A entrevista faz parte do projeto Memórias dos boleiros: histórias de vida de atletas e de integrantes de comissões técnicas brasileiras que atuaram no exterior. Esse projeto foi fruto de uma parceria entre LUDENS-USP, Museu do Futebol e o portal Ludopédio.

Esse projeto tem como proposta reunir as histórias de vida de jogadores de futebol e de integrantes das comissões técnicas que tenham atuado no exterior. Ao optarmos pela história de vida, teremos acesso a uma série de discursos até então pouco investigados. Isso pode ser verificado quando se recorre à história do futebol e se percebe que existe uma história que é considerada “oficial”. Essa pesquisa será uma forma de ampliar discussões sobre o futebol a partir da história de vida dos jogadores e integrantes das comissões técnicas. A história oral será o método adotado para a construção de um diálogo com o referencial teórico das Ciências Humanas, mais especificamente a produção da Antropologia, da História e da Sociologia. Por meio da história de vida, ainda será possível registrar memórias, histórias e experiências dos sujeitos mencionados, além da criação de um banco de vídeos com as entrevistas realizadas de modo a constituir um acervo para preservar a elaboração de tal memória, quer se refira de modo restrito à carreira dos mesmos, quer, de modo geral, ao futebol brasileiro.

 

Ewerthon. Foto: Museu do Futebol.
Ewerthon. Foto: Museu do Futebol.

 

Primeira parte

 

Ewerthon, fique à vontade para contar sua experiência de vida.

A minha história começa basicamente com quatro para cinco anos, jogando num time de bairro chamado Roque de Moraes, que era aqui da Casa Verde, e com sete anos eu fui para o Corinthians, indicado pelo árbitro que apitava meus jogos nessa época, e o irmão dele cuidava do campeonato interno dentro do Corinthians. E eu acabei indo, acabei não encontrando a pessoa, e na época estava tendo a peneira, tinha, acho, umas quatrocentas crianças, e dentro dessas quatrocentas eu treinei quinze minutos, e nos quinze minutos que eu treinei fui aprovado. E aí fiquei no Corinthians em todas as categorias de base, até o profissional.

Você nasceu aqui em São Paulo? Tem irmãos?

Sou daqui de São Paulo. Tenho dois irmãos: um mais velho, com trinta e cinco, e eu vou fazer agora trinta e três, e uma mais nova que faz trinta e um. É uma família bem tranquila, bem estruturada. Meu pai e minha mãe, graças a Deus, nos deram bastante educação, bastante vivência e o suporte para acreditar nos sonhos. Porque acho que você conseguir ser jogador de futebol é muito difícil. Você tem que acreditar bastante, tem que trabalhar bastante, ralar bastante, porque as dificuldades ninguém vê, todo mundo só vê a parte boa, que é a parte financeira, e, na verdade, poucos conseguem ter uma parte financeira dentro dessa profissão. Tem que ter uma grande estabilidade.

Você disse que começou a jogar muito cedo, com cinco anos. Como era essa relação com o futebol? Tinha alguém na sua família que jogava? Você frequentava jogos de várzea, alguma coisa assim?

Olha, na verdade, meu pai sempre foi apaixonado por futebol, essa é a grande verdade. Sempre foi apaixonado por futebol, e eu sempre gostei de bola. Eu sempre gostei de bola, não foi uma coisa que meu pai me induziu, foi uma coisa que naturalmente aconteceu, eu sempre gostei de bola. Realmente, a minha criação de jogar bola era nos campos de várzea, na rua, joguei muita bola na rua. Jogo bola até hoje. Quando eu estou de férias, acho que a coisa que eu mais faço é jogar bola. Então eu sempre gostei, não tive uma coisa induzida: “Você tem que fazer isso, porque tem que mudar uma realidade da sua família.” Não. Acho que meus pais sempre me deram apoio, me deram uma estrutura para eu acreditar no meu sonho, mas eu tinha que fazer algo que eu gostasse, e fazer com prazer. Essa foi sempre a obrigação dentro da minha casa: que os três tinham que praticar algum esporte, mas ter prazer de fazer. Então, acho que as coisas foram encaminhando, acho que era para ser, estava na minha linha de vida, no meu destino, ser jogador de futebol. Passei muitas dificuldades para chegar a ser um profissional. Então tudo que eu tenho, todas as coisas que acontecem na minha vida, eu valorizo bastante, porque chegar onde eu cheguei não foi fácil não.

A primeira peneira que você fez foi no Corinthians? E já deu certo?

Já foi no Corinthians. Eu, na verdade, na ocasião, eu tive um convite para ir pro Palmeiras e um convite pra ir pro Corinthians. Eu optei ir pro Corinthians, e, na verdade, foi uma coisa do destino, que tinha que acontecer, porque eu fui indicado por uma pessoa, cheguei a procurar a pessoa que eu tinha que encontrar, não encontrei essa pessoa, não a conheço até hoje, essa é a grande verdade. E eu estava ali, e no momento ia ter a peneira. Na verdade, quando fiz a peneira, eu treinei quinze minutos, os últimos quinze minutos, fiz a peneira, eu sou do ano 1981, fiz a peneira do pessoal 1979-1980, que eram garotos mais velhos, e acabou dando certo. O treinador gostou. Aproveitei a oportunidade, sou muito grato até hoje, sempre digo, ao Alceu Cristão, que foi meu primeiro treinador no Corinthians, e as coisas foram acontecendo. Fui passando de categoria em categoria, fui sempre me destacando, e com dezesseis para dezessete eu subi para o profissional.

Fale um pouco dessas dificuldades que você falou que teve que enfrentar até se tornar profissional.

Eu acho que todo garoto enfrenta. Você sai muito novo de casa. Você tem que abdicar da sua vida pessoal por uma coisa profissional, por um sonho. Eu falo: eu fui e sou um cara privilegiado porque acreditei num sonho, sempre gostei de jogar futebol, faço aquilo que gosto e sou bem remunerado para isso. Então eu falo: sou um homem privilegiado. E as dificuldades são as que todo garoto passa: você tem que acordar cedo, viajar, abrir mão da família muito cedo, ir para outros estados, outros países. É uma cobrança muito grande, essa é a grande verdade. Eu sou cobrado desde meus quatro, cinco anos de idade, e a cobrança externa e a cobrança interna vão sempre existir, essa pressão existe. Então é uma vida de sacrifício. A profissão de jogador de futebol é sacrificante, então todos que chegam hoje ao Real, eu sempre falo, até um jogador de quarta divisão ou aquele cara que gosta de jogar bola, que joga na várzea, é difícil, você tem que abrir mão de alguma coisa. E nós, claro, que somos profissionais de elite, que passamos por muitas coisas, abrimos mão praticamente da vida, você não vive, você joga, concentra, joga, concentra, viaja… Então você abre mão de muita coisa. Eu saí da minha casa, eu me recordo da primeira viagem que fiz, eu não sei se eu tinha uns dez, onze anos, e na ocasião minha mãe começou a chorar. Eu disse para ela: “Isso foi que eu escolhi para mim, não adianta chorar que minha vida é essa, vou ter que viajar, vou ter que ir”, e aconteceu. Você viu que eu passei mais de dez anos fora do país, vivendo sozinho, sem nenhum problema.

Em termos de condição econômica, também teve dificuldades de ter que pegar muito ônibus, muita distância, essas coisas?

Dificuldade não, acho que era questão da vida. Eu, até o momento, estava nas categorias de base do Corinthians, minha mãe sempre me levava, mas aí chega aquela idade que você quer ter sua independência, que começa aquela coisa de “os amigos vão ver você chegar com a mãe”. Você é adolescente, quer ir sozinho, e eu ia. Eu ia de ônibus, de metrô, andava a São Jorge toda, depois, à noite, eu tinha que estudar. Então esses são os sacrifícios que você tem que fazer e, graças a Deus, eu não reclamo. Eu aprendi bastante, eu acho que a vida me ensinou muita coisa, o futebol me ensinou muita coisa, as experiências que eu vivi, eu acho que pessoas de sessenta, setenta, oitenta anos não viveram o que eu vivi com, praticamente, trinta e três anos.

Fale então do momento que você se tornou profissional. A gente sabe que você conquistou a Copa São Paulo, pelo Corinthians. E depois disso? Fale um pouco dessa época da sua vida.

Na verdade, foi em 1999 que ganhamos a Taça São Paulo, mas desde 1998 eu já vinha no profissional, participando do elenco, entrando em alguns jogos, sendo cotado. A minha ida para o profissional foi muito rápida. Eu lembro que era 1998, estava tendo a Copa, e o Luxemburgo, que ocasião era meu treinador, não estava no Brasil. Ia fazer um treinamento profissional contra os juniores, e eu estudava à noite, e não sei por que motivo não aconteceu o treino, faltou um atacante, e nessa que faltou um atacante, na época o treinador era o Ladeira, eu já estava trocado para ir para o colégio, e ele falou para mim: “Pô, o pessoal foi embora, está faltando atacante, você não quer ir treinar?” Aí eu falei: “Pô, escola é o caramba! Lógico, é a oportunidade que eu tenho. Eu vou treinar!” E aí participei do coletivo. E nessa que participei do coletivo, eu treinei e treinei muito bem. Aí o Osvaldo de Oliveira, que eu sou muito grato até hoje, me viu, gostou, e na outra semana me chamou, e na sexta-feira também acabei treinando, fazendo o coletivo com eles. Na segunda-feira treinei normal no juniores. Na terça, quando fui pegar minhas coisas no armário, meu armário já não tinha mais nada. Aí perguntei para o roupeiro: “Pô, cadê minhas coisas, estou meio atrasado.” Ele falou: “Não, a partir daqui, você já não treina mais com a gente, você passa para o elenco profissional”. E aí é uma felicidade, claro, você é aquilo que você sonha, mas desse estágio até você chegar a jogar, você passa por tantas coisas, vê muitas coisas e tem que esperar bastante, porque na ocasião muitos jogadores estavam na minha frente, jogadores renomados, de peso, então eu cheguei a ficar quase um ano sem fazer um coletivo, treinava do lado de fora e não reclamava. “É o que eu gosto de fazer”, eu sempre falava para as pessoas. Não reclamo, eu sou dedicado e acreditava que quando eu tivesse uma oportunidade eu ia agarrar, e quando eu tive a oportunidade de me firmar, que na época foi com o Vadão, ele me deu a oportunidade, me firmei e fiz uma grande carreira no Corinthians. Basicamente assim que começou.

O que muda quando você passa para o profissional num clube? Como você lidou com isso?

Claro, você começa, e as pessoas te veem mais, olham mais, procuram mais. Eu acho que hoje essa coisa está muito rápida, avançou muito. Hoje você vê meninos com sete, oito anos de idade, que já têm empresário, já valem “tanto”, coisas que na nossa época não aconteciam. Na época, eu subi para o profissional, e teve a Taça São Paulo de 1998, que eu joguei, e nós fomos eliminados, acho que nas oitavas, mas eu fui bem e jogava no juniores, e acabei assinando com o Figer na época, e fiquei com o Figer até quando fui para a Alemanha. Quando cheguei na Alemanha, rompi com ele, sendo que até hoje quem cuida das minhas coisas é meu pai. Na verdade, até na ocasião não precisava de empresário, porque meu pai sempre cuidou das coisas, é uma pessoa bem inteligente, interessada e sabe viver os bastidores do futebol, só que fica aquela coisa: “Ah, se você não tem empresário, você não joga”. Bom, em alguns casos tem, não vou dizer para você que em todos, mas quando se entra nas quatro linhas, você pode ter o melhor empresário, você pode ter olhos azuis, ser loiro e ter um metro e noventa, se você não resolver, não jogar, não vai ter jeito, está todo mundo vendo. Nos bastidores existe, mas… Hoje existe muito mais, mas naquela época eu acho que não precisava. Depois que eu fui para a Alemanha, cheguei no Borussia Dortmund, acabei não tendo mais empresário, sendo que meu empresário é meu pai. Meu pai que cuida das minhas coisas, que resolve e faz meus contratos, e aí a gente não tem problema nenhum.

Então conta um pouco desse período que você se firmou no Corinthians até chegar essa proposta da Alemanha.

As coisas aconteceram muito rápido para mim, porque eu vinha do elenco de 1998 campeão, do elenco de 1999 campeão, mas, claro, nosso ataque era o Edilson e o Luizão. Eu sempre entrava, jogava dez minutos, vinte minutos, às vezes era cortado. Eu acabei indo, em 2001, para o sub-20, nós fomos campeões do Equador, e acabei voltando. Nessa que acabei voltando, era o Dario Pereira o treinador, ele saiu, e assumiu o Luxemburgo. Eu já estava jogando com ritmo de jogo e tudo. O Corinthians, na ocasião, tinha o Paulo Nunes, que a torcida não gostava, e o Paulo não estava numa grande fase naquele momento, e eu tive a felicidade de, todo jogo que eu entrava, fazia gol e dava passe para gol, entrava, fazia gol e dava passe para gol. Até me firmar. O Luizão acabou tendo um problema no joelho, acabou rompendo o cruzado, e aí só fiquei eu de referência. Aí veio o Gil, e nós formamos o ataque, eu e o Gil, e eu sempre indo bem. Acabei, assim, nesse campeonato paulista, sendo convocado para a Seleção Brasileira, disputar a Copa América, voltar e receber uma proposta do Betis a qual eu não quis, não me interessou. Logo em seguida, apareceu o Borussia Dortmund, e aí foi tudo que eu pedi, tudo tranquilo, cinco anos de contrato. Aí fui embora para a Alemanha.

Como foi ir para lá? Você foi sozinho, foi com familiares, era casado?

Não, não sou casado. Bom, primeiro eu fui sozinho, é claro, não tem como você levar ninguém. Minha irmã morou um ano lá, depois levei meu irmão, minha prima e o marido dela. Minha prima para cuidar da casa e cozinhar, porque eu sou uma negação na cozinha, não sei nem fritar um ovo. Meu irmão ficou um ano, aí meu irmão voltou, aí depois meus pais ficaram lá comigo. Depois acabei indo para Espanha também. A chegada é difícil, você tem que se adaptar, se adaptar a uma outra cultura, outro idioma, outras pessoas, outro clima, é difícil, não foi fácil a adaptação. Mas eu sempre gostei de desafios, eu sou um cara de desafios na minha vida, então, cheguei à Alemanha, tive a felicidade de chegar e, logo no primeiro jogo, o Matthias Sammer me botou para jogar, e dentro do jogo acabei dando passe para gol e fazendo um gol, e no segundo jogo a mesma coisa, sendo que no final da temporada acabei sendo coroado com o gol do título, acabei fazendo o gol do título do Borussia Dortmund. Fazia, aproximadamente, uns oito anos que não ganhava a Bundesliga, chegamos ao final da Copa UEFA e acabamos perdendo, mas meu primeiro ano foi muito bom. Já no primeiro ano consegui me adaptar, jogar, fazer gols e criar meu espaço dentro do time. Depois, passei mais quatro temporadas maravilhosas dentro do Borussia Dortmund.

Tinha a companhia de outros brasileiros no time?

Sim, tinha o Dedê, o Amoroso e o Vanilson, nós éramos quatro brasileiros. Isso também facilitou e ajudou bastante. Eu sempre digo que quem me ajudou muito nesse período de adaptação foi o Dedê, que o Dedê também era solteiro, então a gente ficava mais junto. Ele já estava na Alemanha há muito tempo, já falava alemão, então me ajudou, fora e dentro de campo.

O clube disponibilizava tradutor para vocês?

Sim, disponibilizou. É outra cultura, vamos dizer assim, um país de primeiro mundo. É um clube estruturadíssimo, sendo que a maior média de público da Europa há anos é do Borussia Dortmund. Tudo que eles combinaram no contrato, tudo que foi aceito, eles cumpriram. Não tenho uma vírgula para falar, “fizeram isso de errado”, não, fizeram tudo certo, me trataram bem, me deram casa, carro, professor particular, a maior estrutura para treinar, a maior estrutura para jogar, para viajar. A Europa é assim, não só o Borussia Dortmund. A grande maioria dos clubes europeus são assim, eles cumprem com aquilo que realmente está escrito. Viver na Alemanha, para mim, foi uma coisa maravilhosa, foi um aprendizado de vida tremendo. Eu digo: como ser humano, aprendi muito. Ter saído jovem do Brasil e ido para outro país, crescer e ver uma cultura totalmente diferente, se adaptar, aprender, viver e conhecer, fazendo amizades. É isso que a gente leva da vida.

Você aprendeu a falar alemão?

Aprendi. Na verdade, aprendi porque não tem como, você escuta todos os dias. Você tem que se comunicar. Já deu para vocês perceberem que eu gosto de falar, sou comunicativo, então se eu não falar, eu morro. Eu não tenho vergonha de errar. Estudei pouco, não vou falar para você que estudei muito, estudei pouco e aprendi o básico, depois aprendi no dia a dia. No dia a dia fui aprendendo e depois conhecendo as pessoas, e aí tive a felicidade de conhecer uma ex-namorada que eu namorei lá. Ela era da Mongólia e acabou aprendendo português para a gente se comunicar, ela comprou um livro e aprendeu português, falava comigo e começou a me ensinar alemão, e no dia a dia fui pegando, fui pegando, fui pegando e hoje não esqueço mais. Hoje não tenho dificuldade, é tranquilo, não vou falar para você que falo cem por cento fluente, mas falo bem, dá para comer, fome eu não passo.

Mas o que você fazia lá nas suas horas livres? Você ia viajar, conhecer a Alemanha?

Basicamente, a gente tinha um dia. Dentro desse dia eu ia bastante para Colônia, para Düsseldorf, que eram cidades mais próximas de Dortmund, ou para Oberhausen. No dia de folga, eu sempre gostei de me desconectar do meu trabalho, então, não vivenciar só minha casa, porque você fica muito refém, na Europa, de ficar em casa, porque você entra num período, e depois você tem um dia inteiro livre. Então, pelo clima, pela maneira das pessoas, não tem essa identificação que nem o brasileiro. Aqui, qualquer pessoa que vem de fora se sente muito acolhida. Nós não. Lá é cada um no seu espaço, cada um vive sua vida, e não tem muito essa coisa de amizade. Então, você acaba ficando muito, muito solitário. Nos meus dias de folga, eu pegava minha família e ia sempre para outra cidade, estar com amigos em outros lugares, tudo isso. Nunca tive dificuldade, sou um cara bem tranquilo, não sou de ter problemas com pessoas, sou bem sossegado.

E a torcida, como ela lidava com vocês? Vocês saíam para esses lugares, se encontravam, eles te abordavam?

Ah, normal. O assédio é normal. Você acaba se destacando e, na posição que eu jogo, claro, dá para se destacar um pouco mais, por se fazer os gols, é normal. Eles são educados, eles te abordam de uma forma educada, não é que nem aqui no Brasil, você está em qualquer lugar e o cara: “Ei!”, e já vem, você pode estar comendo, e ele não te respeita, você pode estar com tua família, mas você tem que dar atenção para ele na hora, se não der você é um mala, e ele te xinga. Eles são muito educados, vem com educação, pedem para tirar foto. Se você está jantando, eles esperam você acabar sua refeição para vir pedir. Então essa é uma forma mais educada, muito mais educada do que a que temos aqui.

Como era o relacionamento com os outros jogadores?

Ah, muito bom. Vou falar para você: eu tive a felicidade de cair em bons grupos e fazer amizade com bons jogadores, com boas pessoas. No começo, como você é brasileiro, você começa a ficar só com brasileiro, mas logo depois você acaba conhecendo, entendendo, conversando. Claro que é diferente a maneira deles, mas você acaba aprendendo e acaba respeitando eles também. Eu nunca tive dificuldade dentro do meu ambiente de trabalho, sendo que eu sempre brinquei, sempre dei risada, sou uma pessoa extrovertida, então sempre tive facilidade para fazer amizades, ter colegas, porque eu digo: a palavra “amigo” é muito forte. Mas para fazer colegas dentro do meu trabalho, dentro do grupo, não tive dificuldade, não, nenhuma.

Você sempre foi bem tratado por eles?

Sim, não posso reclamar de nada. Fui bem tratado. Não digo “bem tratado”, assim, sempre me trataram com respeito, porque era uma coisa que eu fazia com eles. Sempre respeitei todos, mas só podem jogar onze, e dentro do meu espaço eu brigava pela minha posição, então eu nunca tive dificuldade, mas, claro, quando você convive em grupo tem sempre um, dois, três, é normal você – não digo nem “não gostar”, não ter um feeling – você acaba não tendo feeling, e isso é normal. Quando você vive em grupo, têm umas pessoas com alguns pensamentos que você não concorda, então não tem feeling. Mas nunca tive problemas com colegas de trabalho, não.

Isso jamais interferiu dentro de campo, por exemplo?

Não. Olha, da minha parte não. Claro que é, vamos dizer assim, uma profissão em que existe muita vaidade, em que você está muito exposto. Existe muita vaidade, existe a mídia, as pessoas. Você faz uma coisa que praticamente o mundo inteiro quer fazer, principalmente o homem, então tem vaidade, tem pessoas que querem se destacar mais, que querem cobrar mais, tem pessoas que mantêm uma tranquilidade, tem pessoas que querem aparecer mais. É normal isso dentro do futebol.

Fale um pouco do período que você passou dentro do Borussia, de forma geral, das conquistas, das quase conquistas, até chegar o momento de você sair do grupo.

Bom, foi o que eu te falei. Dentro do Dortmund, tive a felicidade de chegar novo, desconhecido, e logo no começo mostrar realmente meu trabalho, quem eu era e me destacar. Joguei com grandes jogadores, em uma grande equipe. Conseguimos ser campeões alemães, eu tive a felicidade de fazer o gol do título, isso fica para toda a história, eu tinha um bom relacionamento com a comissão técnica, com os jogadores e com a torcida, então não precisa nem falar. Até hoje eu sou respeitadíssimo, sou adorado, e toda vez que eu entrava em campo, eles me aplaudiam, porque é uma maneira diferente, eles gostam muito de jogadores brasileiros. Quase ganhamos uma Copa UEFA, bateu na trave, perdemos para o Feyenoord Rotterdam, depois, nos outros anos, fizemos boas temporadas. Jogamos a Champions League. No momento, o Borussia está muito bem, mas no momento da crise eu estava lá, joguei dois anos do meu contrato ganhando vinte por cento a menos e acabei não largando o clube. Mas chegou um momento que já não dava mais, não tinha mais como eles me segurarem, porque eles não iriam renovar meu contrato, não tinham dinheiro para renovar meu contrato. Chegou uma boa proposta da Espanha para eles e, em comum acordo, é claro, deixaram bem aberto que se eu quisesse cumprir meu último ano de contrato não teria problema nenhum, eu sairia livre. Por gostar, pelo carinho, pela identificação que eu tive com o clube, eu acabei indo para a Espanha para eles ganharem um bom dinheiro comigo, porque eu estava no meu último ano de contrato, e era uma proposta boa para eles. Eu também tinha um sonho de jogar na Espanha, então tudo aconteceu assim. Tinha que acontecer, eu tinha o sonho de jogar na Espanha e acabei recebendo a proposta do Zaragoza, onde fiz cinco anos de contrato e também fui muito feliz lá.

Como foi essa mudança de país?

E aí você começa tudo de novo. Vamos lá, começar tudo de novo. Eu vou dizer para você: se eu pudesse realmente ter continuado na Alemanha, eu acho que eu estaria na Alemanha até hoje, esta é a grande verdade. Pela situação eu tive que mudar e recebi mais uma proposta, mais cinco anos de contrato, um contrato financeiramente maravilhoso, então você não pode abrir mão. É o campeonato, praticamente junto com o inglês, mais visto, é a liga mais importante que tem na Europa, e a forma de se jogar é muito mais parecida com a nossa. Quando eu recebi a proposta não pensei duas vezes, eu aceitei e mudei. A mudança foi tranquila, porque o difícil foi minha saída do Brasil para a Alemanha, da Alemanha para a Espanha não, porque eu já estava acostumado, falar espanhol é a mesma coisa que português. O clima nos favorece muito mais, e a maneira do espanhol, da vida, é muito semelhante à nossa. A mudança no aspecto pessoal foi melhor, mas, claro, no aspecto profissional ela foi boa, mas questão da organização, dos estádios, dos horários, daquela disciplina que eu tinha na Alemanha, na Espanha eu não tive, é totalmente diferente.

Como era na Alemanha?

Na Alemanha, na minha época, porque hoje até mudou um pouquinho, você jogava sábado às três e meia da tarde ou no domingo, tinha dois jogos domingo, às cinco horas da tarde. Na Espanha não, na Espanha você pode jogar no sábado tanto às cinco horas da tarde como às dez horas da noite. Você pode jogar no domingo tanto ao meio dia como às nove horas da noite, é totalmente ao contrário. A forma de eles viverem é outra coisa. O alemão é muito sério, o espanhol não, vamos dizer assim, como nós latinos, as pessoas latinas são mais festeiras, mais “oba-oba”, é muito mais assim, esse lado deles é mais aberto. O alemão não, o alemão é bem centrado, bem focado naquilo que eles têm que fazer. Então essa foi a maior diferença que teve entre os dois países, mas jogar na Espanha para mim foi um prazer, sendo que tenho coisas lá até hoje, tenho amigos lá até hoje. A maioria das minhas coisas financeiras está lá até hoje, tenho cidadania espanhola… Daqui a pouco eu tenho uns dias de folga, se me dá na cabeça vou embora para Barcelona, para Madrid, e me viro como se eu estivesse morando em São Paulo, então para mim foi muito bom, foi outra experiência de vida. Claro que com muito sacrifício, com muito custo, mas você aprende a viver, a se integrar dentro do país, e viver na Espanha é tranquilo, é bom, muito bom.

Apontando todas as diferenças que você falou, o relacionamento com as pessoas, com os espanhóis, foi melhor nesse sentido? Teve um relacionamento com eles que na Alemanha já não acontecia ou não?

Não, porque me dei bem nos dois lugares. Claro que eu sempre tive uma coisa só minha, não sei por que, eu não sei te explicar, eu sempre tive meus amigos, colegas, vamos dizer assim, meus colegas são todos fora do futebol. Isso eu não posso te dizer o porquê. Claro, tenho amigos dentro do futebol, tenho contato, tudo, mas meus amigos eram fora do futebol, não eram jogadores, não viviam o que eu vivia, eram pessoas normais. Sempre foi assim dentro da Alemanha, da Espanha, eu sempre tive isso. Então, contato de trabalho você tem, mas no contato pessoal e na minha vida privada eu sempre tive outra visão, eu não tive problema nos dois países, graças a Deus, não tive problema não, e dentro de grupo também não. Claro que o espanhol é mais aberto, claro que o espanhol é mais… Vamos dizer assim, diferente do alemão, é mais falso, normal, mas você tem que viver, tem que aprender, e é assim. O único país em que as pessoas que vêm de fora são bem tratadas e são tratadas melhor do que nós é o Brasil, se for ver lá fora, pode ter certeza que isso não acontece, não.

Lá na Espanha também, nas suas horas livres, você fazia o quê? Você ia viajar? Você tinha amigos brasileiros lá?

Bom, na Espanha, quando eu cheguei, de brasileiro tinha eu, o Sávio e o Álvaro, o zagueiro. Na Espanha, eu acho que acabei viajando mais do que na Alemanha, porque na Espanha, como eu cheguei no Zaragoza, e o Zaragoza não jogava as competições europeias, então eu só jogava nos finais de semana. No meu dia livre, eu sempre estava em Barcelona, em Madrid, em Valência. Você acaba viajando, é normal, você vai começando a fazer amizades, conhecer as pessoas, criar, assim, um ciclo em que um amigo mora em Sevilha, aí você fala: “Pô, vou para Sevilha.”. Então eu sempre viajei bastante, viajei bastante dentro da Espanha, conheço bastante a Espanha.

Você procurava ir a lugares turísticos, históricos, restaurantes?

Turísticos sim, restaurante normal, já te disse, não sei cozinhar nada, não tem jeito. Coisas turísticas, ver, aprender, ter amizades. Foi o que eu consegui: ter bons amigos fora do Brasil. Eu até brinco com minha mãe: “Eu tenho mais amigos lá do que aqui”, essa é a verdade. Você vai para aprender… Eu morei em Barcelona. Claro, quando eu chego, quero conhecer a história de Barcelona, conheci um, dois, três dias. Depois, é o dia a dia, você vai aprendendo, conhecendo. Conhece pessoas, restaurantes, conhece um pouquinho da noite, bons bares, bons shoppings, e você acaba vivendo uma vida normal.

Lá você também era reconhecido pelas pessoas?

Sim, normal. Eu jogava o Campeonato Espanhol, tive a felicidade, no primeiro ano, de ser considerado o melhor jogador estrangeiro da Liga Espanhola. Tivemos a felicidade de, na sequência, na Copa do Rei, eliminar o Atlético de Madrid, o Real Madrid e o Barcelona, e nos três jogos eu estava fazendo gol, fiz vinte e um gols na temporada. Então as pessoas veem porque elas gostam muito de futebol. É normal ver, mas foi o que eu te falei, é uma coisa mais tranquila, o complicado é aqui, no Brasil, porque a cobrança é muito grande, a cobrança é muito forte. Aqui você não tem tempo para nada, você não pode fazer nada. Aqui você não pode ir com um amigo ali no bar tomar uma cerveja, porque, se joga em um dos times grandes daqui, perguntam: “Por que o cara toma uma cerveja?”. As pessoas não entendem muito, por aqui só se visa a parte financeira do futebol, sendo que a parte financeira é importante, só que aquilo que abrimos mão, aquilo que não temos, é maior do que a parte financeira. Porque dinheiro é bom, está lá no banco, você quer comprar uma camisa, uma calça, um tênis, um carro, está ali, está legal, bacana. Mas e a vida? E você viver? Porque a grande maioria das pessoas, dos trabalhadores normais, trabalha de segunda a sexta, a sua quinta e sexta tem seu happy hour, e no sábado e no domingo está livre, e o jogador não. Só que vivemos em uma sociedade que recrimina muito os altos salários dos jogadores. Na verdade, a grande minoria dos jogadores ganha bem, a grande maioria ganha mal. Mas se você comparar um jogador de futebol que ganha x por mês a um trabalhador normal, claro que a diferença é essa, só que é uma questão de profissão. Não dá para jogar um cara normal com um jogador de futebol, é muito controverso, então não tem essa coisa. Lá fora não, lá fora eles respeitam, é outra educação. Lá fora você ganhou, perdeu ou empatou, você pode sair, normal, você pode ir ao restaurante, você pode sair no meio da torcida, você pode parar e dar um autografo, eles são educados. Aqui não, aqui você perde um jogo no domingo, você não pode nem sair do estádio, já passei por isso, não pode nem sair do vestiário, que o cara quer te matar, você vai ao restaurante, o cara te xinga, você vai botar gasolina, o cara torce para um determinado time e já te xinga. A cultura brasileira é essa, você vê que nossa cultura é tão atrasada e tão ruim, sendo que até hoje você vê torcedores rivais se matando por causa de futebol. São coisas lamentáveis, não existe. Acho que a cultura do futebol pentacampeão e do Brasil já deveria ter mudado há muito tempo, mas infelizmente não muda, porque vivemos num país em que tudo se dá um jeitinho, tudo que é ruim torna-se bom, essa é a diferença, o Brasil é assim.

Quais outras experiências você se lembra de ter na Espanha, dentro de campo, além dessas que você tem tido? Foi artilheiro, foi escolhido melhor jogador estrangeiro. O que mais dentro de campo te chamou atenção, você se lembra?

Bom, é a forma tática, forma de treinar, forma dos treinamentos. Vamos dizer assim, jogávamos no domingo, segunda tem folga, treinávamos terça, quarta e quinta. Quinta à noite era sagrado ter o jantar do time, todos os jogadores iam, todos saiam, todos bebiam, todos iam para a balada. Na sexta de manhã, você chega e, se você quiser treinar, você treina, se não quiser treinar, fica no vestiário e vai embora para casa. Sábado de manhã treina e domingo vai para o jogo. Lá não tem concentração, aqui já tem, você entendeu? São essas coisas que aqui no Brasil não se vive, claro, pela mentalidade. Aqui também, não vamos falar: “Ah, não tem que existir concentração!” — aqui, se você não deixar a concentração, daqui a pouco o cara está morto ali, é a grande verdade. Mas é a cultura, eles são educados para isso. Você automaticamente tem que ser uma pessoa educada e responsável com aquilo que faz e você entra no sistema que existe lá.

Você teve alguma lesão?

Eu tive uma lesão só aqui no Brasil, quando eu estava no Palmeiras. Eu acabei rompendo a cartilagem. Uma coisa que eu tinha para ficar fora três meses, fiquei um mês e dez dias e já estava voltando, mas eu nunca tive contusão grave, que eu ficasse muito tempo sem jogar, não, graças a Deus.

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Bruno Jeuken Souza

Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo, pesquisador do NAP-Ludens, caipira e santista (graças a deus!).

Paulo Nascimento

Professor de História.

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