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Jamil Chade (parte 6)

O jornalista Jamil Chade é correspondente do jornal O Estado de S. Paulo na Europa e colunista da Radio Estadão. Suas reportagens sobre os bastidores do esporte mundial renderam ao repórter diversos prêmios, além de participações na CNN, BBC, canais espanhóis, canadenses, suíços e de diversos países. Em 2011 e em 2013, Chade foi premiado como o melhor correspondente brasileiro no exterior pela entidade Comunique-se. Em 2015 publicou o livro “Política, Propina e Futebol: Como o ‘Padrão Fifa’ ameaça o esporte mais popular do planeta“, que relata os bastidores da entidade máxima do futebol e seus escândalos de corrupção.

Foto: Max Rocha
Jamil Chade e ao fundo o campo do estádio do Pacaembu. Foto: Equipe NAV.

Sexta parte

Quando o Joseph Blatter era o presidente da FIFA, ele criou o Projeto Goal, que é exatamente, enquanto discurso, desenvolver o futebol onde não está desenvolvido. Em 2004, salvo engano, eles fizeram um encarte junto a uma revista da própria FIFA explicando como acontecia em cada país. Enquanto uma estratégia de divulgação, era interessante saber como ele estava sendo feito. Tanto tempo depois, esse projeto se presta a fazer o que ele se propôs ou ele tem outros fins? Ele continua a existir na gestão do Gianni Infantino?

Essa é, talvez, a questão central da utilização do dinheiro da FIFA. O Blatter criou esse programa de uma forma muito inteligente. De algum modo, atendia a um apelo local, do Paquistão, do Butão, da Guatemala, de países aonde chegar um campinho de futebol faz diferença. A FIFA fazia isso, mas com uma intenção, e é por isso que eu insisto, em que o futebol não era a prioridade. O futebol era utilizado para um outro fim. E qual era esse outro fim? Era justamente criar um clientelismo direto com a federação local. O clientelismo, às vezes a gente pensa, desvia o dinheiro para comprar um carro novo. Também, mas o pior dos clientelismos não é esse. O pior de todos é a lealdade que aquele cartola fica em relação a quem doou o dinheiro, porque se personifica aquela doação. O Blatter ia ao país e inaugurava com a tesourinha cada um desses campos. Fazia isso porque estava preocupado com a juventude do Butão para jogar futebol? Não, fazia porque sabia que ali ele tinha criado uma relação de lealdade. Então, o clientelismo é o mais dramático na FIFA, e ele continua. O Infantino não resolveu, na realidade não quis nem resolver.

Sim, o Projeto Goal criou uma situação de corrupção, e isso ficou provado, as investigações foram feitas, às vezes em outros países. Teve uma situação real de desvio de dinheiro do futebol. Da onde veio esse dinheiro que financia o Goal? Isso é importante. Veio da Copa do Mundo. Ela, a cada quatro anos, gera um dinheiro suficiente para a FIFA viver durante esse período. Permite que ela pague salários, pague sua instalação, pague isso, pague aquilo, e pague por todos esse projetos. A Copa é o único evento da FIFA que gera renda, todos os outros consomem. E isto é importante: a Copa do Mundo que não paga imposto no país sede, com a desculpa de que não paga imposto por que esse dinheiro vai para o futebol. Quando esse dinheiro for para o futebol lá no Butão, como será feito? Você faz um campinho e cria a relação de lealdade com o dirigente local, que e-ter-na-men-te vai ser grato. Por quê? Porque ele vai virar uma pessoa popular, de repente até se elege deputado local naquele país, e ainda tem esse privilégio de achar que está na cúpula do futebol mundial. Então, o Projeto Goal não atendeu o objetivo principal. Não só ele não atendeu como criou um sistema dos mais perversos, que é manter o mesmo grupo de poder dentro da FIFA.

O que fez o Infantino? Na verdade, a estratégia dele é muito inteligente porque percebeu que, se questionar isso, jamais será eleito. Jamais será eleito se disser: “Eu vou acabar com a transferência de dinheiro para as federações.”. Percebeu: “Se fizer isso, vou acabar com a transferência de dinheiro para meu eleitor.”… Não estamos falando dos cardeais do Vaticano, estamos falando de dirigentes esportivos. Então, o princípio é outro. Ao invés de ele falar: “Vou acabar com isso e controlar mais o uso do dinheiro.”, sabe o que ele fez? “Eu prometo mais dinheiro para vocês!”. Essa promessa de mais dinheiro entra naquilo que falei: 110 federações têm dois milhões de dólares de renda por ano. Ao dizer: “Se for eleito, vou dar um milhão de dólares a mais.”, está dizendo a 110 países que irá aumentar a renda deles em 50%. Há, portanto, um sistema que foi perpetuado. E foi incrível porque, no dia da eleição do Infantino, ao ganhar, em seu primeiro discurso, ele fala justamente isso, promete isso e aquilo, e diz uma frase que é “genial”: “Eu vou distribuir mais esse dinheiro porque esse dinheiro é de vocês, mas olha lá o que vão fazer com ele, hein?!”. Calma aí! “Olha lá o que vocês vão fazer com ele.”, como assim? Então, ele está dizendo que isso já aconteceu? Além de tudo, ele está dizendo que esse dinheiro não é do futebol, é das federações. Não confunda federação com futebol!

Na África do Sul, foi também “genial”. O mesmo fundo que foi criado para o Brasil como um legado da Copa do Mundo – mas que nunca chegou, diga-se – criaram para a África do Sul para desenvolver o futebol no país após a Copa de 2010. O primeiro lote de dinheiro, cujo valor não me lembro, chegou. Qual foi a primeira decisão dos cartolas sul-africanos com dinheiro novo da FIFA? Comprar novos carros para a federação… “Ótima” ideia! Teve toda uma polêmica com o uso do dinheiro desse primeiro lote, e aí nos seguintes o dinheiro acabou sendo mais controlado. Mas veja: o objetivo não era exatamente construir campos de futebol pelo país.

Só para completar sobre o Projeto Goal. Ele pode ter um impacto positivo? Pode. Pode desde que tenha um controle independente, desde que seja monitorado por um grupo de experts que não tenha nenhuma relação com o poder na FIFA, e desde que esse dinheiro não passe pela federação local. As federações em alguns países têm algum tipo de controle, e em outros países elas têm zero controle. Ou, em alguns países, o controle é feito pelo próprio presidente da federação… Sim, o dinheiro da Copa do Mundo é um imposto do futebol mundial. Há o recolhimento e a distribuição daquela riqueza que foi gerada na Copa do Mundo. Há, vamos dizer assim, uma “distribuição de renda”? Sim, uma “distribuição de renda” que acaba no bolso de um dirigente, não que acaba em novos clubes de futebol pelo mundo.

Pensando nesses projetos que a FIFA promove, como ela acaba utilizando esses projetos justamente para fazer política com ONGs que se preocupam com determinados assuntos? No caso do racismo, como ela acaba usando o projeto “Say no to racism” para encampar a FARE (Football Against Racism in Europe) e fazer com que essas tensões do mundo do futebol à parte da FIFA acabem abafando um pouco?

Já aconteceu isso na era do Blatter, quando ele convidou a Transparência Internacional para fazer parte dos debates e da reforma da FIFA. A Transparência Internacional, naquele momento, a meu ver, errou feio ao acreditar que, de fato, era algo legítimo. Eu concordo que “só criticar não adianta”, é preciso fazer parte. Se não me engano, não demorou nem seis meses para a Transparência Internacional abandonar e dizer: “Isso aqui é uma piada.”. Claro, teve um certo constrangimento para a própria ONG, porque ela teve basicamente que assumir o erro e dizer que a FIFA não é transparente… Desde então, tem muita ONG temerária de estabelecer qualquer tipo de relação com a FIFA, pelo menos na Europa.

E não ONGs. Uma das consequências, do colapso das prisões dos cartolas foi que uma certa – eu não diria ONG – entidade internacional rompeu com a FIFA, que era o Prêmio Nobel. Eles tinham uma relação com a FIFA, mas romperam porque obviamente havia um produto “tóxico” ali. Como a FIFA, então, vai às ONGs e consegue de alguma forma trazê-los? Existe uma situação nas ONGs internacionais que é absolutamente legítima, qual seja a necessidade de plataforma, uma forma de publicidade, e de dinheiro. Há uma concorrência entre elas por isso, e não estou dizendo isso como algo negativo. É da vida da ONG, que precisa de disposição e de recurso para sobreviver e ter a capacidade de atender a um mandato que ela ganhou, seja na parte médica, seja na social, de racismo etc. Ela tem dois caminhos: um deles, talvez mais difícil, é justamente procurar um financiamento de longo prazo que de alguma forma dê um sustento para que ela consiga atingir um objetivo daqui a vinte anos; um atalho é ter uma relação com uma instituição internacional. E a FIFA sabe que é um atalho que pode ser, em algumas circunstâncias, positivo.

Na questão do racismo, tudo depende do que é oferecido do outro lado. A FIFA diz: “Muito bem, vamos lá criar um programa junto com vocês.”. A ONG pergunta: “Tudo bem, mas qual participação exatamente eu terei? Poderei estar dentro do estádio e monitorar? Poderei falar para o Comitê de Ética que naquele estádio, naquele país, tinha uma bandeira nazista?”. “Se o jogo for na Rússia, aí não dá, né?! Poxa, como é que vou colocar o dedo na ferida de um problema social do país?”. Sim, a FIFA tenta usar isso, e tenta usar não só no racismo, mas na questão dos trabalhadores no Catar também. Sempre tem alguma ONG disposta a tentar usar esse atalho. É curioso porque elas não duram. São projetos que acabam em um ano basicamente, porque a própria ONG – eu sinto isso – se dá conta de que está sendo utilizada. Aí você tem uma situação que a própria ONU, por exemplo, já deixou muito claro que ela não tem nenhuma relação com a FIFA. Surpreende-me a relação ainda insistente da ONU com o COI, mas isso é uma outra questão que a gente pode tratar.

De todas as formas, você tem a tentativa da utilização dessas entidades esportivas, por parte da FIFA, de projetos e campanhas legítimas em alguns países para tentar mostrar que ela tem esse lado social, esse apelo. A FIFA tem um diretor de responsabilidade social, que a Nestlé, por exemplo, também tem para cuidar da água de um determinado lugar, que uma indústria farmacêutica também tem para tratar das pessoas que não têm acesso a remédios. Então, a FIFA sabe que precisa disso. Agora, eu contaria nos dedos a quantidade de ONGs que têm a coragem de ter uma relação hoje com a FIFA.

E por que para o COI é diferente?

Como a gente conversou, o COI é a aristocracia refinada e a FIFA é a burguesia espalhafatosa, o novo rico. O COI tem algumas coisas que atraem a ONU: alguns de seus princípios e a capacidade de ser universal. Quando se tem a realidade de uma campanha sobre meio ambiente ou qualquer outro tema social na abertura das Olimpíadas, como aconteceu no Rio de Janeiro, a ONU sabe que aquele espetáculo de uma hora e meia tem um impacto público muito mais poderoso do que todas as campanhas que ela possa fazer durante o ano. Nesse sentido, a ONU recebe a tocha olímpica dentro da própria sede, assim como a recebeu antes de vir para o Rio de Janeiro. O que eu acho problemático e o que dentro da própria ONU está sendo debatido de uma forma bastante acalorada – e, em parte, por conta do que aconteceu no Brasil – são o seguinte: “Sim, esses valores são importantes, mas nós não podemos manchar aquela bandeira azul com escândalos de corrupção nem com decisões que sejam tomadas por motivos outros que não sejam uma eleição limpa.” O que fica muito claro é que a ONU deu, desde então, um passo para trás, do mesmo modo que as ONGs.

Você tem visto cada vez menos aqueles jogos de Amigos do Messi contra Amigos de não sei quem, patrocinados pela ONU ou pela Unicef, como o Ronaldo fazia com o Zidane. Aquilo ali, silenciosamente, foi abandonado. Por quê? Porque você está de alguma forma chancelando o outro lado. E a FIFA e o COI sabem que, se tiverem o carimbo da ONU, terão uma credibilidade, ou pelo menos uma tentativa de credibilidade. Foi um choque para a Unicef o que aconteceu com o Barcelona. O clube anunciou para o mundo que pela primeira vez ia ter algo escrito em sua camisa. Era a Unicef, e o Barcelona foi superaplaudido. Eu digo isso porque conheço um pessoal de dentro da ONU. Quando a Unicef foi trocada pela Qatar Foundation, a reação lá dentro foi: “Tudo bem. É dinheiro, é patrocinador, poderia ter sido qualquer outro patrocinador, mas a imagem de que aquilo é um clube que tem uma dimensão diferente não é verdadeira.”.

Outro fato que aconteceu foi com um presidente de um clube brasileiro, que prefiro não citar. Ele foi a Genebra e fez uma reunião de meia hora com um representante da ONU para esportes, que é um alemão. Terminada a reunião, queria uma coletiva de imprensa com ele. O representante disse: “Mas não tem nada para anunciar. Por que fazer uma coletiva de imprensa?”. Mesmo assim o presidente insistiu. O representante da ONU viu que tinha alguma coisa de errado e falou: “Se você quiser, pode fazer a sua coletiva de imprensa, mas eu não vou fazer com vocês.”. O presidente desse time foi lá e fez uma coletiva de imprensa com a bandeira da ONU atrás. Naquela mesma semana, a assessoria de imprensa do clube usou aquela bandeira da ONU e aquela coletiva como uma chancela. Então, a ONU sabe que pode ser de alguma forma envolvida dessa maneira espúria.

Por que a ONU deu um passo atrás em relação ao COI? Porque fica muito claro que, sim, há toda uma vantagem de ter uma exposição mundial, mas essa exposição vem com um custo, e esse custo está cada vez mais caro. Quando você vai ver a quantidade de cidades europeias que, em plebiscito, vota “não” para uma Olimpíada, você tem de escolher de que lado está.

Jamil Chade durante a entrevista. Foto: Equipe NAV.

Pensando nessa estrutura dos megaeventos, ou seja, na lógica da escolha das sedes, no próprio funcionamento, no investimento na construção de estruturas e equipamentos, esse modelo está no seu limite? Ele é questionado e debatido internamente tanto pelo COI quanto pela FIFA? Recentemente, você esteve na Grécia para avaliar o legado dos Jogos Olímpicos de Atenas, em 2004. Como isso nos ajuda a responder essa pergunta?

Primeiro, em relação à ideia de megaevento. Um megaevento não é por si só ruim ou bom. Tudo depende do que é feito com ele. Culpar o megaevento em si não é a questão. Vou fazer uma analogia que pode parecer fora do propósito, mas é um pouco isso. Alguém pode dizer: “Eu não escuto Wagner porque era o compositor preferido do Hitler.”. Na verdade, é o que foi feito com ele, não é a qualidade dele. A qualidade dele, você pode gostar ou não, questionar o princípio etc., mas não me diga que não o escuta porque ele foi utilizado daquela maneira. A mesma coisa acontece com um megaevento. Um megaevento depende de qual projeto por trás dele. Ele pode ter um impacto positivo? Pode, basta ver o caso de Barcelona. Mas aí a questão que temos de deixar claro é: Qual outro exemplo? Não tem. Talvez um ali em alguma questão pontual, mas como um impacto para uma cidade, não. Então, temos de refletir, e o COI começa a fazer isso, mas não a FIFA: O que fez de Barcelona diferente? Foi o megaevento? Não, foi o fato de que ela tinha um outro projeto, e que esse outro projeto incorporou justamente a realização dos Jogos Olímpicos.

O modelo atual está no seu limite por vários aspectos. Ele é uma imposição. Desembarca em uma cidade com exigências que aquela cidade ou não precisa, ou não vai precisar, ou vai ter uma séria dificuldade de estabelecer. Aí posso falar da questão de Atenas. Foi chocante. Sinceramente, eu não achava que ia ver o que vi. Esperava ver alguma coisa abandonada, mas não um estádio inteiro. Tinha locais literalmente do tamanho do Estádio do Pacaembu, com a grama a um metro de altura, a arquibancada destruída, tudo abandonado. Você pode me dizer: “Ah, isso aí é um legado não aproveitado.”. Não, isso é um crime! Porque isso foi feito com dinheiro público. Um dos complexos em Atenas ainda tem uma placa na porta, em que está escrito: 88 milhões de euros. Todo esse valor foi gasto naquilo, e o lugar está absolutamente abandonado. Portanto, não é só um legado não aproveitado, é um crime. Alguém tem que responder por aquilo, mas ninguém responde. Então, o limite do modelo é quando você chega a uma cidade e impõe exigências ou condições que aquela cidade não tem capacidade de atender. Ou não tem capacidade, ou nunca usufruir de uma dada estrutura. Por exemplo: um desses estádios é o de softball. Estavam de brincadeira, né?! Estádio de softball, de concreto, em Atenas?! O guarda que faz a segurança do estádio me disse: “Eu não me lembro para que serviu este estádio.”. O guarda do estádio não lembrava para que servia o estádio! Porque, claro, é um esporte que simplesmente não é praticado na Grécia. Esse é o limite do modelo.

O que faz o COI? Ele apresentou a agenda 2020 com uma transformação nos critérios. Mas ainda é insuficiente. Por quê? Porque essa transformação é baseada ainda no mesmo modelo. Dizem: “Vamos ter esse mesmo modelo, mas, ao invés de construir um estádio de concreto, pode ser feita uma estrutura temporária.”. Tudo bem, ótimo, muito melhor do que a situação anterior. Agora, nessa cidade que não tem o recurso, vale o dinheiro público pagar por aquilo? Ainda que seja feita uma estrutura temporária, não era o caso de distribuir ingresso, já que a renda não virá de ingresso mesmo? Por que não transformar aquela estrutura em alguma outra utilização, inclusive durante os 17 dias dos Jogos? Poderiam aproveitar que ninguém conhece softball para introduzi-lo no país ou pelo menos apresentá-lo às pessoas. Ou seja, mudar a lógica da função daquele local. Ele não pode ser só para aquele evento acontecer, tem que ter alguma outra finalidade. Esse outro passo não foi dado. Você ainda tem dentro de um mesmo modelo apenas a transformação do concreto em uma situação temporária.

Há uma tentativa de resposta. Por exemplo: o COI exigiu agora no acordo com as cidades-sede o combate à corrupção. “Espera aí, mas isso não ocorria antes?”, pergunto eu… Risível. Quer dizer, antes não tinha compromisso nenhum. Além da declaração de se comprometer a combater a corrupção – algo que a Petrobrás, a Odebrecht e qualquer governo sempre declararam –, a pergunta é: Quem é que vai monitorar? Quem vai dizer publicamente onde teve corrupção? “Ah, ninguém.”. Então, não passa de uma declaração para tentar justamente atender à opinião pública mundial. Respondendo a sua pergunta se tem um movimento. Tem, mas ele ainda não deu o passo decisivo.

No caso da FIFA, é ainda mais gritante. É gritante porque, ao invés de reduzir a Copa do Mundo, ela a expande. Ao expandir, procura uma forma de solucionar a expansão. Qual é a forma? “Vamos fazer a Copa em vários países ao mesmo tempo.”. Ótimo, assim não vai ter vários “elefantes brancos” no mesmo país. Aí a pergunta que eu faço é: Além da América do Norte, da China e da Europa, onde mais dá para fazer isso? Porque não são “só” 12 estádios, são 64 – isso está documentado – campos de treinamento padrão FIFA. Onde vai arrumar 64 campos de treinamento? Onde vai arrumar 48 hotéis de luxo para as seleções? Vamos supor que fossem fazer uma Copa Andina, na Colômbia, Peru, Bolívia e Equador. Será que esses países têm, de fato, a possibilidade de realizar essa Copa? Não sei.

Algumas cidades e países não estão mais querendo o megaevento. Tem um livro que está para ser lançado agora nos Estados Unidos cuja ideia é: “Smart cities say no to the games”. O autor foi a essas cidades, Boston por exemplo, e investigou por que elas falaram “não” aos Jogos Olímpicos. Tem um aspecto que é muito concreto, de pragmatismo político, pois o prefeito local estava com medo de perder a eleição. Se ele fizesse um plebiscito, daria “não”. Então, ele mesmo negou. Tem, vamos dizer assim, a parte imediatista, mas também tem a parte interessante do livro, em que ele vai falar com os urbanistas da cidade. As pessoas que planejam a cidade, da própria prefeitura, disseram: “Olha, a gente não vê como encaixar um evento desses em nossa cidade, por mais que a promoção seja importante. O custo disso seria maior.”. Então, esse modelo chegou ao limite.

Em um seminário outro dia, me surpreendeu muito a fala de um velho dirigente do COI: “Para que se constrói um estádio? Para que uma partida seja assistida por um número grande de pessoas. Quando você tem a transmissão, para que se precisa de um estádio exatamente?”. Isso pareceu um absurdo total, mas que se pensarmos não é tão absurdo. Óbvio que para nós, torcedores, não existe o jogo sem a torcida. Será que não? Será que eles estão preocupados com isso quando eles colocam, por exemplo, o Phelps para nadar no Rio de Janeiro a uma da manhã? Eles não estavam pensando na torcida carioca, mas sim na transmissão da NBC no horário nobre dos Estados Unidos. Então, será que sua fala expõe um pensamento deles de, talvez, não precisar construir todos os estádios para todos os eventos esportivos? Estou tentando imaginar o que é que vem pela frente. É óbvio que não existe uma partida de futebol que tenha sentido sem a torcida. Não existe! Mas e arco e flecha, por exemplo? Não estou dizendo que é uma solução, mas quando alguém da cúpula do COI começa a falar que “talvez a gente não precise de estádio” penso que tem algo vindo aí e que talvez a dimensão global daquela transmissão seja muito mais importante do que as 500 pessoas que estarão no estádio.

Confira a penúltima parte da entrevista na semana que vem!

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Equipe Ludopédio

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Marcel Diego Tonini

É doutor (2016) e mestre (2010) em História Social pela Universidade de São Paulo, sendo também bacharel (2006) e licenciado (2005) em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP - Campus de Araraquara). Integra o Núcleo de Estudos em História Oral (NEHO-USP) e o Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas (LUDENS-USP). Tem experiência nas áreas de Ciências Sociais e História, com ênfase em Sociologia do Esporte, Relações Étnico-raciais, História Oral e História Sociocultural do Futebol, trabalhando principalmente com os seguintes temas: futebol, racismo, xenofobia, migração, memória e identidade.
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