06.10

João Havelange (parte 2)

No final de janeiro de 2012, o ex-presidente da FIFA João Havelange recebeu em seu escritório no Rio de Janeiro a professora Katia Rubio e Sérgio Settani Giglio. A entrevista integra o projeto coordenado pela professora Katia, intitulado Memórias Olímpicas por Atletas Olímpicos. Essa pesquisa tem por objetivo entrevistar os atletas que representaram o Brasil em alguma edição dos Jogos Olímpicos. Havelange fez parte desse grupo ao defender o país na natação em 1936 e no polo-aquático em 1952. Embora o ponto de partida seja a sua trajetória olímpica, nos dois dias de entrevista Havelange contou muito sobre a sua carreira de dirigente, tanto da CBD quanto da FIFA. Com exclusividade, o Ludopédio apresenta as principais partes dessa entrevista com o objetivo de prestar uma homenagem ao João Havelange pelo seu 96º aniversário completados em maio e desejar votos de melhoria de seu quadro de saúde.

 

João Havelange foi presidente da FIFA. Foto: Sérgio Settani Giglio.

 

Em que momento que o senhor vê essa transformação do futebol, desse jogo para um grande negócio?

Você vai me perdoar, modéstia a parte, eu modifiquei tudo no mundo. E já lhe disse que hoje o futebol é o que mais emprega no mundo. Qual é a companhia de publicidade ou firma que faz publicidade, não quer está ao lado? Quem sustentava a FIFA era a Mastercard, e aí a Visa quis entrar. Ela fez uma proposta à FIFA muito importante, muito superior à Mastercard e a FIFA aceitou. Vamos supor, a Mastercard entrou com uma ação na justiça contra contra a FIFA, porque assinou e uma multa tremenda. Você se preocupou com a multa ou eu? Quem pagou foi a Visa, que era o interesse dela, tá entendendo? Então, eu estou lhe dizendo isso, para você ver a força do negócio, do que se transformou o futebol. Eu estive lá por 24 anos, sempre que posso vou lá, este é o meu sentimento, e o Blatter é igual. Eu o deixei por causa disso. Tinha o Johansson, que foi uma luta, ele não se conformou até hoje, era sueco, pretencioso, bebia, não era do ramo, e você não imagina o que isso representou pro futebol no mundo, porque o Blatter era um dos diretores da Longines, que é um poder no mundo. Então, estava preparado, falava línguas, foi meu secretário nos 24 anos, durante 23 anos que eu mandei chamar, e com isso o futebol transformou-se num poder. Então, vamos supor, o Blatter, em 2015, ele termina o mandato dele, e vai fazer 80 anos, pedi a ele que não continuasse, agora quem você poria? Veja, cada vez está mais preocupante.

Porque são dois poderes Dr. Havelange, a FIFA hoje ela é uma entidade poderosa do ponto de vista econômico e político, não é só uma coisa ou só outra. E é inegável que o senhor promoveu essa transformação. E pra nós que assistimos a tudo de fora, nós nos informamos com os jornais.

Exatamente. E que nem sempre dizem a verdade. E a imprensa, você me perdoe, a primeira coisa que o jornalista quer é aparecer, então, ele dá uma forma sensacionalista, se saía formidável, é bom pra ele, pro jornal dele, mas não é bom e muitas vezes, não representa a verdade, o que aconteceu. Eu vou lhe dizer por quê. Eu lhe falei sobre o novo edifício da FIFA que o Blatter fez?

Não.

Onde nós estávamos, eu fiz um prédio, uma beleza e ele foi eleito dois anos depois, me disse, “tu podes vir?” e eu fui. A FIFA é em Sonnenberg, a zona mais poderosa, todo Sonnenberg é da FIFA, eu comprei tudo. Ele tinha um hotel, eu comprei. Tudo. Tinha um outro prédio, um outro. Eu comprei e deixei 275 milhões de dólares em propriedade. Quando eu cheguei, não tinha nada. É isso que me dói no meu país, o sujeito bota a boca no capim, desculpa a expressão. Então, o Blatter me chamou e eu fui, “vem comigo”, disse ele. Eu fui, na parte mais acima de Sonnenberg, também é um local bom. Eu cheguei e é um terreno de 40 mil metros quadrados. Para você ter uma ideia o Fluminense tem 56 mil, 40 mil, era o centro de esportes do Credit Suisse, e ele disse, “eles querem vender e me ofereceram”. Eu digo, “tu queres minha opinião?” Ele disse “sim”. “Devia ter comprado ontem!” E ele comprou, 14 milhões de dólares. E a FIFA foi crescendo. Ele aí imaginou fazer um edifício, tem lá dois ou três campos de futebol nós transformamos, mas ficou uma beleza, você tinha que ver isso, que é a principal coisa. Então ele teve que fazer o edifício, e na Europa não é como aqui, lei é lei. Naquela zona, não pode ultrapassar a floresta, 10 metros, então podia ir até 9 metros, tem três andares fora da terra, mas têm seis pra dentro, têm salões, têm três andares de garagem, e não tem nada no meio. Porque a gente tem um sentimento, tem uma Copa do Mundo onde é que você pode bota o carro? Atrapalhar os outros que nem aqui? Em cada estádio na Alemanha, dá 7 mil carros, Paris, você vai ao Saint-Denis, a mesma coisa, então, é isso que nos falta. Então o Blatter fez esse prédio, sabe quanto ele gastou? Pagou à vista, 240 milhões de dólares. Vendo o prédio de cima, um campo de futebol tem 103 ou 104 por 80 ou 90, o prédio é um campo de futebol. O prédio é uma loucura, você entra num campo e diz assim, aqui tá o prédio da FIFA. É inacreditável, alguém levou alguma coisa? Não. Pagou 240 milhões a uma firma suíça maior, quem comandava era uma senhora engenheira, de qualidade, maravilhosa. E eu, por exemplo, mais um fato que fala de futebol, o dia em que eu me despedi do Blatter, que foi no último dia do jogo em Paris na Copa do Mundo, eu chamei ele, dei um abraço, eu estava com minha esposa Ana Maria, e disse “eu tô te abraçando, porque estou indo pra Zurique para pegar minhas últimas coisas e vou pro Rio, e queria te dizer que tu nunca serás o presidente que eu fui”. Ele ficou murcho, e eu fui e disse a ele: “porque tu nunca terás o secretário que eu tive”, que era ele. E daí, quase desmaiou. Então, parece uma grosseria e é uma delicadeza, não é mesmo? E ele não esquece isso nunca e é um excelente presidente. Então são pequeninas coisas que tem valor.

João Havelange. Foto: Sérgio Settani Giglio.

E porque essa desavença dele hoje com o Ricardo Teixeira, Dr. Havelange?

É que o Ricardo quer ser presidente em 2015. É um direito. O Ricardo não é presidente, o presidente fui eu, ele foi meu genro. Quando ele foi meu genro, eu vim com ele um dia, com ele, a Lucinha, o Rico já estava na FIFA, fui com a Ana Maria, e botei ele na Société the Bank Suisse, durante 6 meses, porque ele era do mercado de capitais, ele tinha uma corretora e eu o levei, porque eu tinha facilidade. Os anos se passaram, eu mandei ele para Nova Iorque, para aquele centro financeiro de Nova Iorque, teve lá um ano, então, ele absorveu o que muita gente não tem e não é bobo. Como todo mineiro é esperto, malicioso. Então, é um direito, ele chegou à CBF. Ele está na FIFA, porque o presidente da CBF é o maior. Então tem três membros aqui, é ele, é o [Julio] Grandona, o [Nicolás] Leoz, que é o presidente. São os três que são daqui, aqui tem três e tem três da América Central e do Norte. É um mexicano, é um do Caribe, um do México e um lá de cima dos Estados Unidos. E o Ricardo, bem ou mal, administrou por duas Copas do Mundo, não é verdade? E eu poderia ter um ressentimento porque ele separou da minha filha, e eu não tenho nada haver com isso, mas eu não sei quem o Blatter vai querer, se ele me disser, que eu não quero me meter.

Conta-se que o João Carvalhaes em 58 foi uma pessoa muito importante pra aquela equipe. Quais lembranças o senhor tem dele nessa função?

Foi. Primeiro superar a imprensa e os comentários que se faziam, porque o sujeito só pensava em entrar em campo. E pra chegar lá, eu vou lhe contar um fato: acho que foi 1928, havia um jogo da Copa Rocca, entre Brasil e Argentina. E meu pai me levou pra ver e quando nós chegamos, os jogadores estavam almoçando e o papai perguntou ao jogador, “então, o senhor comeu bem, tá satisfeito?” Ele disse, “ah doutor, tô cheio”. Veja a expressão, por que como eles não tinham presidente, e eu chamei o meu dentista, não é verdade, que também criticaram pra valer. É porque como o sujeito não tinha o elemento mastigador, ele pegava arroz, jogava feijão, caldo de feijão, punha farinha, e comia com uma colher. Então, eu me lembrava disso, ainda rapaz, porque eles não tinham os elementos mastigadores que é importante e, depois, daqui se tem problema, todas as juntas sofrem. É o tal do artritismo, reumatismo, tudo que você quiser. E é por isso que eu botei tudo isso em funcionamento. E como eu era muito ligado à Santa Casa, eu sou da mesa ainda hoje, eu tinha uma enfermaria e foi lá que eu fiz o exame de todos os jogadores. Todos, da cabeça aos pés. E um jogador, tiveram que arrancar tudo que ele tinha na boca, porque puseram uma dentadura em cima dos cacos que ele tinha, já imaginou? Ia ter um câncer na boca. Olha, você não sabe o que eu passei, o que eu ouvi, tudo isso, porque antigamente era botar o time no campo e só. E perdemos pra Argentina, foi até bom. O argentino comia carne, o meu comia caldo de feijão. Os primeiros 45 minutos, o Brasil era uma beleza, pá, pá, pá, no outro, acabavam as pernas, a Argentina ganhou. E eu me lembrei de tudo isso, e hoje não, as pernas não acabam, tá certo? Mas sempre diziam: “não, ele é nadador, ele não entende nada”. Eu não sou motorista, mas a Cometa rodava, tá certo? Nem mecânico, tá bem. Então, vou lhe dizer mais, em março de 1958, preparando o time pra Copa do Mundo. Então, eu fiz a concentração em Poços de Caldas, no Hotel Poços de Caldas, que era o melhor da época, uma beleza. O time saiu e foi pro campo treinar, você sabe o que fez a imprensa? Em cada janela, botou uma mulher de costas, tirou fotografia e publicaram. Já imaginou quantas senhoras de jogadores foram à coisa, porque eles diziam que aquilo era uma devassa, essa coisa toda. Eu sei o que eu sofri, tá bom. Então, da imprensa eu tenho receio. Sempre que vem, eu tenho um cuidado imenso.

João Havelange e Katia Rubio. Foto: Sérgio Settani Giglio.

Mas deve haver algum jornalista em que o senhor confia?

Bom, os que eu confiava, já morreram. Vou lhe dar um exemplo: o Aldo da Silva, que era do Jornal dos Sports. Um dia me disseram que ele tava muito doente, eu fui vê-lo no apartamento dele, no Leme, e disse “como é que tu vais?”, “é João, eu tô assim, a coisa não tá boa”. Conversei muito com ele, fiquei com ele, e não disse nada. Isso foi num sábado, na segunda-feira eu fui à Brasília, o João [Figueiredo] era o presidente, “eu posso te pedir um favor?” Ele disse: “fala”. Eu digo, “quando tu vais ao Rio?” Ele me disse, “possivelmente no final desta semana”. “Tu farias uma gentileza pra mim?” Ele disse, “qual?” “É ir ver o Geraldo Romualdo da Silva, ele tá muito mal”. E eu queria, porque o Geraldo tinha feito a escola militar com o João, ficou na carreira e ele foi ser jornalista. Se não me engano, no domingo ele me telefona: “já cheguei, já fui vê-lo, eu já dei o meu abraço nele”. Ninguém faz isso. Então, é isso que quando atacam, me dá tristeza. Não tenho nada a ver com isso, não é verdade? Você mesmo disse, o filho da Andreazza, tá numa m… tremenda, o Andrezza morreu daquele jeito. Não tinha dinheiro pra fazer o enterro. E todo mundo dizia que eles se aproveitaram, fez a ponte Rio-Niterói, e taí ela, não é verdade?

Ele fez a Transamazônica.

Também. Já estão abandonando. Aquilo custou uma fortuna, importante porque as fronteiras têm valor. O Armando Nogueira já morreu, não é?

Morreu.

Ele uma vez fez um artigo, mas me arrasando e aí o Braga me convida para um almoço. O Braga daqui, que foi do Bradesco. E eu chegando lá, ele estava lá, começou a fazer críticas, e eu disse a ele, “você sabe quem é o responsável de todas as críticas que você faz e que me atingem”? Ele me disse: “não”. Eu disse: “Barão do Rio Branco. Sabe por quê? Porque hoje em dia, o Acre é nosso porque foi comprado da Bolívia. Como tu nasceste no Acre, hoje tu deverias estar em La Paz”. Ele não sabia onde se meter. Não ofendi, não disse nada, só disse uma verdade, tá certo? Olha a gente é burro, mas não tanto quanto eles imaginam [risos].

João Havelange. Foto: Sérgio Settani Giglio.

Dr. Havelange, uma pergunta em relação a essa relação com os jornalistas, o João Saldanha era o jornalista e fez parte em 69, antes da Copa de 70. Como era essa relação com o Saldanha, pelo menos o que passavam pela imprensa, ele tinha uma opinião muito forte, como é que foi essa convivência?

O João Saldanha, eu conheci ele rapazinho lá do Botafogo. Ele era do Botafogo de Futebol, jogava futebol e eu era do Regatas. Eram separados na época. Eu jogava water polo no Regata e às vezes nos encontrávamos, eu me dava bem com ele e tudo, e aí eu faço a preparação, faço a Copa do México de 70. Isso antes de eu chegar à FIFA. E era presidente da Federação do Rio, Antonio do Passo. E eu dei a ele a chefia da delegação. Ele é quem ia. E eu disse a ele: “tu indicas o técnico, mas toma cuidado”. E ele diz, “o João Saldanha”. Eu disse a ele: “tu vais ter aborrecimento”. Mas, era indicação dele, eu deixei. Eu tinha um sistema, porque como os jornalistas queriam invadir tudo, você vai ali perto do Itanhangá, lá em cima, tinha um convento dos padres, e a seleção ficava sediada lá. E ninguém entrava depois das seis horas. Então, tinha tranquilidade. E eu tinha conseguido no Itanhangá fazer um campo de futebol e eles treinavam lá. Bom, aí o Bangu faz anos, o Silveirinha me telefona, “João, tu não poderias fazer um jogo da seleção, jogo-treino da seleção com o Bangu?” Eu digo: “com imenso prazer”. Falei com o Antonio do Passo e fizemos Eu fui. O João Saldanha era o técnico, e eu assisti o jogo e o Brasil pra ganhar de 1 a 0 foi uma luta, o time não andava, acabou ganhando de 1 a 0, porque quem dirigia o Bangu naquela época era o, ele já morreu, foi técnico do Flamengo. Ele foi vendo como o ele estava no Bangu, ele foi tirando jogador e botando outros, enfim, acabou o time e o meu ganhou de 1 a 0, por que ele fez isso?. Delicadeza. Antes do time sair, eu disse: “João, eu te espero na concentração, quero falar contigo”. E vim. Ele chegou na concentração e ele disse: “presidente, um minuto que eu já venho”. Porque tinha chegado o material da Adidas, ele se fantasiou de Adidas e disse, “olha João, aqui está o material, vê que maravilha?”, eu digo: “não vim aqui pra isso, eu vim pra conversar com você sobre um assunto”. E ele começou a pular daqui, de lá, eu digo: “está bem, nós vamos fazer o seguinte, segunda-feira, às 11 horas, no meu escritório, na CBD, na rua da Alfândega, e eu tô te esperando, quero falar com o senhor”. Avisei o Antonio do Passo, avisei o Sílvio e avisei o Abílio de Almeida. E houve a reunião e eu disse ao Antonio do Passo, repete aqui na frente, botei o João sentado ao meu lado, que ele era metido a valentão, e eu ainda estava bem, não é, digo boto a mão nele, ele não se mexe, e aí o Antonio do Passo disse tudo o que estava abafado e aí, eu virei e disse: “o que é que você tem a dizer, João?” Ele disse a verdade. Eu fui aí e disse “então, Antonio do Passo, você tem até o final da semana pra me apresentar um novo técnico, um novo esquema”. Eu digo “muito obrigado João, pode se levantar”. Ele levantou, tinha o corredor, era 10º andar, estava cheio de jornalista, e ele falando alto e tudo, eu saí de onde estava e disse: “João se você continuar a falar, você ainda está sob contrato, eu lhe suspendo”. Então você quer falar o que você quiser, desça e fale na rua. Ele desceu com todos os jornalistas. E aí foi que eu fiz um novo esquema com o Antonio do Passo e é aí é que veio o Zagallo, veio o Parreira, veio o Coutinho, completamente diferente. Então veja, se você levar pelos jornais é uma coisa, que é uma paixão, é isso, você tem que ser levado pelo equilíbrio, pelo raciocínio, por uma análise, e fomos campeões em 70, tá vendo. E eu fui lá, eu fui lá ver um jogo, de abertura, cheguei de tarde, fiquei no hotel, no dia seguinte sete e meia me levantei, oito horas estava dentro d’água, nadei numa piscina que tinha no hotel, me vesti, fui assistir o treino dele, a palestra do Zagallo e do Parreira, de noite peguei o avião e vim embora. Que não era o meu lugar, pra isso tem gente, tinha um chefe de delegação, tinha tudo. Então, veja, achar que um país não pode se deixar se levar por um sentimento, não vou levar meu primo, vou levar não sei o que. Você tem o arbítrio de como deve ser ou não. Eu nunca tive ninguém da minha família em lugar nenhum; na FIFA, nem se fala. Você sabe o que é chegar num organismo, sem uma pessoa ser do seu país e eu consegui me adaptar a todo mundo?

Dr. Havelange, o senhor na condição de dirigente conviveu com três presidentes dos Comitês Olímpicos Internacionais, recentemente o Jacques Rogge, o Samaranch…

O Killanin.

O Killanin. Como era essa relação sua com esses homens?

E antes do Killanin, o Avery Brundage que era americano e dono de uma cadeia de hotéis, um homem muito rico. O Lord Killanin era da Irlanda do Sul, quer dizer inglês, mas independente. E depois veio o Samaranch e hoje veio o Rogge. Eu fui eleito para o Comitê Olímpico na presidência do Avery Brundage. Se apresentaram pra vaga, porque o Arnaldo tinha morrido, e há muito tempo não tinha sido preenchida, e me pediram pra me candidatar, me candidatei. O Avery Brundage veio ao Brasil e ouviu todos aqueles que se apresentaram. A minha entrevista com ele foi no Copacabana Palace. E eu disse a ele, “o senhor me permite que eu lhe convide para almoçar?” Ele me disse: “senhor Havelange, eu já tenho compromisso e muito obrigado por tudo”. Eu me levantei e vim embora. Houve o congresso e o eleito fui eu. Aqueles que se apresentaram não ficaram satisfeitos. E isso foi em 1939. Em 40, eu ia tomar a minha posição na assembleia, que era presidida pelo Avery Brundage. E, quando eu desci, estavam todos no salão, a maioria ingleses e eu me apresentei, apresentei a minha senhora, Ana Maria. Você sabe que ninguém se levantou pra cumprimentar a minha senhora. Como se eu fosse lixo. Como se eu cheirasse mal. Então veja, não é fácil ser brasileiro no exterior. Então, veja o que eu padeci lá e cá. Então eu tive o Avery Brundage, corretíssimo comigo. O Lord Killanin saiu quando eu me fiz presidente da FIFA e entrou o Samaranch. A eleição do Samaranch tinha mais quatro candidatos, tinha um canadense e mais, dois ou três da Europa. E o Samaranch tinha vindo aqui e eu me dava com ele, desde a Copa do Mundo na Espanha, enfim essas coisas. E eu tinha dito a ele que ficava com ele, 1980, e antes de se realizar a eleição, eu fiz uma carta a ele, dizendo que ele ia ter tantos votos, 54 votos e ele precisava de 53 pra passar na primeira. E mandei a carta e fiquei esperando a eleição, veio a eleição, ele teve não os 54 que precisava, dava 53, ele teve 55 e foi eleito, 1980. E ele deixou em 2001, em Moscou, quando entrou o Rogge. O Rogge se apresenta a ele e mais quatro pessoas. E todos quiseram me ver, eu era presidente da FIFA e era o mais antigo, e aí não o mais velho, o mais antigo. E aí, eu os recebi cada um de Leipzig, num almoço no Savoy, aonde eu me hospedei, me hospedo sempre. E foram todos e no final eu disse: “Samaranch, eu fico com você”. No dia da eleição, em 81, de novo em Moscou, eu fiz uma carta a ele, dizendo a ele que ele seria eleito no segundo turno com 54 votos. Ele foi eleito no segundo turno, 54 votos e ele tem essa carta em mãos. O tempo passou e eu presidente, e nesses, quanto, 48 anos, devem ter se realizado, mais do que 110 assembleias e eu faltei, acho que a 4 ou 5. Uma eu me lembro, foi no Japão, porque eu tinha a Copa do Mundo, no dia que tinha, tinha a abertura da Copa, não ia deixar de ir. Enfim, nunca faltei a nada. Bom, agora eu recebo uma carta do Rogge, pra eu me apresentar na Comissão de Ética. E, eu aí, respondi a ele, isso baseado em um jornalista inglês, e eu aí fiz uma carta a ele, mandando um documento, eu nunca fui chamado ao processo, rodou 10 anos, ele está arquivado e só pode ser aberto daqui há 10 anos, é a lei suíça. Então, por essa declaração ele mandou me chamar e eu disse que não ia. E mandei a ele uma carta que ele tem o poder de me demitir. Ele aí me mandou um carta, assim, e me disse que então eu seria recebido para o Comitê Olímpico para dar explicações. E aí fiz uma carta a ele dizendo que depois de 48 anos, e haver cumprido com todas as minhas obrigações e missões sem nunca faltar, que eu não aceitava esse sistema de ser interrogado por membros e digo, ao lado dessa sua carta tem uma outra carta em que o senhor tem a minha demissão e acabou, eu saí. Então, depois de 48 anos, ouvir isso e ter isso, e ter eleito esse filho daquilo é duro, sabe por quê? Nasci aqui. Então, ele é belga, ele acha que tem o rei na barriga, tá certo?. E a raiva dele é que querem eleger o porto riquenho pra substituir ele. Vamos ver quem pode mais. Mesmo não estando lá.

João Havelange foi atleta e disputou duas Olímpiadas. Foto: Sérgio Settani Giglio.

E essa Copa do Mundo nos Estados Unidos, Dr. Havelange, o que que ela teve de particular, pelo fato de ter sido um grande investimento num país que não tinha tradição alguma de futebol?

Foi em 1994 e eu fui. E eu ainda era presidente da FIFA. E era o Clinton, o presidente, me recebeu delicadíssimo e tudo. E eu me dava muito com o Kissinger, nos tornamos amigos porque tivemos um atrito. Um atrito na Copa do Mundo de 1974 na Alemanha. Houve o jogo Brasil e Holanda, e ele tinha estado na Holanda por uma questão de petróleo pelos Estados Unidos, ele era o secretário de Estado. E ele chega e eu estou no jogo Brasil e Holanda, vindo da Holanda, primeiro ministro dos Estados Unidos, ministro das relações exteriores. Ele sentou e aí começou a torcer feito um louco pela Holanda. Em um determinado momento, me levantei, eu digo: “queria lhe dizer que sou o novo presidente da FIFA”. E também lhe dizer uma coisa: “eu sou brasileiro e gostaria que o senhor assistisse o jogo como eu estou assistindo” e fui me sentar. Ele não mexeu mais. O tempo passou, houve o centenário do Futebol nos Estados Unidos e foi em Chicago e eu fui. Acho que foi em 76 e eu representava aqui uma firma muito importante dos Estados Unidos e me disseram: “o Kissinger é do nosso conselho, nós o convidamos para assistir o jogo. E ele pediu se o senhor pudesse esperá-lo para ele entrar pra ir ver o jogo”, que o jogo era Brasil e Itália, o qual nós ganhamos. Eu esperei, estava com a Nanci, foi muito gentil, ele também, e levei para ver o jogo. Quando o Brasil ganhou, terminou o jogo, ele veio a mim, estava a Ana Maria, estava a Nanci e me disse, “meu comportamento foi bom?”

[risos].

Palavra de honra. Eu digo, “excelente, felizmente você aprendeu”. Foi uma naturalidade. Saímos, nos abraçamos, almoçamos juntos e uma vez ele veio ao Brasil convidado pela família Klabin, e o mais velho tinha sido prefeito do Rio, me telefonou e disse: “o Kissinger vem e eu tô te convidando, porque ele me disse se você não tiver no jantar que ele não vem ao Brasil”. E eu fui ao jantar e assim estamos sempre juntos. Toda manifestação da FIFA ele recebe um convite até hoje, tá bom. Então, é isso que a gente tem que fazer, que o embaixador não faz.

E qual foi o empenho dos Estados Unidos em realizar a Copa do Mundo em 94?

Porque é uma difusão para o futebol. Futebol não é o primeiro nos Estados Unidos, primeiro é o beisebol, tem o rugby, não é maior que o basquetebol por que se joga num ginásio de vinte mil pessoas. Mas se fosse num grande estádio, encheria, mas você não veria a bola, não veria nada, não é verdade? [risos]. Então, eles quiseram fazer e fizeram muito bem, porque os estádios eram estádios de beisebol, que eles adaptaram e foi fantástico, todos os estádios com 80 mil pessoas. Eu nunca me esqueço e foi uma coisa muito boa, no dia da abertura do jogo, foi em Chicago, entre a Bolívia e a Alemanha, eu estava numa tribuna e atrás de mim ficou o Clinton, o Kissinger, o Primeiro Ministro da Alemanha naquela época, era um homem alto, não me lembro mais o nome dele, e quem mais que estava lá dentro, eram quatro. E estava um calor e aí veio o half-time, sobe uma pessoa e me diz: “o senhor não tá com calor?. Eu digo: “na missão que eu tenho eu não sinto frio nem calor”. E ele começou a rir e disse: “interessante”. O senhor olha para trás, o Clinton já tinha tirado o paletó, estava de manga arregaçada, o Kissinger, todos eles. E eu estava com a Ana Maria sentado como eu estou aqui. Olha, se eu pude dar exemplo para o meu país, pode ter certeza que eu dei. Eu sempre pensava, eu digo, um dia vai ser bom. E tá chegando, pouco a pouco. Já temos a Copa de novo, porque tivemos a de 50 e perdemos no dia, não é verdade? Então, vou lhe contar mais uma: eu morava em São Paulo, vinha ao jogo e o meu cunhado.

João Havelange. Foto: Sérgio Settani Giglio.

A final? O jogo final?

Final. E o meu cunhado, Hugo Mamede, que tinha sido um dos engenheiros da construção do Maracanã, ele me disse: “não deixa de vir”. Então eu vim. Ele foi me buscar no aeroporto, cheguei aqui no Santos Dumont, vim e assisti o jogo. Não disse nada, perdemos e quando nós voltávamos, quando eu voltava pra São Paulo para pegar o avião, eu disse ao Hugo: “o dia que eu chegar à presidência, em 50, eu dou a Copa do Mundo ao Brasil”. Porque pelo regulamento da Copa naquela época, quando o Brasil entrou em campo com o Uruguai, o empate valia, então o Brasil já era campeão. No decorrer do jogo o Brasil faz 1 a 0, tá mais seguro, na continuidade do jogo, o Uruguai faz o primeiro gol, 1 a 1. Eu ainda sou campeão do mundo, faltava 10, 15 minutos, muita gente já tava saindo feliz da vida e o Uruguai faz o gol. Eu tive uma tristeza porque a gente tem que se preparar psicologicamente e tudo e não facilitar, não é? E perdemos. Então, eu disse, se um dia chegar à presidente, eu dou ao Brasil e dei. Cheguei em 58 e dei paciência [risos].

Houve o silêncio naquele dia?

Total. Aquilo estava lotado, tinha 220 mil pessoas. Foi o maior público no mundo em 50. E é uma coisa. E o Brasil, não se esqueça, a primeira Copa do Mundo foi em 1930, foi no Uruguai. Eu acho que vieram só 12 ou 14 times, porque todo mundo vinha de navio. E o Brasil tinha um belo time, mas perdeu, tinha o Domingos da Guia, tinha o Leônidas, tinha os jogadores mais excepcionais, perdeu pro Uruguai de 2 a 1, não foi isso? Naquela época assistia pelo rádio, tinha um radinho. E depois fugia da coisa, a gente tinha que procurar, uma loucura [risos]. Aí meu Deus do céu. Mas, olha, vale ouro.

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