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Contos da Várzea (parte 2)

Enrico Spaggiari, Guilhermo Aderaldo 25 de agosto de 2010

A entrevista deste mês é com os diretores do curtametragem “Contos da Várzea”, vencedor do  1º Festival de Cinema de Várzea, e membros da equipe do blog de mesmo nome, que aborda as diversas facetas da prática do futebol varzeano em São Paulo. Diego Viñas, Rafael Dantas, Renato Rogenski e Tony Marlon contam sobre a criação do blog; relatam como foi o processo de filmagem do curta; apontam a situação atual do futebol de várzea e o que podemos esperar do futuro desta prática. 

1º Festival de Cinema de Várzea.
1º Festival de Cinema de Várzea.

 

Segunda parte
Segundo Flavio Adauto, jornalista especializado no futebol varzeano, o “futebol de várzea não sumiu, apenas mudou de lugar”. A diminuição do número de campos nas regiões centrais poderá acontecer futuramente também nas periferias?

 

Diego Viñas: Não consigo imaginar isso nem a médio prazo. Uma vez escrevi no Jornal MAIS que duvido no fim da várzea, mas não duvido no fim do terrão. Os campos ganharão sintético e vai ganhar outra “roupagem”, outro “fardamento”. Mas não gosto de imaginar isso. Tenho medo de que a nossa tese do TCC, de sociabilidade, caia por terra com a mudança na prática do esporte.

Rafael Dantas: Acho levaria muito tempo para isso acontecer. Os campos na periferia são locais raros de lazer para a população. Hoje existem investimentos por parte da Secretaria de Esportes. Estão mudando a cara da várzea, implantando gramados sintéticos para que seus usuários tenham condições melhores de praticar esporte. Além do mais, aqui é o país do futebol. O esporte precisa de áreas para incentivar seus adeptos. A periferia é fonte inesgotável de craques.

Renato Rogenski: De certo modo, também já existe esta diminuição dos campos de várzea na periferia, mas é uma modificação bem mais lenta e reversível, pois alguns projetos sociais estão incrustados de forma muito consistente em alguns campos. Difícil acabar com todos os campos. Talvez não seja interessante para ninguém.

Tony Marlon: Acredito que não. Para onde eles se deslocariam? Para mim existe uma questão tanto de espaço físico quanto de relação afetiva entre o futebol e a periferia. Eles se resignificam.

E como é convivência do futebol de várzea com outras práticas futebolísticas, como o futebol society e o futsal?

 

Diego Viñas: Confesso que não passamos por essa questão na tese. Mas não consigo relacionar as três práticas juntas. Em algumas cedes de times de várzea, têm campos de society e de salão. Mas acabam perdendo o foco. Por exemplo: o jogaço é no terrão, os veteranos ou quem estiver esperando fica no society, e as crianças ficam batendo bola no salão. É um cenário comum de um domingo na várzea: foto no terrão; society em segundo plano e futsal em terceiro.

Rafael Dantas: Na minha opinião, tranqüila. Todos têm seu espaço em São Paulo. E todos são varzeanos em sua essência. Várzea para mim é reunir amigos para jogar futebol. Embora de que seu significado seja a pratica do futebol de terra à beira de pequenos rios. Digo em relação ao espírito à prática.

Renato Rogenski: Nas periferias os praticantes são os mesmos, mas inegavelmente o futebol de campo (várzea) tem hoje uma capacidade muito maior de organização e mobilização de pessoas. O futsal ou o society ficam praticamente como um time B das equipes de futebol de campo.

 
Durante o Festival Cinema de Várzea, em alguns debates, houveram discussões acentuadas sobre as mudanças pelas quais o contexto do futebol varzeano tem passado, como uma certa “profissionalização”, com o pagamento de verbas originadas de certos patrocínios ou de meios muitas vezes ilícitos. Com isso muitos jogadores passam a migrar para jogar nos times que “pagam”. Há clubes até com CNPJ. Esse tipo de questão foi percebida por vocês? Pois os contos e mitos da várzea são coisas que passam longe dessa “profissionalização” não é? Como vocês vêem esse processo?

 

Diego Viñas: É uma realidade antiga. Hoje, a profissionalização da várzea acompanha o desenvolvimento do profissional. O profissional está mais avançado que o profissional da década de 70, assim como a várzea está mais profissional que a várzea de 70. Os contos, no filme, não citam essa questão. Priorizamos as manifestações sociais. Pra gente, foi mais interessante saber como um jogador faz pra jogar em 4 times num final de semana, quem ele deixou em casa, como ele fez pra se locomover pra cada campo, do que saber quanto ele ganhou pra isso tudo. Eu não gosto da profissionalização da várzea. Vai de encontro com a proposta do Contos da Várzea. No entanto, não viro as costas porque é uma realidade. Na hora que a gente tiver que mudar algumas crenças para acompanhar esse processo, pensamos no que fazer: se batemos na mesma tecla ou se mudamos alguns dos conceitos. Ainda não sei.

Rafael Dantas: Sem dúvida que foi percebido, mas não é esse viés do documentário. A nossa intenção foi retratar a paixão pela várzea. A pureza do esporte com um social, de integração entre as pessoas Hoje existem campeonatos profissionais na várzea, como por exemplo, a Kaiser, Brahma, Jogos da Cidade e outros mais. Aliás, sempre existiu. Os clubes entram para vencer, pagam jogadores, compram materiais esportivos, são patrocinados por facções criminosas. Não considero isso como futebol amador. Talvez mostraremos isso futuramente na produção de um documentário mostrando os problemas da várzea ou a várzea “porofissionalizada”. Quem sabe.

Renato Rogenski: De certa forma o tal “bicho” sempre foi pago aos jogadores de várzea. Há muito tempo os melhores jogadores têm privilégios. Os “dirigentes” da várzea tratam esses jogadores com mais carinho, dão chuteiras, vão buscar em casa, pois esses “craques varzeanos” é que mantém o nome do time forte e conhecido nas comunidades. Embora tenhamos a percepção clara da influência de patrocínios, muitas vezes oriundos de facções criminosas e negócios ilícitos, não abordamos este fator no documentário Contos da Várzea. Não abordamos pelo fato de acharmos que este “patrocínio” aliado à competitividade de alguns grandes campeonatos da várzea desconfiguram parte deste espectro de integração social que esta na raiz do futebol de várzea. Quando a competitividade aumenta o ciclo de amizades corre sérios riscos. Nesta várzea mais competitiva é comum escutar um dito quase sagrado na boca dos boleiros. “Time de amigos não ganha jogo”.

Tony Marlon: Durante as gravações este tema apareceu nas entrevistas. A gente não colocou, pois estávamos buscando outros elementos para dar ênfase. Eu acho que a “profissionalização” do futebol amador é uma consequência do futebol como negócio. E como ele está sendo vendido hoje. É um valor absurdamente gigantesco o que gira em torno do futebol hoje. E isso, claro, iria influenciar de alguma maneira aqui na base. Se pensarmos como resultado, como gestão é importante fazer parceria para remunerar os jogadores, criar uma estrutura e tal. Agora, se a gente pensar de forma romântica todos deveriam jogar por jogar. Mas as relações que estão sendo criadas com o futebol amador não são essas mais. Se isso é bom ou ruim, quem deve decidir são os jogadores, dirigentes do próprio clube.

 
Como participantes, o que vocês acharam, de forma geral, do 1º Festival de Cinema de Várzea, que rolou no bairro do Grajaú, Zona Sul de SP? Como ficaram sabendo do evento? E o que na visão de vocês o vídeo tem a ver com a Várzea?

 

Diego Viñas: Eu trabalhei com o Daniel Fagundes, do NCA, que organizou o festival. Eu era educador de jornalismo e rádio e ele de audiovisual do Projeto Arrastão (ONG do Campo Limpo, ZS de SP). Desde o ano passado ele me alertou que uma novidade da várzea viria por aí. Assim que saiu o edital ele me avisou pra inscrever o Contos da Várzea. Eu inscrevi o filme aos 40 do segundo tempo. Corri pra cima e pra baixo com documentação, cópia do filme. Foi meio difícil, mas deu certo. Eu adorei a organização. O site que eles fizeram ficou lindo (www.cinemadevarzea.com.br). Mas o festival não passou filme só de futebol porque pretendia chamar produções sobre direitos humanos. Então filmes sobre outros temas também participaram. Talvez por isso o Contos tenha vencido. Uniu o futebol, a várzea e direitos humanos, que acompanhou todo o processo de criação. A fala do jornalista Cid Barbosa resume isso “Se eu pudesse fazer um apelo: apóiem sempre a prática esportiva. Ela vai sempre resultar em cidadãos melhores”.

Rafael Dantas: O Diego que nos alertou sobre o Festival. Eram mais de 60 vídeos de todo Brasil escritos e aconteciam eliminatórias, por meio de votação popular, nos Campos de Várzea, não propriamente no Grajaú. Sem menosprezar os outros vídeos inscritos, mas o nome já diz tudo: Festival de Várzea. Tínhamos que levar essa taça. Nós somos varzeanos. Olha só que bacana, o Contos da Várzea é o primeiro campeão do Festival de Cinema de Várzea. Show de bola!

Renato Rogenski: Maravilhosa ideia. Toda iniciativa que tenha como missão valorizar o amadorismo do esporte é bem vinda. O esporte enobrece as pessoas. Através dele é possível aprender e absorver uma infinidade de valores imprescindíveis para a formação de um cidadão de bem. O futebol de várzea tem pouco ou quase nenhum espaço nos veículos que reportam o esporte. Seus praticantes e entusiastas sonham com um espaço maior. O vídeo é a forma mais interativa de mostrar através das imagens todo o riquíssimo este universo carinhosamente chamado de “futebol de várzea”.

Tony Marlon: Este festival já vinha sendo pensado desde o ano passado e conhecemos as pessoas que o organizou. Sempre achei a idéia fantástica, mesmo porque os meninos do NCA estão buscando coisas bem legais, buscando relacionar o vídeo com outros mundos, tal como o futebol. Achei a proposta desafiadora e inovadora. Gosto disso e apoio que tem vontade de fazer o novo, de ousar, e não tem medo para isso.

Em um determinado momento do vídeo, um professor que é entrevistado para falar sobre as redes de sociabilidade que se concentram em torno dos campos de várzea comenta, além do evidente lado positivo o fato de que os times muitas vezes acabam sendo cooptados por candidatos políticos, além disso, sabemos que ocorrem outras práticas clientelistas entre questões até mais complicadas em torno dos campos. Em algum momento durante as filmagens vocês tiveram que lidar com situações delicadas?

 

Diego Viñas: Não senti isso. Muitos entrevistados citaram políticos que ajudaram naquele ou esse time. Normal. Faz parte. Acho que por fazermos parte de um universo muito próximo, conseguimos uma abordagem que evitasse qualquer pressão por parte dos entrevistados. Nunca fomos cobrados para privilegiar um ou outro e nem fomos barrados para fazer qualquer imagem.

Rafael Dantas: Não encontrei dificuldade, nem fui ameaçado por conta disso. Nós falamos a linguagem do pessoal da várzea. É lógico que ninguém é bobo e sabemos exatamente como abordar com viés de fazer uma matéria investigativa, mostrar o consumo de droga, gente armada e outras coisas. Tudo isso existe e não vou ser hipócrita de dizer o contrário. E deixamos bem claro quando era o propósito do nosso filme. Os varzeanos não têm espaço na mídia. Num primeiro momento podem até ficar com receio de falar, mas sempre acabam contando suas histórias, o que queremos ouvir.

Renato Rogenski: Sim. Tivemos contato com alguns políticos que “cresceram” os olhos no nosso trabalho na medida em que sentiram a penetração do Contos nos campos de várzea. Não quisemos abrir negociações com nenhum político ou facção que influenciasse a nossa visão do projeto. Patrocínios são bem vindos desde que entendam e assimilem o projeto sem interferir nos rumos da produção.

Tony Marlon: Eu, particularmente não me lembro. Não vivenciei nada.

No linguajar popular o "terrão" é símbolo do futebol de várzea.
No linguajar popular o “terrão” é símbolo do futebol de várzea.
E daqui para a frente, qual será o rumo do filme e dos novos projetos de vocês? Outros festivais em vista?

 

Diego Viñas: O filme ficou dormindo três anos. Com a vitória do Festival, as coisas estão acontecendo de uma forma mais passiva. O grupo sabe que estou com alguns projetos pessoais por conta da coluna aos sábados do Jornal Mais. Acredito que o Contos da Várzea já deu sua contribuição, estimulando muitas outras produções e fazendo o barulho que os comunicadores precisavam para enxergar com mais carinho as oportunidades do futebol de várzea. Viemos para falar: “Gente, a várzea ta aí. Ela não morreu! Acho que são vocês que precisam acordar”… e acredito que conseguimos acordar uma boa turma.

Rafael Dantas: Estamos passando por um grande momento, conquistando espaço, vencemos um festival, participamos de palestra no Museu do Futebol. Tenho vontade de fazer livro, de elaborar um espaço para a memória da várzea, filmar um outro documentário. No entanto tudo isso precisa amadurecido e planejado. A várzea foi onde tudo começou e merece ser reconhecida de uma forma mais bacana.

Renato Rogenski: O projeto é ampliar a discussão desta importância do futebol de várzea enquanto agente de integração social. A “várzea” é um riquíssimo produto, uma cultura pouco explorada pelos meios de comunicação, mas muito presente na vida dos que amam futebol. Seja através da exibição do filme em outros festivais ou através de novos produtos com esta temática o intuito sempre será o fortalecimento do futebol de várzea, a grande reserva moral do futebol brasileiro.

Tony Marlon: Creio que o Contos é um produto que poderá ser trabalhado sempre. Ele é atemporal. Cabe em diversos festivais que acontecem por SP e fora da cidade. Em termos de conteúdo, indiscutível seu valor e importância histórica, no entanto, acho importante que o projeto seja revisto em termos técnicos. Talvez uma segunda edição, com maior duração, e um roteiro mais elaborado, com uma proposta mais abrangente.

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Enrico Spaggiari

Mestre e doutor em Antropologia Social pela USP.Fundador e editor do Ludopédio.
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