Visões do Bi

Depoimentos de jogadores da Seleção

jairmarinho
Jair Marinho. Foto: Reprodução.

 

Nota Explicativa

Esta série é parte integrante do projeto “Futebol, Memória e Patrimônio”, desenvolvida entre os anos de 2011 e 2012, com o apoio da FAPESP. A pesquisa foi realizada em parceria pelo CPDOC, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), e pelo Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), equipamento público vinculado ao Museu do Futebol/Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. Nesta seção, serão apresentadas as edições de 6 entrevistas concedidas por atletas brasileiros que estiveram presentes na Copa do Mundo de 1962, no Chile, a sétima primeira edição do torneio organizado pela FIFA. São eles: Mengálvio, Jair da Costa, Coutinho, Amarildo, Jair Marinho e Altair. O propósito dos depoimentos, com base em sua história de vida, método caro à História Oral, foi rememorar as lembranças dos futebolistas acerca de sua participação na competição, de modo a destacar os preparativos para o Mundial, os jogos e a volta ao Brasil. O depoimento a seguir foi concedido no dia 20 de agosto de 2012, no Auditório Armando Nogueira, localizado nas dependências do Museu do Futebol, no estádio do Pacaembu.

https://cpdoc.fgv.br/museudofutebol/jair_marinho

Entrevistadores: Bernardo Buarque de Hollanda (FGV/CPDOC) e Felipe dos Santos Souza (Museu do Futebol); Transcrição: Juliana Paula Lima de Mattos; Edição: Pedro Zanquetta

 

Jair Marinho

Jair Marinho de Oliveira nasceu em Santo Antônio de Pádua, no interior do estado do Rio de Janeiro, no dia dezessete de julho de 1936. Ainda criança, mudou-se para Niterói. Começou a jogar futebol na várzea e passou destacar-se no Niteroiense. Em 1954, após ser convocado para a Seleção Brasileira, na categoria Juvenil, o Fluminense o contratou. Assim, aos dezoito anos, já atuava nas categorias de base do tricolor carioca. Em 1957 torna-se atleta profissional do Fluminense, onde joga até 1963. Campeão carioca por duas vezes, contabilizou 257 jogos. As boas atuações no clube das Laranjeiras resultaram na sua convocação para a Seleção que disputaria a Copa de 1962. Durante a competição no Chile, foi reserva de Djalma Santos em todos os jogos. Na Seleção, vestiu a camisa verde-amarela em quatro partidas preparatórias para a Copa. Dois anos mais tarde, foi negociado com o futebol paulista e passou a jogar na Portuguesa de Desportos. Sua transferência é justificada por uma questão salarial. Naquele ano, a Lusa fez uma campanha vitoriosa, mas perdeu o título na última rodada, para o Santos de Pelé. Em 1965, transfere-se para o Corinthians e joga no clube da Rua São Jorge até 1967. O clube marca sua carreira, por ter uma torcida de massa. Jogou no Vasco e no Campo Grande. Parou de jogar em 1970. Em 2006 integrou o grupo musical Legendários do Brasil, ao lado de Marco Antônio, Brito, Roberto Miranda, Jairzinho e Altair, entre outros atletas. Gravou um CD e excursionou pela Europa durante a Copa da Alemanha. Atualmente, é membro da Associação dos Campeões do Mundo do Brasil e vive em Niterói.

 

Depoimento

Jair, conte-nos um pouco sobre os seus primeiros anos de vida.

Nasci em 17 de julho de 1936, em Santo Antônio de Pádua (RJ). Cidade famosa por revelar grandes atletas, casos do Píndaro[1] e do Ariosto[2]. Tive uma infância muito boa, praticava o meu futebol em peladas. Aos dez anos, passei a morar em Niterói (RJ). Desde pequeno tracei a meta de ser profissional e chegar à seleção brasileira. 

A família entendia a sua paixão pelo esporte?

Apenas o meu pai, que dizia a todos: “O meu filho será jogador”. Já a minha mãe não era familiarizada com as regras. Lembro que ela fazia graça quando eu ia bater uma bolinha: “Meu filho, fale com o homem para tampar o buraco. Você pode quebrar a perna.” Respondia: “Mamãe, buraco é o espaço dado pelos dois defensores.” Ou seja, não entendia nada.

Lembra-se de alguma coisa da Copa do Mundo de 1950?

Claro. Tratava-se de um timaço, com Barbosa, Zizinho, Ademir Menezes, Friaça… Estes caras me emocionavam. O mundo inteiro desconhecia o Brasil até pouco tempo antes do Mundial. Diziam que a capital do país era a Argentina. Por causa do futebol que descobriram quem somos. O gol do Ghiggia está vivo na minha memória. Mas acho que a Copa de 1950 nos deu força para os torneios seguintes, em 1954 e 1958.

O senhor torcia pelo Fluminense desde garoto?

Sim. Quem nasce no estado do Rio de Janeiro é fluminense, não é? Que camisa bonita! Muito bacana vesti-la. A minha meta inicial nem era defender necessariamente o clube, mas as coisas aconteceram aos poucos e fiquei dez anos nas Laranjeiras.

Como o senhor se definiria como jogador?

Um atleta moderno. No juvenil, atuava no meio-campo. Já o Altair ficava de quarto zagueiro. Quando precisavam de laterais, servia de abrigo. Apoiava o ataque, fazia o overlapping. Por isso que tive sucesso. Fazia o que os outros não conseguiam. O Djalma Santos foi um espelho, mas não chegou aos meus pés.

Os técnicos entendiam esse traço moderno?

Sempre fui peladeiro. Queria pegar a bola, colocar dentro da camisa e não deixar ninguém tocá-la. Considero o Zezé Moreira um pai. Ele queria que eu tocasse, não bagunçasse o esquema. Uma vez, ainda no início de carreira, fiz tabelinha com o Telê Santana num treino e não devolvi a bola porque ele estava enchendo o saco. O Zezé veio perto de mim, respondi a ele e fui expulso. No vestiário, falou comigo novamente e pediu que eu não fizesse mais aquilo. Aprendi que realmente precisava respeitar os mais velhos.

Em que ano o senhor chegou ao Fluminense?

Em 1954. Fazia 1h30 de treino com bola e coletivos. Simulávamos todas as situações. Lances de velocidade, cruzamentos, cabeceios, toques de primeira, domínio de bola… Mais do que ser atleta, ia a campo fazer o que mais gostava. Era a minha paixão.

Por ter origem na zona sul do Rio de Janeiro, fala-se que o clube é aristocrático. Descreva o ambiente nas Laranjeiras.

Na verdade, o Fluminense tem esse negócio de talco e pó de arroz. Não gosto. Por sinal, tinha mais escurinho do que qualquer outra coisa: eu, Didi, Jair Santana[3], Jair Francisco[4], Bigode[5]… Sempre entrei pela porta da frente. Alguns evitavam o contato dos torcedores, eram mais reservados. Na minha opinião, esse papo de não gostar de crioulo é conversa fiada.

O senhor continuou morando em Niterói?

Poderia ter saído, mas quis manter as raízes. É o lugar em que aprendi a viver, onde ando descalço e sento na calçada. Não tenho medo de nada lá na cidade, ninguém me prejudica. Preferi ficar acomodado na minha casinha, ao lado dos meus amigos. Ter os parentes próximos de você é maravilhoso. Morava a cinco minutos da praia, numa boa. Pegava a barca e uma condução na Praça XV até as Laranjeiras.

As suas grandes amizades foram construídas no Fluminense. A principal delas talvez seja com o Altair. Quando percebeu que ele seria um parceiro de toda a vida?

Ele é meu irmão gêmeo. Chegou uma temporada depois, atuamos juntos em todas as categorias – juvenil, juniores e profissional – e também na seleção. O tal de Altair encaixou certinho com o Jair Marinho. Não bebemos, não fazemos farra e nem participamos de noitadas. Isso é uma vantagem. Sempre tivemos responsabilidade.

O primeiro título pelo Fluminense vem em 1959. Emocionava atuar no Maracanã lotado?

Sempre fui muito frio. Enfrentava o Bonsucesso, fora de casa, e a torcida ficava em cima de você. Precisava de um autocontrole absurdo. Cheguei a jogar no Maracanã para 200 mil pessoas[6]. Só que o estádio tem um defeito: não se ouve o torcedor. É um funil ali dentro. Apesar disso, ficava comovido com tanta gente. Agradeço ao futebol por isso.

Em 1961, surge a primeira chance na seleção brasileira…

Ali tinha o Djalma Santos, o Pelé, o Garrincha. Não é fácil. Pensava: “Que barra, hein!” A minha estreia ocorreu contra o Paraguai. Perdíamos por 2 x 0 no primeiro tempo. O De Sordi se machucou e precisei entrar. Não existia caneleira na época. Enrolava um jornalzinho e colocava dentro do meião. O ponta deles era o Sílvio Parodi[7], o maior da história deles. O mandei de primeira lá no alambrado. Vencemos[8] e, em seguida, fui titular no Troféu O’Higgins. Foram as partidas que me garantiram na Copa de 1962. 

O fato de atuar no futebol carioca e paulista ajudava na hora da convocação? E o entrosamento entre os atletas era melhor por causa da concentração de representantes dos dois estados?

Os clubes e suas respectivas federações influenciavam. Recordo que fizeram um amistoso contra o País de Gales no Maracanã[9]. O Djalma atuaria lá e eu em São Paulo. A ideia era que a torcida não interferisse, já que ele defendia o Palmeiras e eu o Fluminense. Na hora de trocar a roupa, ele diz que está passando mal. E veio brincando da concentração. Na verdade, saiu por causa do ponta esquerda galês, um cara habilidoso e veloz. Djalma não o acompanharia. Acabei ficando com uma das vagas.

A conquista em 1958 deu confiança ao grupo na luta pelo bicampeonato?

Havia um respeito. A base se manteve. O elenco estava repleto de feras, como Djalma, Bellini, Mauro, Didi, Gylmar, Zito, Pelé, Coutinho, Garrincha… Acho que foi a única seleção que partiu para um Mundial sabendo que traria o caneco. Grupo unido e que se respeitava. Ganhamos com facilidade.

O senhor tinha a esperança de entrar em alguma partida?

Não. Desconfiava desde o início que ele seria o titular. Sabia que pegaria a vaga se me dessem uma chance, mas o Djalma pode ser apontado como um dos grandes trunfos da equipe.

Que análise o senhor faz da participação na primeira fase?

A estreia é sempre complicada para as grandes seleções. Passamos a atuar bem na competição frente à Espanha, na terceira partida. Curiosamente, após a contusão do Pelé e a entrada do Amarildo. Subimos de produção ali. Pegamos ritmo e sentimos que não poderíamos ser superados. Um detalhezinho interessante aconteceu no treinamento. Eu e o Altair, acostumados a marcar o Zagallo e o Garrincha, respectivamente, trocamos de lado nas atividades para não machucarmos os dois. Ao inverter de posição, facilitaríamos o trabalho deles. Seriam marcadores mais frágeis. Gostei da mudança porque queria aprender a marcá-lo.

Quais são as lembranças da fase final?

Não temíamos ninguém. Na decisão, o legal é que fizemos amizade com os tchecos. Eles não foram indisciplinados, pois sabiam que estávamos um patamar acima. Recentemente, os vice-campeões daquele Mundial vieram ao Brasil na comemoração dos cinquenta anos da conquista. Demos camisas com o nome de cada um e passamos uma tarde toda conversando em São Paulo.

E a alegria da conquista?

Foi uma coisa de louco quando chegamos ao Brasil. Nem sei o que passava pela minha cabeça. Tenho vários títulos de clubes no currículo, mas as pessoas esquecem. Já a Copa, de quatro em quatro anos, fica na memória. Querendo ou não, viramos pauta a cada edição.

O senhor ficou sete anos no Fluminense e aí trocou o clube pelo futebol paulista. Por que essa opção?

Fiz um bom trabalho nas Laranjeiras. Na época, o Carlos Alberto Torres surgia como promessa. Ainda não na lateral direita, mas de central. Eu não tinha reserva e acabei sofrendo uma contusão na perna. Fiquei cinco meses parado e ele entrou no meu lugar. Enquanto isso, o Aymoré Moreira começava a formar um time repleto de cariocas na Portuguesa. Fechei negócio e não demorou muito para acertar com o Corinthians. Devo muito a eles, por sinal. Em certo momento, senti que não teria mais condições de atuar. Os dirigentes argumentaram que ainda restavam dois anos de contrato. Pedi rescisão e aleguei prejuízo à saúde com tanta mudança de peso. Não queria ganhar dinheiro à custa deles. Vim ao mundo jogar futebol, que é o que gosto, não prejudicar o Corinthians. Sei que eles mandaram todos os salários restantes a Niterói. Foi o único clube que reconheceu o meu esforço.

Havia uma pressão grande no clube por causa do jejum de títulos, não?

Superei isso me tornando um líder no elenco. Forçava os companheiros a dar o máximo em campo. Não tinha refresco. Por isso que os torcedores do Corinthians me respeitam até hoje. Todos precisavam acompanhar o meu ritmo. Fui capitão da equipe e falava: “Vamos representar direito.”

A seguir, o senhor acertou com qual clube?

Pedi liberação ao Corinthians, que seguia pagando o meu salário, e defendi o Vasco por uma temporada. Depois, quis parar. Tinha tendência a engordar. Entrava em campo no domingo com 73 quilos e a balança indicava 78 na quinta. Comia o que aparecesse. Tentei fazer um regime e não deu certo. No último ano de carreira, o Campo Grande reuniu uns ex-atletas para ajudar o time. Fiquei quase um ano. Mas digo que encerrei para valer no Corinthians, pois meus documentos ficaram lá.

Nessa época, os clubes costumavam fazer excursões. Como era a experiência de viajar com as equipes?

O Fluminense foi pioneiro no Brasil. Fui até o norte do país. Andei de bote no Ceará, onde tivemos que atravessar uma tábua sobre um riacho para enfrentar o time de um coronel. Equipe titular contra a equipe da roça deles. Sabe o que fizeram conosco? Pegaram uma jiboia e atiraram nas costas do Castilho. Todos saíram correndo. É a melhor lembrança que tenho dessas viagens (risos). Fui muito a outros países também: Egito, Estados Unidos, México, Suécia, Suíça, Inglaterra…

O que o senhor passou a fazer após a aposentadoria?

Comecei a trabalhar com garotos da categoria pré-mirim e mirim. Formei 18 profissionais, um deles o Hélton, goleiro do Porto. Outro o Leonardo, tetracampeão mundial. Não levei nenhum tostão. Fiz porque quis dar sequência ao que aconteceu comigo quando moleque. Sempre tive ajuda para me tornar atleta. Devo a estas pessoas os títulos que conquistei e as experiências vividas mundo afora. Pegava os meninos, dava lanche, treinava e, em seguida, eles iam ao colégio. Evitava que passassem a noite na rua ou fazendo bobagem. O negócio é formá-los em casa, não buscá-los em outro lugar. Muitos não têm condições financeiras de pegar condução. Se eles têm de ir a Xerém, perdem o rumo. É muito longe.

Qual seria a solução?

Sou a favor que os principais clubes do país, os que possuem um bom CT, peguem os ex-jogadores e os coloquem para observar os meninos. Ser paciente e ver se eles têm o dom. Atualmente, duvido que se faça isso. Os times correm atrás de garotos habilidosos pelo país. E só.


[1] Ex-zagueiro do Fluminense, Píndaro Possidente Marconi defendeu o clube das Laranjeiras nos anos 1950.

[2] O atacante Antônio Ariosto de Barros Perlingeiro atuou no Botafogo durante a década de 1950, sendo artilheiro do Campeonato Carioca em duas ocasiões.

[3] Jair Florêncio de Sant’Anna chegou ao Fluminense em 1952, tendo conquistado logo no primeiro ano a Copa Rio (torneio considerado o Mundial da época).

[4] Jair Francisco, ex-meia do Fluminense e do Juventus, foi campeão carioca pelo Fluminense em 1959.

[5] João Ferreira, o Bigode, foi vice-campeão mundial em 1950. O lateral-esquerdo tem passagens por Atlético-MG, Flamengo e Fluminense.

[6] 15 de dezembro de 1963: Flamengo 0 x 0 Fluminense. Segundo maior público da história do Maracanã: 177.020 pagantes.

[7] Silvio José Del Rosario Parodi Rojas foi jogador e técnico da seleção paraguaia. Iniciou a carreira no Sportivo Luqueño, em 1950.

[8] Brasil 3 x 2 Paraguai (03/05/1961). Gols de Coutinho (2) e Quarentinha. Partida válida pela Taça Osvaldo Cruz, em Assunção.

[9] Brasil 3 x 1 País de Gales (12/05/1962). Gols de Garrincha, Coutinho e Pelé.

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Bernardo Borges Buarque de Hollanda

Professor-pesquisador da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV).

Daniela Alfonsi

Antropóloga, Diretora Técnica do Museu do Futebol e doutoranda pela USP. Trabalha com e pesquisa sobre os museus esportivos.
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