60 Anos da Copa de 1958:

Depoimentos de jogadores da Seleção

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Dino Sani durante entrevista realizada no Museu do Futebol.

Nota Explicativa

Esta série é parte integrante do projeto “Futebol, Memória e Patrimônio”, desenvolvida entre os anos de 2011 e 2012, com o apoio da FAPESP. A pesquisa foi realizada em parceria pelo CPDOC, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), e pelo Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), equipamento público vinculado ao Museu do Futebol/Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. Nesta seção, serão apresentadas as edições de 4 entrevistas concedidas por atletas brasileiros que estiveram presentes na Copa do Mundo de 1958, na Suécia, a sexta edição do torneio organizado pela FIFA. São eles: Dino Sani, Djalma Santos, Pepe e Zito. O propósito dos depoimentos, com base em sua história de vida, método caro à História Oral, foi rememorar as lembranças dos futebolistas acerca de sua participação na competição, de modo a destacar os preparativos para o Mundial, os jogos e a volta ao Brasil, após a conquista do título inédito.O depoimento a seguir foi concedido no dia 11 de junho de 2011, no Auditório Armando Nogueira, nas dependências do Museu do Futebol. Clique aqui para assistir ao vídeo com a gravação completa.

Entrevistadores: Paulo Fontes (CPDOC/FGV), Clarissa Batalha (Museu do Futebol) e Fernando Herculiani (CPDOC/FGV); Transcrição: Lia Carneiro da Cunha; Edição da transcrição: Pedro Zanquetta

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Dino Sani. Ilustração: Xico.

 

Dino Sani

Nasceu na cidade de São Paulo, em 23 de maio de 1932. Iniciou a carreira profissional no Palmeiras, em 1950. Passou também pelo XV de Jaú e pelo Comercial (SP). Em 1954, foi contratado pelo São Paulo F. C., onde se firmou como um dos maiores volantes da história do clube. A atuação pelo São Paulo resultou na convocação para a Copa do Mundo de 1958, onde fez parte da campanha do primeiro título mundial da Seleção Brasileira. Atuou no São Paulo até 1961, quando iniciou sua carreira internacional no Boca Juniors, da Argentina. Permaneceu no time portenho durante uma temporada e transferiu-se para o A.C. Milan, da Itália. Neste, conquistou o Campeonato Italiano 1961/1962, além da prestigiada Liga dos Campeões da Europa 1962/1963. Retornou ao Brasil em 1964 para atuar pelo Corinthians, onde obteve seu último título como jogador, o conturbado Torneio Rio-São Paulo de 1966, antes de se aposentar no ano de 1968, aos 36 anos de idade. Após encerrar a carreira tornou-se treinador e dirigiu times como Corinthians, Palmeiras, Internacional-RS, Flamengo, Coritiba, Peñarol do Uruguai e a Seleção do Qatar. Na posição de técnico, conquistou títulos como o tricampeonato gaúcho (1971-1972-1973) e treinou o Internacional e o bicampeonato uruguaio 1978-1979 pelo Peñarol.

Depoimento

Dino Sani, seguindo a tradição dos nossos depoimentos, pediria que o senhor se apresentasse.

Nasci no dia 23 de maio de 1932, em São Paulo. Minha casa ficava na Rua Diana, em Perdizes, a cinquenta metros do Palestra Itália. Bastava sair de casa, correr um pouco, subir o muro e cair dentro do Palmeiras. Descendente de italianos que sou, tive quatro avós – dois da Toscana e dois de Ferrara – que vieram ao Brasil com o Matarazzo. Toda a família, por sinal, trabalhava para ele. Meu pai, brasileiro, era chefe da parte de transportes e responsável pela distribuição das mercadorias. Os três irmãos, assim como o restante da família, morreram. Só eu que sigo “meio vivo”. 

Vizinho do Palmeiras e descendente de italianos. Imagino que os primeiros chutes tenham sido dados lá…

Comecei ainda moleque, aos 12 anos. Passei pelo infantil, juvenil, aspirantes e profissionais. Participava também de peladas na rua, onde saía com os dedos arrebentados. Agora, o mais importante é que fiz tudo sozinho, sem ninguém me levar ao clube. Fui porque gostava de bola.

Explique o processo de transição das categorias de base ao time profissional.

Fui emprestado ao XV de Jaú assim que me promoveram. Eles montaram uma equipe boa para disputar a segunda divisão. Não por acaso, conquistamos o título e devolvemos o time à elite em 1951. Voltei ao Palmeiras e não quis ficar, pois o clube não aproveitava a molecada. Só queria os medalhões. Aí o Comercial, de São Paulo, pagou quarenta mil cruzeiros por mim e pelo Gino, companheiro de equipe na base e no XV.

O senhor chegou a trabalhar antes de se dedicar exclusivamente ao futebol?

A família me sustentou até a maioridade. Depois trabalhei dois anos na Auto Três Leões, uma firma de peças de automóveis na Avenida São João. Pertencia aos Kasinski, atualmente donos de motocicletas. Cuidava da cotação dos materiais, sempre atrás do menor preço na hora de comercializar os produtos. Mas abandonei o emprego assim que me profissionalizei.

O Palmeiras pagava salário nas categorias de base?

Recebia uma ajuda de custo de quatrocentos cruzeiros. No trabalho, oitocentos. Quando cheguei ao adulto, passei a ganhar 2.800.

O seu posicionamento em campo mudou ao longo da carreira?

Iniciei na meia-direita, camisa oito. Dali, meia-esquerda e número dez. Quando saí do Comercial para o São Paulo, em 1954, o Béla Guttmann[1] me colocou na cabeça de área. Falei que nunca havia atuado na posição, mas ele respondeu: “Joga e deixa por minha conta.” Fizemos quatro na Portuguesa e nunca mais saí.

Falando no Béla Guttmann, quais as diferenças no estilo dele em relação aos outros treinadores?

Ele propunha um futebol simples, de três toques até a meta adversária. Queria inversões, lançamentos, trocas rápidas de passes e menos dribles. Achávamos impossível. Com tudo isso, economizávamos tempo e logo chegávamos ao gol. Neste esquema, era o responsável pela distribuição de jogo. Passei a ter mais campo para atuar, uma visão mais ampla do time. Além disso, não tinha problemas em passes de longa distância. Subi de produção. Aprendemos muito, principalmente a ideia de fazer o fácil e ter condições de finalizar após uma elaboração simples dos lances. Mas ele autorizava as brincadeiras caso fizéssemos três gols em 15 minutos.

A negociação com o São Paulo te alçou a outro patamar na carreira. Como foi a adaptação ao clube?

A única diferença naquela época é que ainda não existia o Morumbi. Atuávamos no Canindé e peguei a transição dos estádios. Pude atuar ao lado de belíssimos jogadores, como o Bauer, o Mauro, o Alfredo e o Poy[2].

A sua chegada coincide com a transferência do Canhoteiro ao São Paulo, não é?

Ele foi contratado um mês depois, vindo do Maranhão. Lembro até de comentamos no grupo: “Será que este magrinho vai jogar bola?” Quando começou… Que espetáculo de jogador! Não foi à Copa do Mundo porque saiu à noite e o cortaram. Faltou sorte. Saiu fotografia no jornal e o doutor Paulo nos mostrou: “Quero primeiro o homem, depois o atleta. Portanto, o senhor Canhoteiro está fora da seleção.” Já pensou ele de um lado e o Garrincha do outro? Íamos rir para burro. Se tivesse ido, não tenho dúvida de que permaneceria na Europa.

O senhor atuou no período do Campeonato Brasileiro de Seleções, onde se formavam times com os melhores jogadores de cada estado. E existia a rivalidade entre Rio de Janeiro e São Paulo…

Apenas na crônica. Dentro de campo, não. Lembro que eram partidas gostosas de ver, sem brigas. Jornais e rádios que criaram a rivalidade. A imprensa já fazia uma cobertura extensa, e isso aumentou com a chegada da televisão. Faziam-nos cada pergunta… Que tristeza! Iam com o objetivo de deixar os atletas encrencados.

Que tipos de encrenca?

Inventavam coisas e colocavam no ar. Após a publicação, a recomendação era ficar quieto. Desmanchar o troço, apenas se o negócio ganhasse uma proporção absurda. Existia fofoca para atrair público, mas os estádios já lotavam sem isso. No Pacaembu, por exemplo, fechavam os portões ao meio-dia, sendo que a partida que teria início às 15 horas. O pessoal chegava cedo e acompanhava os fortíssimos times de aspirantes. As preliminares começavam às 13 horas.

No mesmo Pacaembu, dias antes da viagem para a Suécia, o Brasil enfrentou o Corinthians. Quais são as lembranças da partida?

Na verdade, foi um jogo-treino. O estádio completamente cheio, gente até nos holofotes. Ganhamos de cinco e saímos vaiados, acredita? Tudo isso porque o Luizinho, do Corinthians, ficou fora da lista. Cheguei à Copa do Mundo com essas vaias na cabeça. Justo nós que não tínhamos culpa por isso.

Qual análise o senhor faz da relação com os torcedores na época? Por onde vocês saíam após o jogo?

É tudo bem diferente do que se vê hoje. Deixávamos o estádio passando pelo meio do público, conversando com os torcedores. Ninguém tinha carro. Os preços eram abusivos e não ganhávamos o suficiente para comprar um automóvel. Assim, esperávamos as caronas dos amigos ou a perua oferecida pelo clube, que deixava todos em casa.

E como vocês faziam para ir aos treinos no dia a dia?

Quando me casei, em 1955, fui morar no centro, ao lado do Vale do Anhangabaú. Ali ficava fácil pegar condução. Caminhava até a Praça da República e a perua do São Paulo levava ao Morumbi. Na volta, a mesma coisa.

As pessoas te reconheciam na rua?

Às vezes. Quando nos identificavam, olhavam e cumprimentavam. Mas a cobrança e o fanatismo eram menores, existia um respeito. Não sei também se isso tem ligação com o perfil da torcida são-paulina.

Quando o senhor recebe a primeira chance na seleção brasileira?

Em 1957. Fui reserva da equipe vice-campeã do Sul-americano no Peru. O Osvaldo Brandão me chamou. Deve ter acompanhado o título paulista do São Paulo naquele ano.

Logo em seguida, sai a convocação para a Copa do Mundo.

Confesso que não ligava para isso. Nunca tive aquela ânsia de ser convocado. Isso só muda quando você passa a treinar com a equipe, pois há mais divulgação nos jornais. Fiquei meio assustado com a dimensão das notícias. Só ali pude perceber que estava noutro plano. Porém, durante a preparação em Minas Gerais, sequer discutia com os meus companheiros sobre os cortes do Mundial.

Com quem o senhor se dava melhor no grupo?

De Sordi e Mauro, ambos do São Paulo. Sempre ficávamos juntos. É algo inevitável dentre os clubes com maior número de convocados. Existe uma rodinha de amigos criada no convívio anterior. Apesar disso, esta foi uma seleção muito unida. Elenco fechado e, não por acaso, campeão do mundo.

Muitos apontam o Paulo Machado de Carvalho como uma das figuras-chave na Copa. O senhor concorda com esta visão?

O doutor foi um dirigente fabuloso. Ninguém saía da linha, a disciplina prevalecia. Nossos passeios só ocorriam uma vez por semana, com autorização. Aí cada um fazia o que bem entendesse.

Ainda assim o Garrincha conseguiu escapar…

Isso é lenda. Ele não escapou, nem saiu à noite. Durante as folgas, o nosso ônibus ia até o centro de Estocolmo e nos trazia de volta. Não me recordo de uma brincadeira estúpida, já que todos estavam focados na conquista do Mundial. E atribuo tal seriedade à direção. Depois do título, eu, Mazzola e o próprio Garrincha saímos à noite. Mas, diferentemente do que todos pensam, fomos a um parque de diversões.

Como o senhor autoavalia as suas atuações na Copa?

Joguei as duas primeiras partidas, mas estourei um músculo na véspera do jogo contra a União Soviética. Justo numa atividade mais leve. Fiquei sessenta dias parado e passei o restante do Mundial em tratamento, assistindo os companheiros da arquibancada.

Quem o substituiu a partir de então?

O Zito, que tinha mais raça e força física. Características distintas, mais de marcação. Que jogador! Gritava com todo mundo, até com o Pelé.

Conte-nos um pouco sobre as partidas em que o senhor atuou, contra Áustria e Inglaterra.

Na estreia, tomamos um passeio nos primeiros vinte minutos. Não os conhecíamos. Eles faziam boas tabelas de dez metros e voavam dentro de campo. Quando o Feola pediu aperto na marcação, aí as coisas melhoraram. Passamos a tomar conta da situação e fizemos três gols. Antes disso, o Gylmar tinha feito duas belas defesas. Contra a Inglaterra, outro jogo duríssimo, empate sem gols. Mas desperdiçamos duas oportunidades fáceis com o Mazzola.

Depois da igualdade com os ingleses, surge a história de que houve um temor quanto à sequência da seleção no torneio. Por isso, o time teria sido modificado. Há algo de verdade nisso?

Não. O Pelé e o Garrincha, por exemplo, entraram porque se recuperaram de contusões. O Pelé, inclusive, não devia nem ter ido a Suécia. Quem o deixou viajar foi o Paulo Machado de Carvalho. Quando os dois entraram, acabou tudo. Um fazendo gol de todos os jeitos, o outro driblando quem aparecesse pela frente. A Suécia chegou a fazer fila com três atletas para marcar o Garrincha. Ainda assim ele passava. E ainda voltava depois.

Àquela altura, vocês percebiam que seriam campeões e que o mundo estava diante de dois jogadores fantásticos?

O Pelé estava só começando, e ninguém o conhecia. O Garrincha, apesar de mais velho, não tinha aparecido tanto. Seus dribles ainda não encantavam o público. A festa começou para valer na Suécia. E o restante do time se divertindo, rindo da situação. Pegávamos a bola e entregávamos ao Garrincha. Ele fazia tudo e encontrava o Pelé na área. Quer dizer, um começava a jogada e o outro terminava.

Nas quartas de final, mais um compromisso complicado. Dessa vez, contra o País de Gales.

Seria 0 x 0 se o Pelé não fizesse aquele gol. O negócio estava feio ali. Os galeses apenas defendiam. Daquele jeito não avançariam de fase.

Houve alguma orientação específica para encarar a França, outra sensação da Copa, na semifinal?

Ninguém falava de adversário, só da gente mesmo. Penso assim: se eu estiver jogando e o cara vem me marcar, ele vai ficar restrito a essa função. Azar o dele. A partida contra a França foi bonita, bem jogada pelos dois times. E até hoje acho que fizemos muito mais gols do que eles mereciam ter sofrido. Não deveriam ter levado cinco.

Na final, o trauma do Mundial de 1950 aparece em algum momento? O elenco aparentava nervosismo?

Não passou nada pela nossa cabeça, nem ficamos tensos. O assunto da Copa no Brasil sequer foi mencionado. Sabíamos que a vitória viria, bastava não facilitar. Outro aspecto é que o fato de encararmos a seleção anfitriã na final não interferiu. O time deles atuava em casa, mas a torcida nos deixava à vontade. Se fizéssemos uma boa jogada, nos aplaudiam. Não devem viver neste planeta, de tão educados.

Qual a melhor recordação do 5 x 2 contra a Suécia?

Assim que acabou o jogo, olhei para os companheiros do meu lado. Todos gritaram: “Somos campeões do mundo!” Depois, começamos a ver o pessoal correndo dentro de campo. Não tivemos tempo de descer da arquibancada e comemorar junto. Apesar da imensa alegria, ficou aquela sensação de ficha que não caiu. Isso aconteceu apenas na volta ao Brasil, com toda a festa pelas ruas.

Houve algum tipo de superstição ao escolherem vestir a camisa azul na decisão?

Isso é conversa mole para deixar as coisas mais floridas. Tivemos que mudar por conta de um sorteio, já que a Suécia também vestia amarelo. Quem ganha jogo não é camisa, mas quem está dentro dela. O negócio é ter cabeça firme e poder enfrentar o mundo para conseguir os objetivos. E a maioria dos atletas sabia o que estava fazendo. 

A vida mudou muito após a conquista na Suécia?

É claro. Aí surgem novos contratos e tantas outras coisas. O importante, como disse anteriormente, é ter cabeça. Se não abrir o olho, você se perde. Chegam milhares de propostas e parece que todas são maravilhosas. 

E o senhor acaba trocando o São Paulo pelo Boca Juniors. Por quê?

Porque queria ganhar mais dinheiro. Houve um torneio de verão que o São Paulo enfrentou o Boca Juniors na Bombonera. Mesmo com um time ruinzinho, ganhamos de cinco. Marquei o Grillo[3], ex-Milan e seleção argentina, sem encostá-lo, apenas me antecipando. Sei que o presidente deles ficou doido comigo e veio me comprar.

Mas a sua passagem pelo Boca durou pouco tempo…

É que o melhor do time, o Ratín[4], atuava na minha posição e não parava de me encher. Até que o Feola o colocou na quarta zaga. Cheguei a pedir para não ser escalado em três partidas, tentando evitar briga. Aí o Feola perguntou se eu poderia ser meia, pois o Grillo havia se machucado. Eles só não contavam com a proposta do Milan. Um dirigente que levou o Mazzola – e quis me contratar após a Copa – veio a Argentina acompanhar o Menéndez[5]. Mas pensavam que ele atuava na meia, quando na verdade era centroavante. Enfim, houve um jogo-treino de avaliação e também estive em campo. Terminada a atividade, nos encontramos no vestiário e, após uma semana, ele preferiu me levar.

Havia diferença entre o estilo de jogo argentino e o nosso?

Até 1958, a Argentina teve mais futebol. Após a Copa, ficaram em segundo plano. Eles sempre foram bons tecnicamente. Porém, até hoje não admitem a nossa superioridade. De qualquer forma, fui tratado muito bem. Em termos táticos, praticamente a mesma coisa. Até porque, naquela época, o atleta é que decidia. Técnico apenas escalava.

E como foi a experiência no Milan?

Cheguei com o clima fervendo. Comentei com a minha mulher que algo havia acontecido. Estava certo: 5 x 1 para a Juventus no dia anterior. O Mazzola disse que ficamos a cinco pontos da Internazionale faltando duas rodadas para o fim do primeiro turno. Todos falavam que a Inter já se sentia campeã. No fim, conquistamos o título da liga com três pontos de vantagem. Em seguida, fomos campeões europeus.

Quem se destacava nesse time do Milan?

O Rivera[6], um dos grandes meias da Itália. Tinha o Maldini[7], um dos melhores centrais do mundo. O Trapattoni[8], belíssimo marcador. E o próprio Mazzola, que todos conhecem. Era um espetáculo de equipe.

O senhor notou, em termos táticos, a aplicação do futebol italiano?

Eles adotavam um estilo mais defensivo. Priorizavam o setor, em vez de partir para o ataque. O Milan estava muito bem amparado por estes jogadores que citei, como o Maldini atuando de líbero. Até os meias ajudavam.

E o senhor se adaptou a este tipo de jogo?

Nem tomei conhecimento. Confesso que sempre fiz as mesmas coisas no Brasil, na Argentina e na Itália. Se você mudar, foge do seu estilo e não produz. O que eu sabia fazer era alimentar a minha equipe e fazer gols. Sempre acabava como vice-artilheiro do time. E fazia poucos de dentro da área. Aproveitava mais os rebotes e chutava de longa distância, quando a defesa estava aberta.

Foi este Milan que enfrentou o Santos no Mundial de Clubes de 1963?

Exatamente. Atuei na partida da Itália, quando demos um passeio: 4 x 2. Não sei o motivo, mas o Pelé nunca jogou bem na Itália. Já tínhamos vencido eles antes, num amistoso, por 4 x 0. Sei que o Almir devia ter sido expulso, não foi e acabou sendo decisivo no segundo confronto, no Maracanã. Ele pôs a cabeça no pé do Maldini e o juiz marcou falta contra o Milan. Dali sai o pênalti que garante a vitória por 1 x 0. Uma vergonha! Machuquei nas duas partidas no Brasil. Vim para cá e tomei infiltração. Mesmo assim, não tive condição de entrar em campo. A orientação naquele confronto era provocar o Almir e os dois serem expulsos.

Os italianos perguntavam sobre o Santos?

Não, porque eles atuavam com frequência na Europa. O Santos era famoso no mundo inteiro e todos o conheciam. Ainda mais o Pelé, no auge. Os clubes pagavam uma fortuna porque o queriam ver em campo nos amistosos.

Em 1962, o seu nome chegou a ser cogitado para a Copa?

Apenas na Itália. Eles me perguntaram se eu queria jogar o Mundial pela seleção deles. Não quis. Muitos fizeram isso e pegaram o passaporte, como o Mazzola. No meu caso, estava no país há pouco mais de seis meses e havia um receio de encontrar o Brasil no meio do caminho. Seria um desastre, não podia arriscar.

Encerrada a carreira de atleta, o senhor vira técnico. E aí começa a rotina de treinador brasileiro, que cada hora está num lugar.

Passei por muitos clubes. Dos que defendi como jogador, só não treinei o São Paulo e o Milan. Comandei o Flamengo antes do título mundial de 1981, depois o Carpegiani assume o clube. Passei por Fluminense, Internacional, Corinthians… Treinei também o time do Coritiba que seria campeão brasileiro em 1985. Aguardava uma proposta do Qatar, mas o presidente me convenceu a assumir o time enquanto não chegasse a oferta. Fiquei lá poucos jogos e fui embora após uma derrota de 3 x 0 para o Vasco. Então, sugeri o nome do Ênio Andrade. Eles acabaram o contratando e foram campeões. Depois tive uma passagem pelo Grêmio, onde fui vice-campeão da Copa do Brasil em 1991. Vitória do Criciúma, do Felipão. Empatamos em casa por 1 x 1 e logo vi que não seríamos campeões. Não podíamos ter sido vazados no Olímpico. Falei quinhentas mil vezes do escanteio deles e tomamos um gol em cinco minutos, com cabeçada de centroavante no primeiro pau. Queria matar os caras.

Por que a decisão de se aposentar no início da década de 1990?

Saco cheio. Foram 42 anos de bola e poderia ter trabalhado mais uns dez, mas não quis saber de aborrecimento. Estava com cara de velho, todo enrugado e vendo o futebol me matar. Nada de sossego nas férias. É dirigente, torcedor, jogador, telefonema o dia inteiro… Você precisa tomar conta de todos e não pode confiar em ninguém. Um verdadeiro inferno!

O senhor acompanha as partidas de futebol atualmente?

Olho de vez em quando, com dificuldade. A ruindade é imensa. Muita correria e pouco cérebro. Tem profissional que vai dominar a bola e ela bate na canela. Hoje, você não vê um passe de cabeça. É cabeceio para qualquer lado, menos no pé do companheiro. Ainda tenho a cabeça do futebol antigo, porém acho um desperdício. As coisas sempre mudam para pior. E não me refiro apenas ao futebol, mas ao mundo em geral.

[1]BélaGuttmann é um ex-jogador da seleção húngara nos anos 1920. Virou treinador na década de 1930, se aposentando somente 40 anos depois. Passou por clubes da Argentina, Itália, Portugal, Áustria, Grécia, Uruguai, Suíça e Brasil, onde comandou o São Paulo entre 1957 e 1958.

[2] José Poy defendeu a meta são-paulina por 13 anos, entre as décadas de 1940 e 1960. Ao se aposentar, o argentino virou técnico do clube.

[3] O meio-campista Ernesto Grillo iniciou sua carreira no Independiente no final dos anos 1940. Foi vendido ao Milan, onde atuou por três temporadas, até voltar ao seu país de origem para defender os Boca Juniors até se aposentar.

[4]AntonioRatín estreou no Boca Juniors, único clube em toda a sua carreira, no ano de 1956. Participou das Copas do Mundo de 1962 e 1966.

[5] Norberto Menéndez jogou no River Plate, Boca Juniors e Huracán. Encerrou a carreira no Defensor, do Uruguai. Participou da Copa do Mundo de 1958.

[6] O meia Gianni Rivera é para muitos o melhor jogador da história do futebol italiano. Defendeu o Milan nas décadas de 1960 e 1970, participando também de quatro Copas do Mundo.

[7]Cesare Maldini iniciou a carreira no Triestina, mas chegou ao Milan em 1954. Saiu apenas em 1966, prestes a se aposentar, quando acertou com o Torino. O zagueiro defendeu a Itália nas Copas de 1962 e 1966. Também comandou a seleção de seu país no Mundial de 1998.

[8] Giovanni Trapattoni foi um meia defensivo que atuou no Milan entre 1959 e 1971. Mais tarde, consolidou a carreira de técnico ao comandar grandes equipes do futebol mundial. Além do próprio Milan, treinou Juventus, Internazionale, Bayern de Munique, Fiorentina, Benfica, Itália e Irlanda.

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Bernardo Borges Buarque de Hollanda

Professor-pesquisador da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV).

Daniela Alfonsi

Antropóloga, Diretora Técnica do Museu do Futebol e doutoranda pela USP. Trabalha com e pesquisa sobre os museus esportivos.
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