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Jamil Chade (parte 8)

O jornalista Jamil Chade é correspondente do jornal O Estado de S. Paulo na Europa e colunista da Radio Estadão. Suas reportagens sobre os bastidores do esporte mundial renderam ao repórter diversos prêmios, além de participações na CNN, BBC, canais espanhóis, canadenses, suíços e de diversos países. Em 2011 e em 2013, Chade foi premiado como o melhor correspondente brasileiro no exterior pela entidade Comunique-se. Em 2015 publicou o livro “Política, Propina e Futebol: Como o ‘Padrão Fifa’ ameaça o esporte mais popular do planeta“, que relata os bastidores da entidade máxima do futebol e seus escândalos de corrupção.

Jamil Chade - Entrevista Ludopédio-12
Jamil Chade. Foto: Max Rocha.

Oitava parte

Jamil, em seu livro, você fala bastante que muitas partidas são decididas antes do apito. Sempre que o Brasil perde uma Copa do Mundo, vem pelo menos como onda da internet a “teoria da conspiração” da Copa de 1998. A gente gostaria de ouvi-lo falar um pouco dessas questões, haja vista que de algum modo elas vão dialogar.

Primeiro, eu diria que “teoria da conspiração” é muito fácil de ser construída. É muita tentação você tentar explicar por ela. Dito isso, o que as investigações da FIFA mostraram é que existe um espaço gigante para a determinação de resultado por parte desses dirigentes. No livro, eu mostro pelo menos dois casos que foram bastante claros a partir de gravações e de situações reais. Uma é a do Grondona, na época vice-presidente da FIFA, negociando a escolha de um árbitro com o próprio secretário da Conmebol. É impressionante a conversa, porque ela é espetacular. Ele escolhe o árbitro com base no resultado que ele quer do jogo. Então, é muito claro que tem essa influência. Se não tem influência na quantidade de gols ou em quem vai ganhar, pelo menos em dificultar. Essa relação, ali naquela conversa, é escancarada.

Virou uma notícia aquela conversa porque ele fala de como o Boca Juniors ganhou do Corinthians na Libertadores de 2013. Ele cita isso no final, mas sinceramente a parte mais importante daquela conversa não é ele tirando sarro do Corinthians. No final das contas, foi isso que ele fez ao dizer: “Olha só o que eu fiz com o Corinthians!”, como se dissesse: “Olha o poder que eu tenho!”. A parte mais importante é o próprio diálogo dele com a pessoa que vai escolher o árbitro. O cara vai dando nomes e ele vai dizendo: “Não, esse não! Prefiro o outro, porque o outro já fez isso em tal jogo.”. E ele vai deixando muito claro que ele tem, sim, uma forte influência na determinação do que vai acontecer em campo.

Então, existe uma conspiração que envolva patrocinador etc.? Não sei, não sei se chega a esse ponto, mas o que fica muito claro é o seguinte. Isso não é uma percepção minha, é o que está nos documentos oficiais. Se esses cartolas têm o poder e a capacidade de comprar um lugar na Copa do Mundo, de comprar voto para sede, de escolher seleções, de determinar coisas que vão além do campo, não existe nada que nos faça pensar de que eles também não tenham algum tipo de influência sobre o que acontece dentro de campo. Eu não quero generalizar, não quero dizer que a “teoria da conspiração” existe em cada partida. Não existe, não existe. Agora, o que essa gravação específica deixa claro é que, sim, o ex-presidente da federação da Argentina e ex-vice- presidente da FIFA escolhia árbitro com base no que ele queria como resultado de um jogo. Então, vamos trabalhar com questões absolutamente concretas.

O outro exemplo que cito no livro é o que aconteceu com a Irlanda quando foi desclassificada nas Eliminatórias para a Copa do Mundo de 2010, depois de um gol em que o Thierry Henry tocou com a mão antes de fazer um passe para o gol da França. De uma forma inexplicável, depois de o mundo inteiro ter visto que o gol foi irregular, a federação da Irlanda desistiu de questionar. O torcedor da Irlanda nunca entendeu, e vida que segue. O que vem à tona, nesses documentos, é que a Irlanda ganhou um “presente” de 5 milhões de euros da própria FIFA. Aí inventaram um argumento para justificar, é claro. O que é uns 5 milhões depois de um jogo Irlanda e França? É um cala-boca.

Dá para dizer que aquele juiz estava comprado? Não é isso, não vamos até esse ponto. O dinheiro que a FIFA pagou, por acaso, é o mesmo valor que a Irlanda teria ganhado se se classificasse para a Copa do Mundo. Mas dá para imaginar a seguinte fala: “Meu caro dirigente da Irlanda, você quer que a Irlanda se classifique ou quer o dinheiro da classificação? Fique aqui com o dinheiro e não questione o resultado. Então, está resolvida a questão.”. E a federação da Irlanda nunca mais tocou no assunto. Por isso o que eu insisto no livro é mostrar ao torcedor que ele está sendo enganado, que tinha sim espaço para questionar aquele resultado, mas alguém, no caso o presidente da federação da Irlanda, resolveu que os 5 milhões bastava para ele ficar em silêncio. O que isso tem a ver com o torcedor da Irlanda? Nada! Absolutamente nada.

Dá para tocar em “teoria da conspiração” e falar que o futebol é movido por interesses e, portanto, todo jogo é comprado? Não, não é isso. Agora, esses dois casos e vários outros que a gente poderia explorar mostram que, de uma forma muito contemporânea – não estamos falando de 1970, da Copa de 1978 ou de outro momento da história –, ainda existe um poder fora do campo que pode determinar o que acontece dentro de campo. Então, não dá para dizer que todo jogo é comprado, mas também não dá para achar que nada do que acontece em campo não tem influência de fora. Eu me recuso a acreditar não porque eu sempre acho que vai ter uma “teoria da conspiração”, mas sim porque exemplos muito claros mostram que existe sim algum tipo de influência.

Voltando à questão dos amistosos, que a gente já tratou, mas que cabe nesse debate. Um amistoso em alguns momentos pode ter, sim, essa característica. Investigações criminais da Europol já mostraram isso, inclusive na preparação de algumas seleções para a Copa do Mundo de 2010. Provou que teve alguns jogos com resultados manipulados. Conspiração em todos os jogos? Não. Conspiração em todos os campeonatos? Não. Conspiração em todos os títulos? Não. Mas existe o crime de alguma forma influenciando, sim, no que acontece dentro de campo.

Pensando exatamente nesse jogo político, nesses interesses e até na manipulação dos dirigentes, quanto isso afeta diretamente o evento esportivo? Para deixar claro o sentido da pergunta, lembramos, por exemplo, de algumas situações às quais os clubes estão expostos quando vão atuar fora do país, em especial aqui na América do Sul: fogos de artifício estourados ao lado do hotel na noite anterior a um jogo importante, gramados ruins, decisões do juiz escandalosamente contrárias a um determinado time, como aconteceu naquele jogo entre Corinthians e Boca Juniors, e portão dos vestiários fechado por ordem de um dirigente, expondo atletas a uma situação de violência dentro de jogo, tal qual aconteceu na partida entre Peñarol e Palmeiras.

É muito simples. As entidades que controlam essas partidas e esses campeonatos estão corroídas desde cima. Então, não adianta você achar que essa degradação de qualquer princípio ético, moral, de justiça, de fair play, não vai chegar ao campo. Se tiver espaço para enganar o adversário, isso faz parte. Por que “faz parte”? Porque lá em cima já tem sido justificado de outras formas, com outras atitudes, ao colocar, por exemplo, uma medalha no bolso. Essas atitudes fazem os dirigentes, os clubes e os jogadores pensarem: “Eu posso fazer isso porque as pessoas que estão me controlando também fazem isso.”. Independente da forma ou da circunstância, elas também fazem. Se o comitê de ética da entidade é uma piada, não adianta achar que o clube que está fazendo de tudo para chegar à outra etapa do campeonato não irá se valer de algum instrumento sujo para avançar.

Eu te dou um exemplo da FIFA. Na semana passada, o presidente da federação de Guam foi preso. Guam é uma ilha no meio do Oceano Pacífico. Alguém pode pensar: “Guam?! E daí?”. Ele foi preso dentro do caso do FBI. A pergunta é: Quem é ele? Aí você começa a investigar e descobre que ele é um dos quatro membros do comitê de auditoria da FIFA. E o que ele admite diante do juiz? Que ele era o recrutador. Recrutador! Ele era pago para identificar outros cartolas que quisessem fazer parte do esquema. Fazia isso de dentro do comitê de auditoria da FIFA. É muito simbólico que um membro do comitê de auditoria, que é um cara que deveria coibir a corrupção, era o próprio recrutador dos corruptos. Então, vamos transladar isso para uma região de uma das confederações da FIFA. Um clube que sabe que o auditor de uma entidade é o recrutador pensa: “Por que eu vou me privar de tentar ganhar o jogo de outras formas se sei que o erro vem lá de cima? Você vai me dar lição de moral? De repente, eu te denuncio.”. Por isso que eu digo que prender doze cartolas ou quarenta pessoas ao todo nesse processo é o início da história. O que precisa saber agora é como isso vai entrar no futebol, se isso vai contaminar de uma forma positiva, se de fato vai criar uma outra cultura.

Para completar a resposta, eu te dou uma coisa que aconteceu com o Platini. Eu estava no hotel onde eles foram presos, que é um hotel muito caro. Para estar dentro do hotel, você tem que consumir. Um café expresso lá custa 9,00 francos suíços, ou seja, aproximadamente 32,00 reais. Um cafezinho! Então, aquele café tem que durar o dia inteiro, obviamente… Eu estava lá e passou por mim o Platini. Tirador de sarro, ele me disse: “Para estar aqui tem que estar consumindo, hein?!”. Respondi: “Eu já pedi um café.”. Aí ele brinca: “Eu até te convidaria para o café, mas depois o pessoal do compliance da FIFA vem atrás de mim.”. Ele deu uma risada e foi embora. Você pode me dizer: “Ele estava consciente disso.”. Não, ele estava tirando um sarro disso. Ele estava tirando sarro porque sabe quem são as pessoas da auditoria da FIFA. Ao falar isso para um jornalista que ele conhece, obviamente ele está brincando e usando aquilo ao mesmo tempo.

Por que estou dizendo isso? Porque se você não muda a cultura de uma instituição, e talvez essa cultura vá contaminando as sub-regiões, não tem como ter esperança de que o portão não vá ser fechado para um clube, para usar o seu exemplo. Se o cara sabe que talvez não vá ser punido ou que o outro que se defendeu, no caso o Felipe Melo, será punido primeiro… Enfim, a gente não pode pedir ética embaixo se a estrutura está corroída. Por isso que é tão problemática a corrupção lá em cima, na FIFA. Por isso, também, que o torcedor precisa entender que essa corrupção afeta ele no fim das contas. Ela vem se somando e chega, sim, ao torneio regional. Ela vem e tem um impacto direto.

Nesse sentido, como pensar a liga dos clubes? Como a FIFA vê a Associação de Clubes Europeus ou a possível Liga das Américas?

As ligas podem ser muito interessantes e positivas, mas precisam acontecer num contexto específico. Eu explico. Se a criação de uma liga é só para que o poder esteja nas mãos de outras pessoas, não adianta nada. Se você só vai criar a liga porque não concorda com aquele desvio e quer o seu próprio desvio, não tem propósito. Esse é o primeiro ponto. Segundo, a liga pode ser muito positiva se ela mantiver um dos princípios básicos do futebol que é o rebaixamento. Você pode argumentar em favor de uma liga fechada que isso vai criar um grupo mais forte, vai render mais dinheiro, permitirá contratar jogadores melhores, que o torneio terá uma capacidade de atração maior. Só que você está se esquecendo de uma coisa no futebol, que é justamente a competição. Isso é um perigo. Se fizer uma liga fechada em que não há a esperança para 90% dos clubes de chegar até lá, isso é um risco. O que acontece na Europa hoje é que eles mantiveram o princípio do rebaixamento e vários outros aspectos, mas a concentração de renda é tão grande que, na prática, ela não existe. A repetição dos mesmos times nas semifinais da Champions League nos últimos dez anos se dá de uma forma assustadora.

Então, se a criação de uma liga tiver como propósito o poder, não funcionará. Se for para ter uma lógica comercial e se esquecer do princípio básico do futebol, também ela não será interessante. Agora, se a liga for criada para ser um equilíbrio de poder entre as federações e os clubes, ela terá um grande potencial de ser positiva para o futebol. Daí ela criará justamente o que hoje não existe: o controle mútuo. A federação vai querer saber o que está acontecendo e a liga também. Hoje o que se tem são cúmplices. Os clubes brasileiros são cúmplices da direção do futebol brasileiro. O que você tem na esfera internacional é mais ou menos a mesma coisa: é a federação que controla seus próprios clubes. Então, dividir esse poder pode ser muito interessante contanto que essas regras básicas sejam mantidas. O meu medo é que quem esteja pensando em liga esteja pensando nisso com outros propósitos. A gente não pode se esquecer: quem está pensando em liga hoje no Brasil são as mesmas pessoas que são os cúmplices dos dirigentes que são questionados. Então, não se trata de uma nova geração de dirigentes que quer mudar.

Jamil Chade - Entrevista Ludopédio-2
Jamil Chade nas arquibancadas do Pacaembu. Foto: Max Rocha.

Qual a partida inesquecível que você assistiu em um estádio?

Posso pensar. Assisti a muitas partidas… Vou pegar uma de moleque, vai. Só porque tem gente de Campinas aqui… Uma partida inesquecível é a final do Campeonato Brasileiro de 1986, que foi em 87, São Paulo e Guarani. Aquilo foi impressionante. Você sabe que ali estava acontecendo alguma coisa que para o torcedor são-paulino ficaria marcado. E da seleção brasileira… qualquer jogo de Copa do Mundo é especial. Disso não tenha dúvida. Por isso que eu digo: a gente precisa fazer a separação muito clara entre o nosso trabalho de jornalista e o sentimento de torcedor. De qualquer maneira, ter o privilégio de estar lá é o que nós como moleques sempre sonhamos. Então, você tem que saber que você é um privilegiado no final das contas.

Na primeira parte da entrevista, você fala que deixou de estar em finais de Copas do Mundo justamente para cobrir o bastidor. Nesse sentido, qual é a partida que você perdeu e que você gostaria de ter assistido?

São várias as partidas que eu não vi e que tive que ver de novo. Uma delas é Brasil e França, na Copa do Mundo de 2006. O Zidane explodiu naquele jogo e eu não vi. Eu não vi o gol do Thierry Henry… São jogos que não é que eu lamento, mas penso: “Poxa, eu estava lá e não vi o jogo?!”. Na final de 2014, aconteceu a mesma coisa. O Higuaín na cara do gol, e eu olhando para os presidentes na bancada. Mas é o que eu falei na primeira parte da entrevista: a minha função era essa, não posso trair minha função porque o jogo é espetacular. Claro que é!… Ainda que não olhasse para o campo…

Teve um jogo que eu usei a credencial para estar no estádio, e eu não estava trabalhando. Foi Brasil e Alemanha na final das Olimpíadas de 2016. Aquele foi um jogo também emocionante em termos de comportamento da torcida em relação ao time. Aquilo ali não vai se repetir no Maracanã por algum tempo. Aquilo talvez tivesse sido a final da Copa do Mundo de 2014. Refiro-me não ao jogador ou à qualidade em campo, mas àquela reação, àquela emoção, àquela relação da torcida com o time. Teve os pênaltis. O drama do jogo também marcou…

Teve um jogo que eu achei válido por outros motivos. Vocês vão achar talvez um absurdo, mas é a realidade. Espanha e Taiti no Maracanã pela Copa das Confederações. Acho que foi 10 a 1. O que tem a ver? A torcida estava se divertindo de uma forma legítima naquele jogo. A torcida estava torcendo para o Taiti de uma forma que foi um espetáculo. Ela tinha o rival, que era a Espanha, e a zebra total, que era o Taiti. Eu me lembro que o técnico do Taiti falou que era a primeira vez que os jogadores iriam jogar em um estádio fechado. Imagine essa situação! E você tem uma torcida que usou o jogo para mandar muitos recados importantes para o que ia acontecer fora do estádio. Era 2013, no meio dos protestos. A torcida gritava coisas muito fortes como: “O Maraca é nosso!”, entre outros protestos. Não tem como mandar a polícia reprimir ou silenciar uma torcida inteira. Então, você tem esse aspecto daquele jogo. Não é porque foi Espanha e Taiti, o jogo em si tanto faz, mas teve aquele momento em que pensei: “Isso é mágico!”. Tem uma magia que 40 ou 50 mil pessoas podem gerar juntas em relação a uma coisa muito específica.

Eu tento entender essa magia e esse poder que a torcida pode ter. Uma das torcidas, se você for pesquisar, é a do Spartak, na então União Soviética. Você pode reprimir 100 pessoas, mas não 70 mil pessoas no estádio. Aí você tem 70 mil pessoas com gritos de ordem contra o Stalin. O que você faz com 70 mil pessoas? Fuzila? Não dá. Então, tem toda a história de uma torcida que tem um poder mágico. É a capacidade de a torcida influenciar muito além do que está acontecendo dentro de campo. A torcida tem um papel social, assim como o jogador o tem, como falamos anteriormente. Imagine só unir a torcida ao jogador em um aspecto específico, a vida fora do campo. Pense no poder que poderia ter. É uma ilusão falar: “A torcida teria de ser politizada e, portanto, é impossível.”. Não sei se é tão impossível. Não sei se é tão impossível convencer quase de uma forma natural a torcida a ter uma reação espontânea. Não se trata de manipular ou de organizar a torcida para defender um tal aspecto. Torcida derruba técnico, não derruba? Se ela se virar inteira de costas para o campo durante dois jogos, ela derruba o técnico do time. Será que ela não derruba outras coisas também? Eu não falo de uma torcida específica, mas de uma forma mais ampla.

O Stalin tinha tanto medo da torcida do Spartak que mandou prender quatro jogadores como forma de represália. Tem toda uma história desses quatro jogadores, que eram irmãos, que é muito simbólica. Não porque era deles especificamente, mas porque eles foram acusados de jogar de uma forma burguesa. Ninguém nunca entendeu o que era isso. Foram para um gulag e tal, tem a história específica desses jogadores. O recado do Stalin não era para eles, mas para a torcida. Então, você tem no futebol, nos estádios de forma geral, uma esfera de autonomia. Trata-se de um local em que a torcida pode ter um impacto muito grande. Pode ter um impacto negativo, como o racismo e a xenofobia, os quais se tentam combater. Se ela tem esse impacto, eu tenho certeza de que o outro impacto, positivo, também pode ser muito importante.

O que é o futebol para você?

Essa é a pergunta mais simples… Futebol, como outros esportes e como outras atividades humanas, é um espelho de uma sociedade em um determinado momento. É o esporte mais popular do mundo. É o esporte que tem a capacidade de ser democrático. É o esporte que tem a capacidade de atrair pessoas de diferentes religiões, rendas sociais… E é fácil explicar, é fácil convencer uma criança a entender qual é a regra básica desse esporte. Por todo esse poder e essa capacidade de mobilização que ele tem, o futebol de alguma forma é um espelho que pode ser usado ou não.

Quando é manipulado justamente por aqueles que sabem do poder daquela atividade humana, ele se torna de certa forma corrosivo. Nesse caso, o futebol cria um ambiente em que você se pergunta como é que alguém fecha o portão – alguém que sabe que não será punido. O que significa isso? Isso significa o sequestro por aquele grupo daquele esporte que é poderoso. Agora, se ele é tão poderoso assim, voltando à pergunta anterior, ele tem a capacidade de ser transformador. O futebol tem a capacidade de levar algumas mensagens que, sem uma mobilização tão grande do campo, da arquibancada, talvez fossem muito mais difusas. Então, imagine só, não uma campanha organizada, mas um movimento no futebol pela transparência ou pela justiça social. Imagine a capacidade que isso teria de mobilização.

Eu vejo o futebol não só como um espelho, mas como um instrumento de poder. Um instrumento de poder que existe porque é atraente como esporte, mas que pode ser utilizado, como está sendo utilizado hoje, por um grupo que sequestrou o esporte. Mas ele pode se transformar num instrumento de poder das massas, mas não no sentido das massas manipuladas, e sim no da democracia. Existe a capacidade de a torcida ser ouvida. Por que nós temos a situação em que o torcedor membro de um clube ainda tem a dificuldade de se identificar com a direção daquele clube? Porque ele sabe que ele não tem participação nenhuma. Se ele sabe que não tem participação nenhuma, qual é a relação dele com o próprio Estado dele? Quer dizer, você pode utilizar o futebol como instrumento de poder nesse sentido, de ter uma capacidade de mobilização que vá muito além do campo.

E só para completar: se o futebol é tão poderoso, e ele o é, essas pessoas que sequestraram o jogo já sabem disso. Eles já sabem disso e por isso a estrutura criada por eles repele o seguinte: “O esporte precisa ser independente, autônomo da política. Nós não podemos deixar a política invadir o futebol!”. Essa é uma grande mentira. Por quê? Porque eles sabem que no dia em que o futebol for político, não no sentido da manipulação, mas que essa massa tenha uma voz política, eles vão ser as primeiras vítimas. Eles vão ser expulsos dessa estrutura de poder. Então, não é por acaso que a FIFA, a CBF, a Conmebol têm o seu próprio tribunal e que insistem que a política não pode entrar. É evidente que existe o risco do filho do Saddam Hussein, na época em que ele governava o Iraque, bater no jogador quando a seleção do país perdia. Claro, isso é um problema. Mas um problema muito mais sério é o poder que esse esporte teria em toda a sociedade.

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Marcel Diego Tonini

É doutor (2016) e mestre (2010) em História Social pela Universidade de São Paulo, sendo também bacharel (2006) e licenciado (2005) em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP - Campus de Araraquara). Integra o Núcleo de Estudos em História Oral (NEHO-USP) e o Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas (LUDENS-USP). Tem experiência nas áreas de Ciências Sociais e História, com ênfase em Sociologia do Esporte, Relações Étnico-raciais, História Oral e História Sociocultural do Futebol, trabalhando principalmente com os seguintes temas: futebol, racismo, xenofobia, migração, memória e identidade.
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