60 Anos da Copa de 1958:

Depoimentos de jogadores da Seleção

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Djalma Santos com Bernardo Buarque e Daniela Alfonsi.

Nota Explicativa

Esta série é parte integrante do projeto “Futebol, Memória e Patrimônio”, desenvolvida entre os anos de 2011 e 2012, com o apoio da FAPESP.A pesquisa foi realizada em parceria pelo CPDOC, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), e pelo Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), equipamento público vinculado ao Museu do Futebol/Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. Nesta seção, serão apresentadas as edições de 4 entrevistas concedidas por atletas brasileiros que estiveram presentes na Copa do Mundo de 1958, na Suécia, a sexta edição do torneio organizado pela FIFA. São eles: Dino Sani, Djalma Santos, Pepe e Zito. O propósito dos depoimentos, com base em sua história de vida, método caro à História Oral, foi rememorar as lembranças dos futebolistas acerca de sua participação na competição, de modo a destacar os preparativos para o Mundial, os jogos e a volta ao Brasil, após a conquista do título inédito. O depoimento a seguir foi concedido no dia 17 de junho de 2011, na residência do entrevistado, localizada na cidade de Uberaba, em Minas Gerais. Para assistir ao vídeo com a gravação completa, clique aqui.

Entrevistadores: Bernardo Buarque (FGV/CPDOC) e Daniela Alfonsi (Museu do Futebol); Transcrição: Elisa de Magalhães e Guimarães: Edição: Pedro Zanquetta

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Djalma Santos. Ilustração: Xico.

 

Djalma Santos

Dejalma dos Santos nasceu em 27 de fevereiro de 1929, na cidade de São Paulo. É considerado um dos maiores laterais-direito do futebol brasileiro. Atuou em mais de cem jogos pela Seleção. Iniciou a carreira no ano de 1948, na Portuguesa de Desportos. Permaneceu onze anos no clube da colônia portuguesa e conquistou o Torneio Rio-São Paulo em 1952 e 1955. Jogou no Palmeiras durante uma década, de 1959 a 1968. Suas atuações computaram quase 500 partidas. Ganhou diversos títulos, dentre os quais três edições do Campeonato Paulista, a Taça Brasil de 1960 e 1967, o Torneio Roberto Gomes Pedrosa de 1967 e o Torneio Rio-São Paulo de 1965. Foi peça fundamental do célebre time palmeirense e ficou conhecido como “Academia de Futebol”.  Em 1968, transferiu-se para o Atlético Paranaense, onde arrebatou o Campeonato Paranaense de 1970, antes de se aposentar em 1972, aos 42 anos. Foi convocado para a Seleção Brasileira em quatro edições consecutivas de Copas do Mundo: 1954, 1958, 1962 e 1966. No primeiro título brasileiro, em 1958, jogou apenas a final, o suficiente para ser escolhido o melhor lateral-direito da Copa.

Depoimento

Djalma, gostaria que o senhor se apresentasse e falasse um pouco sobre a sua família.

Sou filho da dona Laura e do seu Sebastião. Nasci em 1929, no Bom Retiro, mas passei a maior parte da minha infância na Parada Inglesa. Cheguei lá aos três anos, durante a Revolução Constitucionalista. Meu pai não voltou para casa, minha mãe ficou sabendo que tinha outra mulher no meio e nos levou até a nossa madrinha: “Entregue esses três ao pai, que vou embora.” Passamos um dia inteiro, até ela voltar à noite: “Vamos embora! Não vou deixar vocês com o seu pai.” Foi quando minha mãe alugou uma casa na Coroa e conheceu um carroceiro italiano, o seu Vitor. Dali em diante, vivemos na Parada Inglesa.

Chegou a conhecer seus avós?

Não, só meus pais. E o velho mais ou menos, porque com três anos eu ainda não tinha a fisionomia gravada. Dei de cara com ele após a morte da minha mãe. “Fiquem onde estão. Qualquer dia passo lá e ponho vocês no juizado de menores ou uma instituição dessas,” disse. A cada carro de polícia que víamos, nos escondíamos. Por que eles iam nos pegar, não é? Éramos garotos, tínhamos uns dez anos.

Mas vocês viram seu pai depois?

Na infância, nunca mais. Então, fomos crescendo e aí vem o futebol. Jogava com meus amiguinhos na Parada Inglesa e sempre cismávamos em treinar num time. Naquela época havia o Ypiranga, o São Paulo, o Comercial. Íamos nestes clubes e não dava em nada. No Internacional[1], conheci o Bruno, goleiro da Portuguesa, que prometeu me levar lá. Fiquei entusiasmado porque a Lusa tinha um campinho no Ibirapuera. Treinei e agradei ao treinador, o senhor Barros. O problema é que eu trabalhava e fazia hora extra para recuperar o tempo perdido no treino. Pegava o ônibus, que era terrível, andava a pé, entrava em outro ônibus, descia na Avenida Brigadeiro Luiz Antônio, caminhava mais um quilômetro até a Portuguesa… Até que um dia, o senhor Barros falou: “Olha, querem dois jogadores para treinar no profissional, um deles no meio de campo.” Fui, apesar de ser zagueiro central. Gostaram da minha atuação, sabe-se lá como, e me requisitaram para os aspirantes. 

O senhor frequentou a escola?

Até o quarto ano do primário. Trabalhava de dia e estudava à noite. Depois, não continuei. Comecei a jogar bola e vi um rapaz com uma farda bonita da aeronáutica, o que me despertou para a aviação. O que me impossibilitou de realizar este sonho foi um acidente de trabalho. Prensei a minha mão numa máquina da fábrica de calçados. Por sorte, veio o convite para treinar no primeiro time da Portuguesa. Joguei um tempão lá e foi como profissional que conheci meu pai. Fizeram um contrato que o velho precisava assinar. Falei à minha irmã: “Agora vai complicar tudo.” Ele morava no Canindé e a Portuguesa tinha uma sede no Largo São Bento. Foi muito bem tratado lá e não é que assinou tudo direitinho?

Quando o senhor passou a se dedicar exclusivamente ao futebol?

Após a minha estreia contra o Santos. Os diretores da Portuguesa rifaram o meu chapéu. Chapeuzinho feio, mas muito bacana. Resultado: rendeu o dobro do que eu ganhava por mês na fábrica. Ganhava trinta, eles me deram sessenta. Tive uma nova conversa com a minha irmã: “Você não pode trabalhar mais. Tem que ficar em casa, me alimentar e cuidar de mim, pois preciso jogar bola e estar bem preparado. Está aqui o dinheiro.”

E como é que a família via isso?

A família era eu e a minha irmã Anésia. A mais velha, Rosa, já tinha falecido. Morreu aos 16 anos. Tomava suas manguaças, brigava lá no bairro. Era terrível.

Para qual time o senhor torcia na infância?

Corinthians. Sei que a molecada dizia que ia treinar lá e sempre voltava decepcionada. Tive sorte que esse senhor me levou para a Portuguesa.

Assistia aos jogos do Corinthians no estádio?

Como? Eu não tinha dinheiro, estava sempre duro. O ingresso podia até ser grátis que para mim já era caro. Ficava ouvindo no rádio.

Quando o senhor virou profissional da Portuguesa? O clube atravessava uma boa fase?

Comecei em 1948. Fiquei lá por dez anos e quatro meses. O time era muito bom e também visado pelos juízes. Neste aspecto, o Corinthians se favorecia. Lembro uma vez – só não vou citar o nome do árbitro porque ele já morreu –, que vencíamos o Corinthians por 1 x 0. Tanto o nosso goleiro quanto o centroavante deles pularam num lance, e o juiz marcou pênalti. Sabe o que ele me disse? “A torcida está lá, você vai deixar o pessoal triste.”. Assim que sai o gol, ele vira para mim: “Viu só? O povo todo contente…” Vinte mil corintianos contra uns quatro mil da Portuguesa, coitadinha.

Essa pressão da torcida mexia com vocês?

Jogávamos ainda mais para ver se calávamos o povo. Tentávamos fazer os caras pararem de gritar. Aí dava pau.

Em algum momento vinha a lembrança na cabeça de ter sido corintiano na infância?

Aqui o discurso era outro: “Agora tenho que ganhar porque eles não me deram oportunidade.” Espírito de vingança.

O senhor se tornou lateral-direito na Portuguesa?

Atuava no meio de campo até eles trazerem o Brandãozinho, grande contratação na época. Pensei: “E agora?” Aí eles me perguntaram sobre atuar na lateral e topei. Fiquei na direita a vida toda.

Algum lateral o inspirava?

Quando garoto, o Domingos da Guia. Depois vim até a jogar com o filho dele, o Ademir. E via também o Rodríguez Andrade[2], um crioulo uruguaio muito forte.

O senhor ainda atuou na zaga. Como foi a adaptação a todas essas posições?

No início, fui zagueiro central. No meio, marcava muito bem e tinha boa impulsão. O treinador chegou a me ajudar um pouco, mas o resto dependia de mim. O que queria mesmo era jogar. Fosse de centroavante, lateral ou meio-campista. Por isso, sempre me esforcei para fazer as coisas direito.

Preferia a marcação?

Não, eu gostava de atacar também. Acontece que, de vez em quando, é mais difícil. Um dia, na seleção paulista, o Aymoré Moreira pediu que eu atuasse pela esquerda e marcasse o Garrincha, da equipe carioca. Falei: “Ah, seu Aymoré… (risos)”. Acabou que joguei e ganhamos. Muitas equipes jogavam no 4-2-4. Aí você pega um Santos e encara Dorval, Mengálvio, Pelé, Coutinho e Pepe. Enfrenta o Botafogo com Garrincha, Didi, Amarildo e Zagallo. Tem como deixar algum deles sem marcação?

Em 1948, todos sabiam que o Brasil sediaria a Copa do Mundo dois anos depois. Passava na sua cabeça chegar à seleção?

Tinha uma esperança. Inclusive, durante a Copa, participei de uma seleção de novos. Houve uma festa em São Januário antes do último jogo. O Maracanã lotado, todos dizendo “Brasil campeão! Brasil campeão!” Resultado: perdemos. Falta de organização e dirigentes mal escolhidos.

Como o senhor acompanhou a final?

Pelo rádio. Via aquela euforia e entrei na onda do “já ganhou”. Desde então, uma coisa é certa: precisamos de dirigentes bons e ritmo de trabalho para que a seleção chegue ao auge. Se não for assim, perdemos sempre.

Mas na Copa de 1950 se responsabilizou os jogadores, sobretudo os defensores, pela derrota.

Sempre criam um bode expiatório, mas eles não foram os culpados. Em 1958, quando tínhamos diálogo com os cartolas, as coisas foram levadas a sério.

Foi assim também na Copa de 1954?

Sim, muitos dirigentes. Ficávamos no hotel, e eles na cidade. Na véspera dos jogos, vinham à concentração. Era um “blá blá blá” a tarde toda. Antes da partida contra a Hungria os “homens” vieram falar conosco: “Porque a Hungria, porque o Puskás, porque não sei o que mais…” Levantamos da mesa, às 11 horas da noite, com a cabeça inchada. Horas antes de a bola rolar, os húngaros se aquecendo no campinho e nós, no vestiário, ouvindo aquela papagaiada outra vez. Em 15 minutos, a Hungria faz 2 x 0 e tivemos um pênalti a favor. Já pensou se eu erro? Até hoje seria tachado, que nem o coitado do Barbosa. Contra a Iugoslávia, fomos para o intervalo e os caras com o seguinte discurso: “Tem que ganhar para classificar.” Acaba a partida, nós desolados com o empate e os dirigentes nos informam que avançamos de fase. Cartola é um negócio ruim. Em 1958 foi diferente. Tinha lá o Paulo Machado de Carvalho[3], o José de Almeida[4]. Dialogávamos, batíamos papo, trocávamos ideias. Eles aceitavam o que você falava no certo ou no errado.

Fale um pouco sobre a transição da seleção de novos para a principal.

Em 1952, fui convocado para o Pan-Americano. Quando chegamos ao Chile, eu era chamado de Santos. Como também tinha o Santos do Botafogo, o Nilton, aí ficou Djalma Santos para não confundir os gringos. Perguntaram se éramos irmãos, mas não tinha como. Eu, crioulo. Ele, branco.

Depois, o senhor ainda participou do Sul-Americano de 1953. Pode-se dizer que a convocação para a Copa de 1954 já era esperada?

Sim, havia essa expectativa. Treinamos uma temporada no Brasil e fomos direto para a Suíça. Chegamos mais cedo para nos adaptarmos ao frio. O grupo era muito bom, mas não tinha seriedade. Muitos iam a festas, e você não podia segurar todos. Aí perde mesmo.

Sentiram a pressão pelo título?

Éramos obrigados a sentir, pois nos reuníamos todos os dias. E tinha a “santa”, não é? “Ah, porque Nossa Senhora… Ah, porque você é católico…” Agora, os dirigentes não sabiam de nada. Nem que nos classificaríamos com o empate contra a Iugoslávia. Com dirigentes ruins e jogadores mal orientados, a coisa não podia dar certo.

Mas vocês começaram bem a Copa e golearam o México por 5 x 0. Como estava o clima do jogo?

Estádio cheio, mas sem muita gente do Brasil. Só a Guiomar, senhora do Didi. Ela foi proibida de entrar na concentração, e o Didi fez greve de fome. Aí levávamos um sanduíche por baixo da camisa. Como ele era sem vergonha…

Já a Iugoslávia impunha mais respeito que o México.

Seleção boa que dava para o Brasil ter vencido. Mas houve esse negócio de precisar ganhar. Terminou o jogo e eu arrasado, transpirando, com uns cinco quilos a menos. Entro no vestiário e vejo todo mundo rindo, dizendo que o empate classificava ambos. Deveriam ter visto isso antes e nos avisado. Contra a Hungria, a mesma coisa: “Porque o Puskás faz isso, faz aquilo…” No fim, ele nem jogou.

Quais eram as lideranças do grupo?

O Didi, o Bellini e o Zito. O líder é nato. Veja hoje: está difícil achar um dentro de campo que chega e põe os caras na linha. É preciso dois ou três que trazem o jogador para dentro da equipe. Atualmente, você vai falar com um atleta e talvez ele te responda mal. Falta respeito e uma liderança mais rígida.

A Hungria foi campeã olímpica em 1952. O que esta seleção trouxe de novidade?

O talento. Vieram com uma equipe bem montada e que perdeu por excesso de confiança, já que tinham feito 8 x 3 nos alemães antes. Tivemos receio contra eles, ouvimos sobre o que podiam fazer. Precisávamos ter conversado e mostrado as nossas armas. Mesmo que não tivéssemos, teríamos crescido um pouco e passado a acreditar.

Havia um batedor oficial de pênalti na seleção?

O Didi e o Julinho. Mas eles saíram na hora de bater contra a Hungria, na hora que o negócio esquentou. E lá do banco o pessoal gritava: “Vai, Djalma!”

O senhor acha que a marcação por zona que o Zezé Moreira introduziu dificultou um pouco as coisas?

Não estava acostumado a jogar dessa maneira. Talvez tenha complicado, mas faltava diálogo e cabeça aos atletas. Havia muita desconfiança, desentrosamento entre jogadores e dirigentes…

Passada o Mundial, o senhor continua na seleção brasileira. Mas, para 1958, há uma troca no comando técnico: sai o Zezé Moreira, entra o Vicente Feola. Por que houve a mudança?

Dirigentes de São Paulo e Rio de Janeiro fecharam um acordo, onde ficou decidido que seria levado um técnico e um chefe de delegação paulista e outras pessoas do Rio. Uma figura importante foi o Ernesto Santos, nosso espião. Como não existia televisão, ele viajava para estudar o adversário e nos trazer todas as informações. No último jogo, contra a Suécia, perguntei sobre o ponta esquerda deles, o Skoglund[5]: “É um cara forte, driblador e maldoso. Cuidado com ele!” Como de fato era. Para ele, não existia jogo fácil. Se falasse isto, entraríamos em campo com outra pegada. Diante do Skoglund, olhei na cara delei: “É hoje que o bicho vai pegar”. Dei sorte. À noite, todos diziam: Djalma Santos, lateral da Copa de 1958. Fiz um jogo e já entrei na seleção dos melhores.

O titular da posição durante toda a competição foi o De Sordi, não é?

Ele se machucou dias antes da final. O médico logo cravou: está fora do Mundial. Ainda não existia esse negócio de teste antes da partida. O pessoal da CBF informou que eu jogaria, e falei com o De Sordi. Não existia rivalidade, criamos uma amizade. Quando tínhamos o dia livre, saíamos todos. Fosse escalado ou não. Havia uma camaradagem que te deixava à vontade para treinar.

O que o Feola introduziu de diferente no modo de jogar?

Ele tinha vários esquemas, como o 4-2-4. Mas o principal era a conversa. Chamava o jogador no pátio e passava todas as instruções.

Naquela época, ainda não existiam as substituições durante o jogo. Porém, nota-se que o time foi bastante modificado ao longo da Copa.

Todas decisões da comissão técnica. Saiu o Joel, entrou o Garrincha. Saiu o Mazzola, entrou o Vavá. Saiu o Dida, entrou o Pelé. O Pelé, por exemplo, vinha bem e já estava recuperado de uma lesão sofrida num treino contra o Corinthians, após uma pancada no joelho dada pelo Ari Clemente[6]. O Garrincha saiu anteriormente do time por causa de um amistoso em Firenze, onde driblou o goleiro num lance, ficou na porta do gol e esperou o líbero chegar para driblá-lo novamente. Fez o gol, mas os dirigentes ficaram uma fera com ele. Disseram que não estava preparado para disputar uma Copa, sem o “espírito de seleção”. Mas as partes conversaram e ele voltou ao time.

Agora, a primeira partida após essa mudança foi o empate sem gols contra a Inglaterra. E a seguir vocês encararam a União Soviética.

Existia a questão da força física, todos grandalhões. Mas o Garrincha fez aquelas molecagens e arrebentou. O Zagallo, que discutia a organização do time com o Feola, recuava um pouco e fazia um bom papel perto do Nilton Santos. Enquanto isso, o Pepe ficava uma arara por não entrar em campo. Aí os soviéticos nos marcavam quase no nosso campo para acompanhar o Zagallo. Só que aí sobravam lá na frente Pelé, Vavá e Garrincha. Sempre levávamos vantagem no três contra três, na marcação homem a homem.

Depois, vem um dos jogos mais difíceis: 1 x 0 sobre o País de Gales.

Eles tinham uma defesa muito boa. Os irmãos Charles[7] eram grandalhões, quase três metros de altura. Só que o crioulinho (Pelé) fez uma boa partida e começou a aparecer mais. A nossa agilidade superava a impressionante altura deles.

A confiança do time foi aumentando com a vaga na semifinal. O que vocês conversavam?

Após os jogos, sempre havia uma reunião. Às vezes, o Zagallo, metido a treinador, ficava no quadro riscando. Aí trocávamos ideias para as coisas melhorarem.

Mas já se usavam esses quadros com botões?

O Feola não era muito adepto, preferia conversar. Vez ou outra, ele buscava. Já o Zezé e o Aymoré Moreira utilizavam mais. Igualzinha à prancheta do Joel Santana.

O Feola era um cara bem tranquilo, não?

Tranquilão, bonachão. Isso te inspirava a não ficar preso durante as partidas. Existiam umas histórias de que ele dormia às vezes, mas tudo folclore. Não vai colocar isso (risos)! É que ele sentava e roncava durante as viagens que o avião demorava a chegar. Tirávamos fotografia, e até tenho uma no álbum.

Aí vem o jogo contra a França: 5 x 2.

Seleção muito boa, com Fontaine[8] e Kopa[9]. Neste jogo, disseram que o Vavá quebrou a perna do Jonquet[10] propositalmente, mas foi sem querer. Após a partida, os dirigentes vieram falar conosco e propuseram mudar o local da concentração. Recusamos.

Passada a França, chega a vez da Suécia. E finalmente o senhor pode jogar. Bateu o nervosismo?

Não, pois me preparei. Ainda falei com o De Sordi que era o último jogo, o da fotografia. Não teve jeito. Eu estava treinando, bem fisicamente e mentalmente. Quando fui informado da escalação, já estava pronto. Dei sorte também, é claro. Mas aí a dizer que fui o melhor lateral da Copa… Bom, está na história.

Os suecos não ficaram chateados com vocês?

Eles notaram a superioridade brasileira. Lembro a primeira vez que fui para a Suécia, com a Portuguesa. O povo é muito hospitaleiro. Na rua, você não vê nada mal feito. A criançada vinha conversar com a gente. Quando íamos embora, se despediam. Fizeram festa. Ainda mais depois de darmos uma volta olímpica com a bandeira da Suécia após o apito final.

Como foi o retorno ao Brasil?

Costumo dizer que foi mais difícil voltar para casa do que conquistar o título. Os aviões não tinham essa autonomia de voo que têm hoje. Paramos em Lisboa, fomos ao estádio da Luz e eles confundiram o Assis com o Pelé. Agarraram o crioulo e só largaram quando viram que não era ele. Dali, fomos para Dacar. Descemos também em Recife, com chuva. Nos colocaram num ônibus e visitamos um clube. Voltamos ao aeroporto e nova escala, dessa vez na Bahia. Depois disso tudo é que desembarcamos no Rio. E para chegar ao hotel? Bacana aquele povo todo. A gente fazia as necessidades em cima do caminhão (risos).

Não podia parar nem para isto?

Não! Sei que levei umas dez horas no trajeto Rio-São Paulo. Parei no hotel às cinco da manhã, uma sujeira só. Às sete, peguei o avião para Congonhas. Aeroporto lotado, e lá fomos nós outra vez para um caminhão de bombeiros. No estádio do Pacaembu, os caras da Parada Inglesa me “roubaram” e me colocaram dentro de um carro. Já tinham se passado três dias da volta da Suécia.

E essa sensação de ter trazido o título e receber o reconhecimento do povo?

É bacana. Você vê o pessoal rindo, todo satisfeito. Lá na Suécia a gente imaginava a festa por aqui, aqueles “bebuns”. É motivo para beber mesmo. Mas é desculpa do “bebum” para beber. Eles gostam mesmo é da caninha (risos).

O senhor era mais disciplinado. Mas como se comportavam os seus companheiros?

Alguns gostavam de festa, e a gente controlava esse pessoal. Mostrávamos que tinha horário para tudo. O Garrincha, se deixasse… Era uma criança. Ele ia para onde a gente dissesse: “Vamos à igreja?” Ele ia. “Vamos dançar?” Ele ia. “Vamos beber?” Ele ia. Sempre queria alguém que o orientasse.

A vida mudou muito após o título mundial?

Nós ganhamos mil e uma coisas. Terreno aqui, casa ali. Até hoje não vi nada. Deram um terreno perto de Brasília e fui de carro conhecer. Cheguei numa estrada de tardinha e o cara me falou que ali era perigoso, que punham árvore no meio do caminho para segurar o carro e matar a pessoa. Não vou lá até hoje, e nunca achei o terreno. Falaram também de um em Santos. Não sei nadar, mas estou quase entrando no mar para achar. Quer dizer, as pessoas se aproveitaram bastante da situação. O que ganhei foi um carro.

Como foi o retorno para a Portuguesa?

A Portuguesa comprara o Canindé e precisava de grana. Então, eles me venderam para arrumar o estádio. Tive propostas do Corinthians e do Fluminense, mas fui negociado com o Palmeiras. Tinha amigos lá, como o Osvaldo Brandão e o Julinho Botelho. Fui muito bem recebido, mesmo com as pessoas dizendo que não aceitavam crioulo. Talvez eles fossem mais fechados, só que não tive nenhum problema quanto a isso. Fui até capitão.

Conte um pouco sobre essa experiência no Palmeiras.

Só tenho elogios ao Palmeiras. Não sei se eles têm queixa de mim. O time rivalizava com o Santos. Inclusive, fomos campeões paulistas em 1959. Jogamos três partidas contra eles: dois empates e uma vitória.

E logo depois, em 1960, vocês vencem a Taça Brasil e se classificam para a Libertadores da América.

Aí é que surge a “Djalmada”. Fomos a Montevidéu enfrentar o Peñarol. Fim de jogo e a bola na bica da área. No que a levantei, o cara meteu lá no ferro. Um a zero para os homens. Caíram de pau em mim. No Pacaembu, empatamos e eles foram campeões. Não fiz por querer, era uma mania que eu tinha de levantar a bola. Brasileiro não é mole, não aceita vice. O pessoal do Palmeiras até hoje fala que perdemos por causa da “Djalmada”.

E vocês se autorreferiam como Academia ou isto era coisa da imprensa?

Para nós, não tinha nada de Academia. Se não tacasse o peito, perdia o jogo. Tinha que correr, dar pancada e bico na bola. Jogava bonito quando o negócio estava resolvido. Foi bom que esse lance de Academia nunca subiu à cabeça e até hoje o palmeirense lembra com carinho dessa época.

No ano seguinte, nova Copa do Mundo e novo título. Dessa vez no Chile.

Foi uma responsabilidade a mais por estar defendendo o título. O time era quase o mesmo, só que com o Amarildo no lugar do Pelé. Fui titular, e o Mauro entrou no lugar do Bellini. Na concentração, o Aymoré Moreira, ainda em dúvida sobre quem escalar, chegou na roda em que estávamos eu, Didi, Bellini e Vavá: “Vou começar com o Bellini, que tem experiência.” Não nos metemos. Aí ele foi comunicar a decisão ao Mauro, que reclamou. Em seguida, ele volta a falar conosco: “Vou começar com o Mauro. Ele tá com uma moral…”

Defina o estilo do Aymoré Moreira.

Apesar de irmão do Zezé, muito diferente na maneira de falar, tratar e jogar. O Aymoré era falador, soltava umas barbaridades… Ainda mais naquele quadro negro dele, todo riscado. O Zezé montava um time na retranca, aproveitando o contra-ataque. Já o Aymoré preferia equipes ofensivas, com avanços pelas laterais.

Após vencer as Copas de 1958 e 1962, não era de se esperar um desempenho tão bom quanto em 1966?

Mas aí praticamente voltamos a 1954. Saí do Brasil com a sensação de que não daria certo por causa dos maus dirigentes. Os mais velhos já sabiam como funcionava.

E os dirigentes falaram alguma coisa após a eliminação?

Todos se calaram. Se o erro veio de cima, eles vão falar o quê?

Passado mais um Mundial, o senhor volta ao Palmeiras e conquista um título nacional em 1967. Porém, por conta de um acordo com o presidente do Atlético Paranaense, se muda para Curitiba no final dos anos 1960. Como foi a experiência?

Existia uma forte rivalidade entre Atlético e Coritiba, chamado de Coxa Branca por não ter negros no time. O Atlético tinha um campo ruinzinho e só jogávamos no Couto Pereira. Mas fomos campeões paranaenses dentro do campo deles, em 1970. Foi um período em que um monte de “neguinho velho” foi para lá, como eu, o Bellini, o Nair[11] e o Gildo[12]. Fora de campo, a vida era muito boa. Predominava a colônia italiana e alemã, havia um espírito europeu na cidade.

E como surgiu a chance de ser técnico?

No próprio Atlético. Comecei como atleta e treinador, mas depois parei de jogar bola. Só que o time não estava bom e eu tinha que dizer o contrário. Acabei dizendo que aquele time não tinha jeito, pois mentir não é do meu feitio. Fui para a Bolívia, onde peguei outro time horroroso. E o presidente achando que seríamos campeões. Depois, mesma coisa no Sport Boys, do Peru. Posso lhe dizer que a experiência de técnico não me agradou.

Nem na Itália?

Mas lá foi em uma escolinha e eu podia ensinar alguma coisa à criançada. Ajudava na parte disciplinar e tomava cuidado para não magoar os garotos. Eram cinquenta, mas apenas vinte iam para o jogo. Precisava explicar aos pais que o filho dele não iria por causa de nota baixa ou falta aos treinos. É uma relação mais lenta, só que funciona.

O senhor chegou a pensar na possibilidade de defender um clube do exterior como jogador?

Quase fui para a Lazio, da Itália, e para o River Plate, da Argentina. Mas tinha um pouco de receio, não sabia se me adaptaria ao exterior. Não conhecia nada da Itália, só fui para jogar. Na Argentina, achava que os caras eram meio invocados. Pensei também no lado familiar.

Sua dedicação ao futebol começou cedo, seja em treinos, jogos ou convocações para a seleção. O que gostava de fazer nas horas de lazer?

Procurava algo que não afetasse o meu preparo físico. Só ia à balada quando o intervalo de tempo era maior. Mesmo assim, sem exageros. Fui muito num bailezinho de crioulos nos Campos Elíseos, em São Paulo. Tinha uma mesinha lá, ensaiava uns passinhos de dança e voltava.

E o senhor se casou?

Casei após a Copa de 1958. Infelizmente, a mulher faleceu. Tive uma menina, a Laura, que mora em São Paulo e gostaria que eu fosse morar com ela. Fiz um grande círculo de amizades aqui em Uberaba, principalmente no Country Club. Em São Paulo, teria de fazer novas amizades e recomeçar. Isto é difícil, porque na capital você chega em casa, tranca a porta do apartamento e não quer mais saber de papo. Aqui eu vivo mais, os vizinhos estão todos na rua, você cumprimenta todo mundo, bate papo. Na minha idade, quero mais é tranquilidade.


[1] Equipe de várzea da Parada Inglesa.

[2] Victor Pablo Rodríguez Andrade foi lateral-esquerdo da seleção uruguaia na Copa de 1950.

[3] Paulo Machado de Carvalho, que dá nome ao estádio do Pacaembu, foi o chefe da delegação brasileira na Copa da Suécia.

[4] José de Almeida era observador técnico da seleção brasileira no Mundial de 1958.

[5] Lennart Skoglund fez carreira no futebol italiano, atuando por Internazionale, Sampdoria e Palermo.

[6] Ari Paulino Clemente da Silva foi lateral-esquerdo do Corinthians entre 1958 e 1964. A pancada a que Djalma Santos se refere ocorreu no dia 21 de maio de 1958, durante o último treino da seleção em solo brasileiro antes do embarque para a Suécia.

[7] John Charles fez carreira entre os anos 1940 e 1960 no Leeds United, da Inglaterra, e no Juventus, da Itália. Mel Charles, por sua vez, se destacou no Swansea, do País de Gales, e no Arsenal, da Inglaterra.

[8] O atacante Just Fontaine nasceu no Marrocos, mas atuou durante toda a carreira pela seleção francesa. Em 1958, marcou 13 gols em seis partidas do Mundial. Até hoje, nenhum jogador conseguiu igualar o recorde obtido pelo jogador.

[9] O meia-atacante Raymond Kopa disputou as Copas de 1954 e 1958 pela seleção francesa. Após iniciar a carreira no Angers, passou pelo Reims, também da França, e Real Madrid, da Espanha.

[10] O zagueiro Robert Jonquet foi capitão da seleção francesa na Copa de 1958. Na semifinal contra o Brasil, o camisa 10 sofreu dupla fratura do perônio e, mesmo assim, continuou na partida.

[11] Nair José da Silva era meia-atacante. Atuou por Botafogo-SP, Portuguesa e Corinthians antes de se transferir para o Atlético Paranaense.

[12] Gildo Cunha do Nascimento, o Gildo Bala, foi ponta-direita e também atuou com Djalma Santos no Palmeiras. Tem passagens por Flamengo e Santa Cruz.

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Bernardo Borges Buarque de Hollanda

Professor-pesquisador da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV).

Daniela Alfonsi

Antropóloga, Diretora Técnica do Museu do Futebol e doutoranda pela USP. Trabalha com e pesquisa sobre os museus esportivos.
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