers em terrenos liberados por vereadores em reuniões semi-secretas, e que se privatizem áreas públicas, fazendo hotéis, como a que já está sendo considerada na Ponta do Coral. Esse é o dado real.

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