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Fabio Franzini

Equipe Ludopédio 5 de maio de 2010

A entrevista com o professor Fabio Franzini foi realizada no Centro Cultural São Paulo. Franzini atualmente é professor do curso de História da UNIFESP. Em seu mestrado estudou As Raízes do País do Futebol: Estudo sobre a relação entre o futebol e a nacionalidade brasileira (1919-1950), do livro Corações na Ponta da Chuteira: Capítulos Iniciais da História do Futebol Brasileiro (1919-1938), da editora DP&A (2003) que é fruto de seu trabalho de mestrado. Publicou inúmeros artigos sobre o tema futebol, entre eles: Futebol é “coisa para macho”? Pequeno esboço para uma história das mulheres no país do futebol disponível em nossa biblioteca.

 

O futebol no Brasil é algo bastante massificado e como algo de grande importância, porém o futebol estudado pela academia foi frequentemente rotulado como algo menor e, portanto, menos importante. Como foi construído o seu interesse acadêmico pelo universo futebolístico? Essas questões interferiram no andamento da pesquisa?

Acho que o mais correto, no meu caso, seria dizer que meu interesse acadêmico pelo futebol não foi “construído”, mas “achado”. Ao que me lembre, nunca ouvi qualquer menção, direta ou indireta, ao futebol em sala de aula durante a minha graduação. Fora, é claro que se falava muito dele, mas, em geral, com o discurso do torcedor. Lembro de uma ocasião que ilustra isso muito bem, eu acho: eu estava na lanchonete do velho prédio dos Departamentos de História e Geografia da USP e vi, junto à máquina de café, um Professor bem conhecido (não adianta que eu não vou falar o nome…) numa discussão acalorada com alguém que tinha cara de aluno de pós-graduação; como parecia que a revolução estava para começar e eu não queria perdê-la, não hesitei: pedi um café só para ter motivo de encostar ali perto e sacar o que estava acontecendo. Bem, vocês podem imaginar a minha surpresa quando percebi que o motivo daquela conversa tão exultante era o posicionamento tático do Caniggia na seleção da Argentina!!! (risos) Que decepção! (risos)

O pior, devo confessar, é que por um bom tempo eu também não achava o futebol lá muito importante, digno de ser tomado como objeto de estudo da História. Não que eu não gostasse de futebol, não é isso (como tanta gente, eu também já quis ser jogador), mas pensava, com a presunção típica de um aluno de graduação, que seria mesmo muito, sei lá, “pequeno” estudar o futebol quando havia tanta coisa mais “relevante” a ser pesquisada, como os cursos, as leituras, as discussões e conversas acadêmicas aparentemente me mostravam. O problema, também típico de um aluno de graduação, é que eu me interessava por várias coisas, vários temas, vários períodos, e simplesmente não conseguia definir com clareza e precisão um tema e um objeto para estudar. Assim, mesmo tendo participado, por cerca de um ano, de um grupo de estudos montado e coordenado pelo Professor István Jancsò (recentemente falecido, para minha profunda tristeza) que se dedicava à análise da formação dos Estados nacionais latino-americanos, numa experiência que foi fundamental para minha formação, cheguei ao final da graduação um tanto perdido, com muita vontade de ir para o mestrado, mas sem saber o que estudar, o que propor como projeto de pesquisa. Um belo dia, em meados de 1993 (meu último ano de graduação), no intervalo de uma aula, eu e um colega de turma conversávamos sobre as eliminatórias da Copa do Mundo, que então ocorriam, e as discussões que, para variar, envolviam a seleção brasileira. Não me recordo mais do que falávamos especificamente, acho que tinha algo a ver com as crônicas futebolísticas do Nelson Rodrigues, que acabavam de ser publicadas, mas me lembro bem que, lá pelas tantas, ele me disse: por que você não estuda o futebol no mestrado? Também não me lembro o que respondi na hora, só sei que a ideia ficou martelando na minha cabeça por um bom tempo, pouco a pouco foi tomando forma melhor definida e, enfim, me convenci de que poderia mesmo ser algo interessante e instigante a ser feito. Evidentemente, até formular o projeto que me levou ao mestrado e, claro, ao trabalho que dele resultou não foram poucas as voltas que dei, mas sobre isso acho que cabe falar depois.

Agora, com relação ao preconceito acadêmico (vamos chamá-lo assim) frente ao futebol, eu seria muito injusto e desonesto se dissesse que ele interferiu em meu trabalho de algum modo. Claro, sempre ouvi piadinhas, principalmente de amigos (afinal, amigo é para essas coisas…), do tipo: “quando é que você vai estudar uma coisa séria?”, “a Fapesp agora financia até pesquisa sobre futebol?”, por aí. Também acontecia direto uma coisa curiosa, essa mais frequente no círculo de colegas dos cursos que fiz na pós, mas que não deixa de expressar, ou melhor, trair o preconceito com o tema: naqueles momentos inevitáveis em que alguém me perguntava “o que é que você estuda?” e ouvia a resposta “o futebol no Brasil”, o comentário mais comum, com brilho nos olhos, era: “ah, a Copa de 70, na ditadura?”. Quando eu explicava que não, que me voltava à primeira metade do século, era nítida a decepção e a incompreensão do meu colega, que, quando muito, perguntava “por quê?” de modo protocolar. Ou seja, fora o uso político do futebol, que supostamente só teria acontecido em 1970, o que mais poderia interessar a um historiador? Por outro lado, entre os Professores e em encontros acadêmicos, nunca fui questionado sobre a legitimidade do meu trabalho; ao contrário, sempre encontrei grande incentivo e interlocutores extremamente dispostos a colaborar com ele, a começar de meu orientador, o Professor Nicolau Sevcenko, que, com sua inteligência e sensibilidade avassaladoras, viu em meu projeto possibilidades que nem eu mesmo tinha me dado conta ao prepará-lo.

Fabio Franzini
Fabio Franzini, autor do artigo “Futebol é “coisa para macho”? Pequeno esboço para uma história das mulheres no país do futebol. Foto: Sérgio Settani Giglio.

Você iniciou o seu mestrado em 1995 e terminou em 2000. Como constituiu a busca e consolidação de suas principais referências num momento em que os estudos dos pesquisadores começava a se interessar pelo tema futebol?

Pois é, isso é interessante. Quando eu comecei a fazer o levantamento bibliográfico e as primeiras leituras sobre o tema, em 1993 (dois anos antes, portanto, de ingressar no mestrado), havia pouquíssima coisa publicada sobre o futebol por acadêmicos, que cito de memória facilmente: o livro do sociólogo Waldenyr Caldas, O Pontapé Inicial; o livro organizado pelo antropólogo Roberto DaMatta, Universo do Futebol; um artigo do próprio DaMatta, “Futebol: ópio do povo ou drama de justiça social”, que saiu na Novos Estudos Cebrap; os livrinhos (sem menosprezo, muito pelo contrário!) dos historiadores Joel Rufino dos Santos, História Política do Futebol Brasileiro, e José Sebastião Witter, O que é Futebol, publicados pela Brasiliense em suas valorosas coleções “Tudo é História” e “Primeiros Passos”; o livro organizado pelo próprio Witter com o também historiador José Carlos Sebe Bom Meihy, Futebol e Cultura; e o livro da antropóloga – se não me engano – norte-americana Janet Lever, A Loucura do Futebol. Se havia outras coisas, eu não conhecia então. Um bom indicador do estado em que andavam, ou não andavam, as pesquisas sobre o tema era o fato de que o livro clássico de Mario Filho, O Negro no Futebol Brasileiro (que tem vários equívocos, como demonstra o belo trabalho do Antonio Jorge Soares, mas, ainda assim, um clássico), estava com sua segunda edição, de 1964, esgotada havia muitíssimo tempo, sendo encontrada somente em algumas bibliotecas e, eventualmente, em sebos (a preço de ouro, nem é preciso dizer). Por outro lado, o clima de Copa do Mundo e, sobretudo, a vitória do Brasil em 1994 fez com que muita coisa associada ao futebol passasse a ser publicada, em sua maioria oriundas do jornalismo esportivo, caso das crônicas do Nelson Rodrigues, que mencionei antes, mas também despontando aqui e ali algumas pérolas, como a reedição do próprio Mario Filho, ou um texto dos anos 50 (1956, se não estou enganado) do crítico Anatol Rosenfeld, “O futebol no Brasil”, que saiu num livro horrorosamente intitulado Negro, Macumba e Futebol. Agora, as referências principais foram garantidas pelos historiadores que estudaram, de diferentes maneiras, o Brasil da primeira metade do século passado e mesmo de fins do XIX, em particular (mas não exclusivamente) aqueles dedicados à sociedade e à cultura – trabalhos como os de José Murilo de Carvalho, Alcir Lenharo, Marly Motta, além do próprio Nicolau. Ao mesmo tempo, procurei estabelecer um diálogo, que se mostrou importantíssimo, tanto com a historiografia acerca dos nacionalismos e suas invenções de tradições (Hobsbawm, Anderson) quanto com a antropologia cultural (o trabalho de Hermano Vianna, O Mistério do Samba, me foi fundamental, por exemplo).

Bem, todas essas referências, extremamente sólidas, me permitiram algum conforto na pesquisa e na análise das fontes, as quais, desde o início, procurei diversificar ao máximo: crônica esportiva, cobertura jornalística, gravações de vários tipos (depoimentos, narrações, músicas), literatura, memórias, por aí, chegando até aos diários de Getúlio Vargas e à correspondência da embaixada dos EUA no Brasil na década de 1930. Ou seja, na pesquisa acadêmica, científica, quando não há nada estabelecido por si, a gente cria alternativas ou desiste, não há segredo, e foi o que eu procurei fazer. Não só eu, aliás, mas um monte de gente (um monte mesmo!) que também lidava com o tema ao mesmo tempo que eu, que se deparavam com as mesmas, ou semelhantes, dificuldades, que tinham de dar conta das suas questões e hipóteses de trabalho particulares e que, enfim, o fizeram muito bem. E aí, para voltar à pergunta de vocês e ao início da minha resposta, é curioso notar que, se quando comecei a pesquisa havia uma meia dúzia de textos acadêmicos sobre o futebol, quando a acabei, no final da década, já não dava mais para mapear com tranquilidade tudo o que havia sido e vinha sendo produzido por historiadores, antropólogos, sociólogos (como esquecer do querido Professor Maurício Murad, seu Núcleo de Estudos sobre Futebol na UERJ, a revista Pesquisa de Campo?), geógrafos e outros. O futebol, é evidente, ganhava assim legitimidade acadêmica, status de “importante”, e devo aqui fazer mais uma confissão e dizer que me orgulha muito saber que faço parte de uma geração intelectual que, de certa forma, provocou essa mudança.

Fabio se orgulha de fazer parte da geração de intelectual que estuda o futebol. Foto: Sérgio Settani Giglio.

Em sua dissertação de mestrado, publicada em 2003 no livro “Corações na ponta da chuteira: capítulos iniciais da história do futebol brasileiro (1919-1938)”, você analisa um período decisivo dentro do universo futebolístico brasileiro, bem como da vida política-cultural nacional. Quais características e elementos futebolísticos o levaram a escolher este período para a pesquisa?

Bom, me permitam só uma pequena correção: meu livro traz apenas uma parte da dissertação, o que explica, inclusive, seus títulos não serem os mesmos (o da dissertação é “As raízes do país do futebol: estudo sobre a relação entre o futebol e a nacionalidade brasileira, 1919-1950”). Não que eu não quisesse publicá-la toda, mas, quando surgiu a oportunidade, foi para uma coleção, “Passado Presente”, organizada pelos Professores João Paulo Garrido Pimenta e Andréa Slemian, nos moldes da “Tudo é História”, o que implicava, entre outras coisas, um limite de páginas não muito extenso. Assim, optei por pegar os dois primeiros capítulos apenas e desdobrá-los em quatro – esse é o livro. Os outros dois permanecem, em sua forma original, inéditos, embora eu já os tenha aproveitado para alguns artigos.

Com relação à definição do recorte, quanto mais o tempo passa e eu, além de mais velho, fico mais experiente na profissão, se consolida em mim a certeza de que o pesquisador escolhe o tema tanto quanto “é escolhido” por ele. Não no sentido de “destino” ou qualquer coisa assim, metafísica, e sim por conta da reflexão própria ao trabalho de pesquisa; como sempre digo, não conheço ninguém que tenha concluído uma pesquisa exatamente do modo que projetara, e é às suas adequações, ajustes, derivações, reelaborações que me refiro quando digo que o tema também nos escolhe, pois tais mudanças nascem, de certa forma, a partir de dentro da própria pesquisa. No caso de meu trabalho, as muitas voltas que dei até chegar ao projeto que se mostraria o seu fio condutor expressam isso. De saída, eu tinha apenas uma certeza, a de que não queria estudar o Brasil campeão do mundo, pois a minha questão era justamente entender o caminho pelo qual o nosso futebol pode alcançar a consagração – ou, como escrevi mais tarde na introdução da dissertação, como um esporte criado pelos ingleses pode se enraizar tão profundamente por aqui, a ponto de ser visto como um elemento que nos identifica como povo, como sociedade. Isto significava, em primeiro lugar, problematizar a narrativa linear e pacífica, que ainda hoje se manifesta aqui e ali, segundo a qual Charles Miller trouxe o futebol para o Brasil, com o tempo ele “naturalmente” caiu nas graças do povo e, desde então, vivemos felizes para sempre, como se não houvesse tensões, contradições, conflitos nesse processo – ou seja, como se fosse uma história esvaziada nada mais, nada menos, de historicidade.

Comecei, então (de maneira um tanto óbvia), pelo contraponto da vitória: a derrota, a maior de todas, o mítico maracanazo de 1950. Cheguei a escrever um projeto nesse sentido, com o qual me inscrevi, em 1994, na seleção para o mestrado em História da Unicamp. Lá, o projeto deveria ser apresentado e, mais importante, defendido perante uma banca, que, no meu caso, foi composta pelos Professores Adalberto Marson, Alcir Lenharo e Maria Clementina Pereira Cunha. Bom, para ser sucinto, a banca fez o seu papel (como seria de se esperar), eu não soube defender o projeto e, embora os arguidores reconhecessem nele algum potencial (generosidade deles, é claro), não fui aprovado, lógico. Lógico também que fiquei então muito frustrado, mas o projeto era mesmo muito fraco, e o reformulei totalmente nos meses seguintes, recuando no tempo para ampliar seu alcance. Nesse movimento, ainda me pautava pelas Copas do Mundo, evidentemente por conta da associação simples, fácil, direta entre nações e seleções, e delimitei o recorte temporal entre 1930 e 1950. Foi esse o projeto que apresentei ao Nicolau, na USP, que foi aprovado em 1995 e que deu início efetivo ao trabalho, o qual sofreria, ainda no primeiro ano do mestrado, mais um recuo no tempo, para 1919, ano em que a seleção conquistou seu primeiro Campeonato Sul-Americano, sem dúvida alguma um marco na história do futebol no Brasil e já um momento de mobilização social muito semelhante ao que se vê até hoje quando o escrete (para falar como os cronistas do passado) disputa uma competição importante. Nesse processo, consegui, ou pelo menos acho que consegui, mostrar “as raízes do país do futebol”, como coloquei no título da dissertação, raízes que, como é comum na natureza, nem sempre são visíveis, mas, mesmo assim, são literalmente vitais para a planta que sustentam. Só não sei se tudo isto responde ao que foi perguntado (risos).

Como observar uma possível identidade nacional engendrada no período analisado por meio do futebol?

Acho que o mais interessante em estudos como o meu, como o do Leonardo Pereira, do Plínio Labriola e outros, é que eles mostram, por diferentes vieses, como uma identidade, e não a identidade, se constroi a partir de um amplo sistema de relações sociais, culturais, políticas, algumas antigas, outras recentes, que convergem para e se condensam em um elemento – não sei se esta é a melhor palavra, mas não me ocorre outra – específico presente na sociedade. Esse elemento, no caso, é o futebol, que, por sua vez, quando associado a símbolos da nacionalidade, transforma-se ele próprio em mais um símbolo, o qual apaga as diferenças reais de vária natureza em nome de algo tão perfeito quanto idealizado. Estou me referindo, é claro, à seleção, mas quero chamar a atenção para o seguinte: a seleção é “apenas” a síntese desse processo, que não se esgota nela; se assim fosse, e estou sendo caricato, o “país do futebol” só existiria de quatro em quatro anos, e sabemos que não é isso que acontece. É de baixo para cima que se dá o movimento, e não o contrário. E, como em todo processo de construção de identidades, neste também as inúmeras diferenças de gênero, de classe, do que for, se apagam em nome de um ideal, de um símbolo maior, a nação representada em onze jogadores, como escreveu Hobsbawm. Antes mesmo da conquista de 1919 isso já se percebia, como o livro do Leonardo, fantástico, demonstra com refinamento analítico e ampla documentação. Quando, nos anos 30, coincidem o surgimento da Copa do Mundo, o desenvolvimento do rádio, a afirmação da crônica esportiva, um regime nacionalista-autoritário e, claro, a consolidação das próprias estruturas futebolísticas nativas, pronto: esse caldo engrossa definitivamente. Então, ao contrário do que às vezes se pensa, não foram as vitórias, os títulos que forjaram a identidade futebolística do Brasil, mas o contrário: graças a essa identidade, construída desde as primeiras décadas do século passado, é que as vitórias e os títulos puderam ter um sabor especial, de afirmação do país perante o mundo e a si mesmo.

Fabio Franzini
Fabio Franzini analisou a inserção  da mulher no universo futebolístico. Foto: Sérgio Settani Giglio.

Outro tema que permeia as relações construídas neste período é o da integração social através do futebol. Como analisar essa discussão que perpassa pelos temas do racismo, ascensão sócio-econômica, amadorismo versus profissionalismo, entre outros?

Essa, na verdade, é a discussão! É impossível analisar boa parte da história do futebol no Brasil, senão toda ela, sem levar em conta tais temas. E se engana quem pensa que eles remetem a um tempo que não existe mais, pois, a meu ver, continuam aí, sim. Não é porque pouco se discute o racismo no futebol – e, por extensão, na sociedade brasileira – que ele não exista, que o mote sirva apenas para relembrar as críticas de Lima Barreto ao ludopédio (ops!), lá na década de 1920. Da mesma forma, a existência de jogadores-celebridades não pode obscurecer o fato que a maioria dos jogadores de futebol brasileiros mal se sustenta. Ou ainda, de que “profissionalismo” estamos falando quando nos referimos ao futebol brasileiro? E, enfim, para piorar de vez, o que significa exatamente “futebol brasileiro”? Embora eu mesmo já tenha usado esta expressão aqui sei lá quantas vezes e ela apareça até no subtítulo do meu livro, tenho certa implicância com ela, pois é mais preciso, acredito, falar em “futebol no Brasil”, algo que se manifesta de incontáveis modos e não se esgota em suas formas institucionais.

A integração social pelo futebol, assim, não deixa de ser, em larga medida, uma ilusão, mas uma ilusão que, para aqueles diretamente envolvidos nela, vale a pena ser vivida. Eu mencionei antes o Anatol Rosenfeld, e lembro agora uma frase fantástica dele em seu texto “O futebol no Brasil”, num trecho em que ele comenta justamente a passagem do amadorismo para o profissionalismo, se minha memória não me trai: com essa passagem, segundo ele, “dar pontapés numa bola era um ato de emancipação”. Bonito, né? Só que ele escreveu isso na década de 1950, e hoje continua válido para muita gente, que, obviamente, não deve ter lá muitas outras chances efetivas de “emancipar-se”, ou seja, sair de uma posição social subalterna, senão marginal. Mais uma vez, caímos no tema da identidade que nivela, que esconde, que descarta as diferenças e a pluralidade – óbvio, porque, do contrário, ela não se sustentaria!

Em alguns artigos, você analisou também a inserção da mulher no universo futebolístico, marcado por uma identidade masculina. Quais são as principais questões que podem ser levantadas sobre a presença feminina dentro e fora dos gramados durante a primeira metade do século XX?

Tem espaço para mais uma confissão? (risos) Acabei de falar que a identidade se constrói apagando as diferenças, e isso é tão poderoso que nem como pesquisadores nós nos damos conta disso às vezes. Eu jamais havia sequer considerado as mulheres como personagens da história do futebol no Brasil até me deparar com matérias de jornais da primeira metade dos anos 40 que, mais que apenas informar, criticavam duramente o aparecimento de algumas equipes femininas no Rio e em São Paulo. Alguns textos, inclusive, pegavam pesado, insinuando, nada sutilmente, que as jogadoras não passavam de prostitutas! Esse “encontro”, sem exagero, foi como uma revelação para mim! De repente, me dei conta de que simplesmente não havia lugar para a mulher no “país do futebol” que então já se configurava, e fui atrás de outras fontes que me possibilitassem trabalhar melhor isso, o que acabou resultando num trecho pequeno, mas significativo, da dissertação e, depois, derivaram-se em um ou outro artigo, como vocês mencionaram. Sem falsa modéstia, esse é um dos, digamos, “subprodutos” de meu trabalho que me deixam mais satisfeitos, pois acredito que traz à luz um assunto extremamente relevante para a historiografia, para a sociologia, para a antropologia do futebol, sobre o qual, até onde sei, nunca se falara. E ficaria ainda mais satisfeito se ele servisse de ponto de partida para novos trabalhos nessa linha (os quais infelizmente não sei se vêm sendo feitos), porque acho que não são poucas as questões que podem ser levantadas tanto sobre a presença quanto sobre a ausência das mulheres no universo do futebol no Brasil. Por isso mesmo, não saberia dizer quais são as principais, se é que faz sentido falar assim, mas de uma coisa tenho certeza absoluta: a grande questão, a essencial, a meu ver continua a ser a mesma que apareceu para mim naquela “revelação” da pesquisa: qual é o lugar da mulher no “país do futebol”? A meu ver, mesmo com o crescimento e a diversificação da participação da mulher nesse universo até há bem pouco tempo exclusivamente masculino, ou justamente por conta desse crescimento e dessa diversificação, a pergunta continua não querendo calar.

Leia a segunda parte da entrevista no dia 19 de maio.

 

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