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Contos da Várzea

Equipe Ludopédio, Guilhermo Aderaldo 11 de agosto de 2010

A entrevista deste mês é com os diretores do curta-metragem “Contos da Várzea”, vencedor do  1º Festival de Cinema de Várzea, e membros da equipe do blog de mesmo nome, que aborda as diversas facetas da prática do futebol varzeano em São Paulo. Diego Viñas, Rafael Dantas, Renato Rogenski e Tony Marlon contam sobre a criação do blog; relatam como foi o processo de filmagem do curta; apontam a situação atual do futebol de várzea e o que podemos esperar do futuro desta prática. 

Prêmio do 1º Festival de Cinema de Várzea.Imagem: arquivo pessoal.
Prêmio do 1º Festival de Cinema de Várzea.Imagem: arquivo pessoal.
Primeira parte
O filme se originou de um trabalho de conclusão de curso não é? Como surgiu a ideia de trabalhar com o futebol varzeano? E como foi o retorno da comunidade acadêmica?

 

Diego Viñas: A gente sempre teve ideias relacionadas à sociabilidade. Primeiro, queríamos fazer um documentário sobre as manifestações culturais na favela de Paraisópolis, a segunda maior em SP. Como eu trabalhei como educador lá por dois anos, chegamos a filmar alguns eventos e foi uma experiência e tanto. Depois, mudamos o tema e íamos fazer um programa de TV voltado à juventude empreendedora. O problema, entre aspas, é que todas as reuniões eram atrapalhadas porque falávamos de futebol. Resolvemos então juntar uma paixão comum do grupo com nosso perfil social. Como dois membros do grupo jogavam na época futebol de várzea, não deu outra. Era o tema que unia futebol e, de alguma forma, transformação social. O nosso orientador, Anderson Gurgel, adorou a ideia. Tanto que ele nos incentivou quando contamos que não havia muita referência bibliográfica. Foi mais um motivo para produzirmos algo pouco explorado, aparentemente.

Rafael Dantas: O trabalho surgiu em 2007. Na verdade, eu vivo esse universo da várzea desde pequeno quando meu padrinho Sérgio, já falecido, me levava juntamente com meus primos para assistir aos jogos nos terrões. Aí não parei. Joguei seis anos no Canto Rio, cuja sede ficava no Itaim Bibi, na zona sul de São Paulo. Foi assim que surgiu a ideia. O retorno do pessoal da banca foi satisfatório. Gostaram muito do trabalho. Eu lembro que nosso professor, à época, chamado Paulo Marquês, que trabalhava na Record, disse que tínhamos sensibilidade e amor pelo assunto. Fizeram observações em relação a roteiro, áudio. Apesar de ser suspeito a falar, o trabalho está muito bom.

Renato Rogenski: A ideia surgiu da nossa sensibilidade com as questões sociais e antropológicas aliada a nossa grande paixão por futebol. Descobrimos a várzea, que também praticamos, como o cenário perfeito para esse encontro entre esporte e integração social. Resumindo: o Contos da Várzea é um meio de contar a história de vida das pessoas através de sua relação com o futebol de várzea. A comunidade acadêmica nos apoio quando percebeu a força social do nosso projeto.

Tony Marlon: O grupo era formado por quatro pessoas. Exceto eu, todas elas tinham um envolvimento sentimental muito grande com o futebol. Eu, ao contrário, apesar de ser apaixonado por futebol, me interessava mais pela questão técnica, audiovisual da coisa do que qualquer outra coisa. Isso, creio eu, fez o grupo ficar bem equilibrado. Pois estávamos tanto atentos a questão técnica quanto a questão jornalística. Acho que trabalhar o tema futebol era consequência natural deste envolvimento com o esporte que o grupo tinha. Sobre o retono da comunidade acadêmica eu reamente me surpreendi. Até hoje eu me lembro dos professores dizendo que o nosso TCC havia recuperado um jornalismo romântico, não tecnicista e preocupado com o conteúdo e com a fórmula, juntos, e não somente com um lado da história. Isso foi muito gratificante.

Jogo de várzea.Imagem: arquivo pessoal.
Jogo de várzea.Imagem: arquivo pessoal.
Como foi o processo de filmagem? E, depois, o processo de edição?

 

Diego Viñas: Foi desafiador. Não tínhamos experiência nem formação de RTV e nem de cinema. Então, fomos no mais clássico Glauber Rocha: uma câmera na mão e uma ideia na cabeça. Filmamos cerca de seis meses. Foram 8 horas de filmagem para fazer um curta de 22 minutos. Então dá pra imaginar como foi difícil escolher as imagens. A edição foi feita na faculdade, mas entregamos a decupagem e o roteiro de edição 100% pronto para o editor, que só teve o trabalho de fazer os cortes. Passamos noites em claro fazendo decupagens, pensando, repensando e… quando dava… dormíamos um pouco. rsrs. Por isso, a edição foi muito rápida. Durou, creio, que uma semana só.

Rafael Dantas: Definimos filmar apenas os campos na região da zona sul. Por dois motivos: custo-benefício, pois somos moradores da região e, tanto eu, Rafael Dantas, quanto o Renato, jogamos em diversos lugares. As filmagens foram captadas durante os finais de semana de 2007. Todos trabalhavam e estudavam, não tínhamos alternativa. O processo de edição foi difícil, na minha opinião, pois tínhamos alguns contratempos para marcar horário para editar na faculdade. No final deu tudo certo.

Renato Rogenski: Desde o início tudo foi sempre muito complicado. Muitas ideias na cabeça e pouca estrutura na mão. Além disso, por falta ou deficiência de equipamento acabamos perdendo materiais preciosos que certamente entrariam no trabalho final. O processo de edição contou com a ajuda da faculdade, mas nós desenvolvemos cada segundo do roteiro e cada recorte de imagem. O editor só juntou tudo e contribuiu com algumas ideias de recurso. Foi legal sentir que esse profissional da faculdade também acabou se envolvendo bastante com o projeto.

Tony Marlon: De todas as etapas, o processo de viajar por São Paulo conhecendo as histórias foi fantástico. Incrível como as coisas acontecem nesta cidade e a gente nem sabe. Os personagens, gente com alto grau de envolvimento que emocionaria até o mais veterano dos jornalistas esportivos. Isso, realmente, foi um grande presente. O processo de filmagem foi, ao meu ver, relativamente, tranquilo. Conciliar a agenda de gravações foi um grande desafio, mas que o grupo conseguiu conciliar tudo.

 
Entrevista realizada .Imagem: arquivo pessoal.
Filmagem durante um dos dias de gravação. Imagem: arquivo pessoal.
 
Em 2007, vocês criaram o blog www.contosdavarzea.blogspot.com?. Qual é a proposta principal?

 

Diego Viñas: Usamos o blog para contar alguns detalhes da filmagem. A ideia foi promover o trabalho e compartilhar com outros alunos as dificuldades de um TCC. Além disso, o blog foi o espaço para colocar tudo o que não coube no filme, o que não foi filmado. Afinal, também era um espaço de Contos. E é até hoje. Acabou se tornando nosso único canal inacabado deste trabalho. E o mais antigo. Veio antes do filme e sobreviveu mais que outras tentativas nossas. Fizemos um jornal para várzea com só duas edições. Programa de rádio. Nada resistiu ainda. Só o blog. É um filho cuidado com muito carinho.

Rafael Dantas: A princípio a ideia era publicar os contos colhidos durante o processo de gravação do Contos. Mas começamos a publicar histórias de clubes e entrevistas com ex-jogadores que saíram da várzea, como por exemplo o atacante Kleber (Palmeiras) e o volante Elias (Corinthians). Este universo pode ser encontrado no blog.

Renato Rogenski: Inicialmente criamos o blog Contos da Várzea como um acompanhamento das filmagens para o documentário. Posteriormente começamos a perceber que nem tudo entraria no filme. Então, por que não expandir os horizontes e criar um outro produto independente? Acabou dando certo e ao longo desses 4 anos já tivemos colaboração do Brasil inteiro para contar as grandes histórias ocultas da várzea.

Tony Marlon: O blog é uma ideia super legal. Iniciamos o blog para ser um diário de bordo e ele cresceu demais, a ponto de se tornar mais um dos nossos produtos. Ver esta repercussão foi importante, pois tínhamos em tempo real uma resposta do publico que a gente queria atender.

É possível hoje pensar separadamente “futebol de várzea” e “periferias” em São Paulo?

 

Diego Viñas: Não. É pra onde a várzea foi. É a opção mais querida de lazer da periferia. O casamento é perfeito. Talvez por isso a várzea, em alguns casos, é marginalizada. Porque sofre os mesmos pré conceitos da periferia. Não é um paraíso, claro que não. Mas tivemos medo que a várzea perdesse seu status de celeiro de craques. Ainda é. E é celeiro de lições de vida. Um exemplo de resistência de campo que não é na periferia é o Cruz da Esperança, que não está no doc. Ele fica na Casa Verde, mais próximo do centro, onde existem cinco campos. Esses exemplos são verdadeiros oásis do futebol amador na metrópole paulistana.

Rafael Dantas: Acho que dá em certos casos. O Canto do Rio, por exemplo, ficava numa área nobre da cidade. Tanto que era considerado um time de “playboys” por conta disso. A Portuguesinha da Vila Mariana, também na zona sul, não está situada na periferia. Acho que o espírito é quem tem que prevalecer. Ambiente dos atletas de finais de semana que se reúnem por puro prazer de jogar bola. Porém, a maioria dos campos fica na periferia. Isso é inegável.

Renato Rogenski: O desenvolvimento das grandes cidades geograficamente empurrou os campos de várzea para as periferias. Além disso, dentro de um cenário com pouco lazer barato disponível, traço característico dos subúrbios, o futebol de várzea ocupou um lugar muito especial no coração das “quebradas”. Afinal de contas, é lá que ele extrapola o status de lazer para se tornar um agente transformador ensinando muitas coisas positivas nas comunidades pobres.

Tony Marlon: Não. Eu particularmente acho que não. O futebol amador hoje é uma das raríssimas opções de lazer, relacionamento dentro da periferia. Aos fins de semana tudo gira em torno dos campos de futebol amador. Não só pela diversão, mas também porque o futebol é chance de melhoria de vida para jovens talentos.

 
Futebol de várzea, simbolizado pelo campo batido de terra. Imagem: arquivo pessoal.
Futebol de várzea, simbolizado pelo campo batido de terra. Imagem: arquivo pessoal.
 
Qual é o mapeamento possível de ser feito hoje da prática de futebol varzeano na cidade de São Paulo? Os campos se distribuem igualmente pelas periferias da Zona Leste e Zona Sul, por exemplo? Ainda existem campos nos bairros mais centrais e de maior poder aquisitivo?

 

Diego Viñas: É simples de imaginar isso. É um desenvolvimento inversamente proporcional: os campos estavam no centro da cidade, onde o desenvolvimento chegou primeiro. Cresceu a cidade e diminuíram os campos. Onde o desenvolvimento chegou por último em SP? Nas periferias. Pra onde foram “empurrados” esses campos. Imaginando o município de SP, percebe-se que a Zona Leste e Sul ficam mais distantes do centro. Mesmo assim, os campos da Zona Leste são em maior número que os da ZS, assim como os times. Arrisco dizer que a Zona Leste e Norte lideram em número de campos e times. Coincidentemente onde há mais escolas de samba. Isso não foi nosso foco, mas a presença da cultura afro deve ter grande influência na escolha desses locais para a promoção do futebol e samba. Além do campo da Casa Verde, o Parque da Aclimação possui um campo no meio de uma região nobre da cidade. O Campo do Anhanguera, Campo Grande, Zona Sul, fica entre condomínios de luxo da região. São verdadeiros exemplos de resistência.

Rafael Dantas: Não há grande disparidade na distribuição dos campos em São Paulo. Porém, a Zona Leste leva certa vantagem. A Zona Norte também é celeiro importante de craques. Raramente encontraremos campos nas regiões centrais por conta da especulação imobiliária em São Paulo. O mesmo vale para região de maior poder aquisitivo. Inclusive, em vez de várzea, existem escolinhas particulares. A várzea nos bairro considerados nobres são vistos com um certo tipo de preconceito.

Renato Rogenski: A distribuição dos campos de várzea pela cidade de São Paulo acompanha a força da tal “especulação imobiliária”. Em suma, isso quer dizer que os terrenos das regiões centrais e de maior poder aquisitivo custam muito dinheiro e recebem ofertas milionárias. Portanto, não há interesse da prefeitura ou de quem quer que seja manter um campo de futebol que não gera renda. Infelizmente essa é uma realidade.

Confira a segunda parte da entrevista no dia 25 de agosto.

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