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João Paulo Medina (parte 2)

Equipe Ludopédio 26 de novembro de 2016

João Paulo Medina é um multiprofissional. Mestre em Educação e doutorando em Educação Física (FEF/Unicamp), foi professor da Unicamp e PUC-Campinas. Foi preparador físico e participou ativamente da estruturação e organização dos departamentos de futebol de diversos clubes brasileiros. No início da década de 90, foi assistente técnico da Seleção Brasileira de futebol e responsável pela preparação física e coordenação de planejamento da seleção da Arábia Saudita. É o idealizador e criador da Universidade do Futebol, um dos principais sites brasileiros dedicados ao universo futebolístico.

Foto: Sérgio Giglio
João Paulo Medina. Foto: Sérgio Settani Giglio.

Segunda parte

Como surgiu o projeto da “Cidade do Futebol”?

Eu sempre fui uma pessoa muito visual. Visual e, ao mesmo tempo, preocupado com as questões gerais. Era crítico à especialização pela especialização, crítico ao especialista que não contextualiza a sua área de saber e que não se preocupa em entender a complexidade do mundo e, dentro dele, o futebol. Desde antes de estudar a Filosofia da Educação, que foi a área onde desenvolvi a minha tese de mestrado, eu tinha essas preocupações. Fui sempre um crítico desse crescimento da ciência, da medicina e de tantas outras áreas, por meio só da especialização, onde muitas vezes se perde o contato com o todo, com uma visão mais complexa das coisas. E assim surgiu um pouco a ideia, ao ver um desenho da Disneylândia… que tinha as casinhas, as atrações, uma cidade de diversão. Pensei: “Por que não fazer algo que represente o universo todo do futebol, já que nele existem tantas áreas de conhecimento e que podem ser representadas por meio de edifícios e espaços específicos, como uma cidade?” Foi essa a origem de tudo.

Então, lá no fim da década de 1990, por volta de 1997, eu comecei a desenvolver a ideia; contratei um profissional que desenhava bem e solicitei: “Desenhe isso para mim. Prédios temáticos, um centro de treinamento de excelência, um centro de informação, pesquisa e estatísticas do futebol, uma arena, uma “prefeitura” para representar a gestão do futebol, a FIFA, a CBF, as federações, um centro de saúde esportiva, um museu do futebol para contar a história do futebol, um centro ecumênico ou de reflexão espiritual para contemplar as crenças e as religiões de todo mundo…”. Centro ecumênico era o nome que eu dava na época. Depois eu descobri que “ecumenismo” é ligado às religiões cristãs apenas, não contemplando todas as crenças religiosas. Então, mudei o nome para centro de reflexão espiritual, independente de qualquer religião ou até de não se ter religião alguma. Existem pessoas, por exemplo, que querem apenas exercitar a sua dimensão espiritual, mas que não seguem qualquer religião ou crença formal. Isso é uma coisa menos comum, mas é legítima. Eu mesmo sou um destes exemplos. Não sigo nenhuma religião, mas acho que esse aspecto espiritual na pessoa é fundamental. É até a essência para a vida plena de qualquer pessoa. Qual é o sentido que você dá para a sua vida? Essa pergunta é existencial e também espiritual, mesmo sem qualquer conotação mais religiosa ou mística. Você não pode responder profundamente a esta questão se não for buscar um sentido para a sua própria vida. Entender isto é essencial e determinante até para se avaliar o empenho dos atletas no treino, no jogo e saber por que ele se comporta deste ou daquele jeito. Por isso achei importante considerar na “Cidade do Futebol” este “Centro de Reflexão Espiritual”, ou seja, um espaço específico para as pessoas exercitarem a sua espiritualidade, independentemente de qualquer religião. Enfim, a “Cidade do Futebol” tinha todas as áreas e setores, por meio de centros de treinamento, estádio, escola interdisciplinar, hospital esportivo, ONG’s de projetos socioesportivos, entre tantos outros edifícios e espaços que representavam todo o universo do futebol.

De vez em quando eu revejo esta “Cidade”, ouço as pessoas que compartilham desta visão e mudo alguma coisa, de acordo com a própria compreensão que tenho do futebol e do mundo. Quando começou essa ideia, criamos até uma animação que ficava no topo do site representando a cidade. Ela não era estática. Nós gravamos um vídeo que era um passeio virtual pelo site. Aquela foi a única animação que nós fizemos e estou aguardando o melhor momento de relança-la, como inspiração e referência para a compreensão da complexidade que é o futebol. Resgatar este projeto (da Cidade Virtual do Futebol) é um sonho que ainda tenho, porque essa foi a ideia original. Ter uma cidade, em cujo um passeio, uma visita, permitiria conhecer todo o universo do futebol. O projeto arquitetônico que já existe, consegui desenvolver, graças a contribuição especial de um amigo arquiteto de Jundiaí, o Alexandre Panizza, que se encantou com a ideia e me fez (quase de graça) um projeto arquitetônico da cidade e o campus universitário, que era a “Universidade do Futebol”.

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Projeto da Cidade do Futebol.

Mas por que inicialmente eu chamei este projeto de “Cidade do Futebol” e não “Universidade do Futebol” como é agora? No fundo, a ideia inicial já era criar uma “Universidade do Futebol” virtual que disponibilizasse conhecimentos e promovesse o debate crítico sobre esta expressiva atividade humana e reconhece-la como área do conhecimento que tem grande significado cultural, social e econômico, no Brasil e no mundo todo. O futebol não é uma simples modalidade desportiva, como muita gente ainda pensa. Ele é muito mais do que isto. Pode ser fator de alienação, como dizem alguns? Pode, é verdade! Mas pode também representar crescimento, criatividade, educação e tudo o mais que faz sentido para o crescimento humano e social de um povo. Isto se, conscientemente, trabalharmos nesta direção. Portanto, a ideia era construir uma plataforma de conhecimento e reflexão. Então, seria até mais lógico chamar o projeto de “Universidade do Futebol”. Mas no início eu achava muito pretencioso chamar a “Cidade” de “Universidade”. No começo de tudo não havia muito conteúdo no site, não havia robustez suficiente para caracterizar uma verdadeira “Universidade do Futebol”. Como eu pretendia colocar ou reunir nesse projeto todo o conhecimento do futebol através de edifícios e espaços específicos, a gente optou por ter a “Cidade do Futebol” e a “Universidade do Futebol” ao lado, representando o “campus universitário”. O “campus universitário” virtual era e é composto por cinco grandes áreas: a área técnica propriamente dita, que é aquilo que para muitos resume o universo do futebol. Ao pensar em futebol, você já se lembra do jogador, do jogo, do treino, da prática. Mas isto não é tudo. Tem ainda as áreas da saúde, da gestão – que é a área de governança, a área de marketing e também a área que reunia todas as ciências humanas e sociais, que infelizmente costuma vir meio a reboque no conjunto dos conhecimentos produzidos no futebol, embora seja, no meu modo de ver, fundamental para se compreender o futebol. Como nos ensina o professor Manuel Sérgio “Quem quer entender o futebol só estudando o futebol jamais saberá o que é o futebol”. Mas este fenômeno não ocorre só no futebol. Mais uma vez, é a visão especialista impedindo que enxerguemos o todo.

É preciso constatar que esta visão não é exclusiva do futebol. Mesmo dentro da universidade, a gente vê ainda que as próprias escolas de Educação Física desdenham um pouco da importância das ciências humanas e sociais para a compreensão do fenômeno esportivo. E não só para a prática também. Apoiar-se apenas nas ciências biológicas não é suficiente para se entender o esporte e a prática esportiva. Então, esta área do conhecimento do esporte relacionada à área das ciências humanas e sociais sempre teve um carinho especial da minha parte, embora reconheça que não é a área mais procurada e visitada na Universidade do Futebol, infelizmente. A procura pela área técnica ainda é prevalente. Até costumo brincar que um texto que escrevi para o site sobre futebol, interdisciplinaridade, transdisciplinaridade e complexidade, talvez tenha sido lido por meia dúzia de pessoas.

Enfim, foi assim que surgiu e se desenvolveu esta ideia. E, realmente, agora a gente está trabalhando, junto com a nossa engajada equipe de colaboradores na Universidade do Futebol, no sentido de reestruturar e adequar este sonho à atual realidade de nosso futebol, de nosso país e do momento pelo qual passa o mundo em que vivemos.

 

Fale um pouco sobre as dificuldades que teve que enfrentar para desenvolver esta ideia da “Universidade do Futebol”.

Como comentei, o projeto evoluiu do conceito de “Cidade do Futebol” para o de “Universidade do Futebol”. Entrar em um site com o rótulo de “Universidade” e se deparar com um volume de informações pequeno já causa uma frustração. Imaginei que a “Cidade do Futebol” pudesse ser uma plataforma para se discutir o futebol em todas as suas dimensões. Aí, imaginei: “Construo o site e convido os mais destacados profissionais, já que tenho contato com todo mundo no meio do futebol, e peço a colaboração deles para alimentar um conteúdo que pode ser muito rico e que vai contribuir com o desenvolvimento de novas propostas para o futebol brasileiro. Convido o Turíbio, que é um dos mais destacados fisiologistas do futebol, convido o Moraci Sant’Anna que trabalhou muito tempo em grandes clubes e na Seleção Brasileira, o português Manuel Sérgio, um dos poucos filósofos do esporte, Parreira, que é amigo e experiente treinador tetracampeão mundial, entre tantos outros que são experts em suas áreas e pronto, tudo caminharia sem muitas dificuldades”. Mas isso não funcionou como eu imaginava. Praticamente todo mundo que convidei aceitou participar. Convidei cerca de 60 destacados profissionais do futebol brasileiro, cobrindo mais de 40 subáreas do conhecimento dentro de 5 grandes áreas: técnico-metodológicas, de marketing e comunicação, saúde esportiva, governança e ciências humanas e sociais, tudo visto numa perspectiva interdisciplinar. A ideia inicial era disponibilizar o site para as pessoas contribuírem. Não funcionou. As pessoas concordavam e achavam ótima a ideia, mas não tinham tempo para contribuir como gostaria. Então, decidi contratar um jornalista para fazer o trabalho de contato, conversar com as pessoas, fazer entrevistas.  Aí a coisa começou a fluir um pouco mais. Logo precisei de dois jornalistas, ao invés de um. As pessoas começaram a gostar, mas a gente tinha que ter um planejamento, recursos humanos e financeiros para tocar o site.

Por volta de 2009, já tínhamos cerca de quatro mil textos nas diferentes áreas. Comecei a fazer alguns investimentos, surgiram os vídeos de domínio público no Youtube, que a gente poderia disponibilizar. A coisa foi crescendo e em 2010, se não me engano, a gente mudou a logomarca, mudou tudo e transformou a “Cidade do Futebol” em “Universidade do Futebol”. Sempre achei o nome “Universidade do Futebol” muito forte, tanto que procuramos registrar este domínio e outros nomes correlatos. Considerava a “Cidade do Futebol” uma atração por si só. Quem se interessasse poderia, por exemplo, entrar no “Museu do Futebol”. A ideia não era só um passeio virtual por cima dos prédios, como já existia. O que pretendia era que o visitante entrasse no “Museu do Futebol” virtualmente e tivesse acesso à história do futebol, a história do Pelé, do Maradona, a história do Corinthians, do São Paulo, do Flamengo, obras de arte relacionadas ao futebol entre tantas outras atrações.

A proposta era de que tudo pudesse ser acessado virtualmente. Desde o final da década de 1990 eu acreditava nas possibilidades e amplitude da educação à distância. Ela é democrática, pode atingir os mais longínquos rincões do mundo. Aquilo poderia representar uma quebra de paradigma. Eu me lembro que, quando lancei a “Cidade do Futebol”, já com a intenção de transforma-la em uma “Universidade do Futebol”, a maioria das pessoas sorria meio com desdém: “O Medina está ficando louco. Onde se viu, querer ensinar futebol pela internet?” Hoje em dia fica cada vez mais claro que  em determinados aspectos, a educação à distância tem até mais vantagens do que a presencial. Atualmente não tenho nenhuma dúvida sobre isto. É claro em alguns aspectos o contato pessoal/presencial é insuperável, mas não em questão de acesso aos mais diversos tipos de conhecimento, conteúdos e experiências das mais diversificadas. O rigor no aprendizado também pode ser até maior do que a experiência presencial.

Veja, por exemplo, as dificuldades de se organizar um curso de futebol presencial. Como se organiza isso? Você tem que escolher um local adequado, em um período determinado, considerar os custos de deslocamento e hospedagem dos alunos, contratar profissionais específicos entre tantas outras providências. Quanto custa cada dia de duração e realização de um curso como este? A logística e os custos são muito altos. Quem pode pagar por tudo isto? Eu me lembro que fizemos uma vez um curso em que convidamos os melhores profissionais do futebol para palestrarem e realizarem práticas. Aconteceu em uma sexta, sábado e domingo, em Itu, num centro de treinamento de alto nível de um amigo meu. Como tinha dado um apoio para ele na construção do centro, consegui alocar o espaço por um preço bem camarada. Mas o custo operacional por pessoa era entre R$ 800 e R$ 1.000 reais, na época. Vieram pessoas de catorze estados do Brasil. Cada aluno tinha que encarar as despesas com o transporte, a hospedagem, a alimentação, entre outros custos. As pessoas ficaram reunidas durante dois dias e meio. Foi uma experiência bacana por conta principalmente dos profissionais convidados e o rico networking, que realmente pode agregar muito. Já no evento online, este contato é mais difícil de se estabelecer. Mas o que o pessoal realmente aprendeu nestes dois dias e meio? Lá estavam alguns dos melhores profissionais de alto rendimento, portanto as aulas e os treinos que foram ministrados eram focados fundamentalmente nas equipes masculinas de futebol profissional. Se o aluno ali presente trabalhasse com crianças de oito a dez anos, conseguiria aproveitar aquele conteúdo de forma plena? Talvez aqueles ensinamentos fossem até contraindicados para as crianças com as quais ele trabalhava. Talvez aquilo era tudo o que o profissional não deveria fazer, pois o público-alvo era completamente diferente. No curso online isto pode ser evitado, até com mais facilidade. Se a pessoa trabalha com formação, com futebol feminino, com projetos socioeducacionais, pode procurar o conteúdo específico que lhe interessa e observar, por meio de vídeos, modelos aplicados em diferentes partes do Brasil e do mundo. Outra grande vantagem é que o aluno não precisa se afastar de sua cidade, de seu trabalho e mesmo assim ter a oportunidade de estudar à noite, de madrugada, a hora que puder. Se não pode estudar em um dia, no outro pode dobrar a carga. Outra coisa é em relação ao rigor e a cobrança sobre o aluno. Na Universidade do Futebol, por exemplo, nenhum aluno recebe o certificado se não cumprir rigorosamente todas as tarefas e atividades propostas nos cursos online. O rigor, neste caso, é tão grande ou até maior do que nos cursos presenciais.

 

Medina, fale mais de suas experiências em clubes de futebol. Recentemente, você atuou no Coritiba como CEO. Por que o projeto desse trabalho não foi duradouro, já que ficou pouco tempo por lá? Conta como foi esse processo.

Foram cinco meses de trabalho no clube. Mas antes disso, em 2014, tinha prestado uma consultoria para um grupo de pessoas da oposição que queria disputar a eleição para assumir o comando do clube. O grupo era contrário à política e caminhos seguidos pelo presidente que administrava o clube à época. Então fiz um estudo, um diagnóstico da situação do Coritiba e elaborei um plano de mudanças na governança, no marketing – com a ajuda do consultor Amir Somoggi – e nas áreas técnicas. Caso o grupo ganhasse a eleição, teria um caminho a ser seguido, definido pelo plano que elaborei. O pessoal usou esse plano como bandeira política e proposta para ganhar a eleição. E ganhou com quase 70% dos votos.

Foi uma vitória contundente, já que o presidente naquela época era o Vilson Ribeiro de Andrade, que tinha certo protagonismo no cenário nacional do futebol, uma vez que era ligado ao José Maria Marin e Marco Polo Del Nero, respectivamente presidente e vice da CBF. Se não me engano, ele foi o chefe da delegação da seleção brasileira em 2014. Eu me lembro até de que tiveram uns debates sobre o Bom Senso F.C. – movimento de atletas para o qual a Universidade do Futebol dava e dá uma consultoria (não temos uma relação profissional, mas um vínculo ideológico, por acreditar nessa luta dos atletas) –, e o Vilson se colocava como alguém que fazia uma interlocução e debatia com vários setores, representando a CBF. Enfim, ele tinha um peso político grande, mas mesmo assim o grupo opositor ganhou a eleição.

As pessoas ligadas à oposição do Coritiba que me contrataram para a consultoria me diziam que se o grupo ganhasse a eleição, voltariam a falar comigo para me convidar a fazer parte do novo processo a ser implantado. Mas eu sempre respondia que não aceitaria. Lembro-me que ria dizendo que se eles ganhassem o poder no clube eu indicaria um profissional melhor que eu para ser o CEO. Não estava no meu escopo voltar a trabalhar em clube de futebol, a não ser por meio de consultoria da Universidade do Futebol que é a empresa que comando. Mas depois de muita insistência da nova diretoria eleita, acabei aceitando a proposta.

Entretanto, como já previa o trabalho não foi nada fácil. Desde o início ocorreram vários confrontos internos, embora alguns pontos do nosso planejamento estratégico puderam avançar aqui e ali. Nas categorias de base, por exemplo, conseguimos fazer bastante coisa, porque é um lugar que os dirigentes não têm muito foco. Então, aí consegui avançar um pouco mais. Acho que o perfil de um clube como o Coritiba (e o plano previa isto) é investir nas categorias de base, formação, formar jogadores diferenciados, já que o mercado pede isso. Se o jogador for bem formado e capacitado, o clube planta uma semente para daqui a uns cinco ou seis anos colher os frutos. Investi bastante nisso e fui brigando como dava na equipe principal, com contratação e afastamento de empresários, que era uma das coisas que eu sabia que acontecia e que acontece praticamente em todos os clubes, mas que eu sempre achei que deve ser blindado. Sei que há agentes e empresários decentes e bem intencionados, mas no geral há uma promiscuidade muito grande neste setor. Muitas vezes até entre empresários ou agentes de futebol e os dirigentes estatutários, que escondem interesses pessoais e escusos neste ambiente. Em um primeiro momento, como já tínhamos feito no Internacional de Porto Alegre em 2000-01, proibi que os empresários frequentassem o clube sem qualquer controle. Há inclusive um relato curioso que na gestão anterior no Coritiba um empresário entrou em campo durante um treinamento e retirou um jogador que havia sido negociado, sem o conhecimento do treinador. É lamentável que coisas deste tipo ainda ocorram no futebol brasileiro.

De qualquer forma, essa experiência me serviu – e muito – para conviver novamente, por dentro, da vida de um clube de futebol da Série A. Não me arrependi de ter ficado cinco meses trabalhando no Coritiba. Procurei fazer o melhor, dentro das circunstâncias que tive que enfrentar. Fiz uma imersão no dia a dia do clube e pude me relacionar com outros clubes e com as rotinas e práticas do mercado do futebol brasileiro, coisa que já havia tempo que não fazia. Vivenciei fatos que a gente já sabia que ocorria, mas que pude constatar ali, na prática. Podia ter ficado no Coritiba por mais tempo, por três anos como rezava o meu contrato, ganhando um régio salário, porém isto não me deixaria com a consciência de que estaria fazendo o que realmente acreditava que deveria ser feito. Nunca consegui conviver com isso. Então, após 5 meses de trabalho, deixei o clube, juntamente com o Vice-Presidente Financeiro, o Ricardo Guerra que era a pessoa que eu mais confiava e foi quem tinha me contratado para a consultoria em 2014.

 

Depois dessa experiência, teve a parceria com o Uberlândia.

Esta foi outra experiência interessante na perspectiva das dificuldades que temos para mudar paradigmas, porém com outras peculiaridades. O que fizemos no Uberlândia foi algo bem diferente. Embora tenham chegado a afirmar que eu era o CEO do clube, isto é totalmente falso. O que ocorreu no Uberlândia foi um acordo de consultoria com a Universidade do Futebol que pretendia implantar um trabalho profissional no futebol e no marketing do clube. Depois de um rápido diagnóstico, convidei um profissional, o Mauro Rocha, para ser o Superintendente do Departamento de Futebol. A ideia era fazer uma consultoria na primeira etapa e na sequência implantar um novo modelo de gestão administrativa e técnica no clube, que acreditávamos ser indispensável. Uma das coisas mais difíceis de se superar no futebol brasileiro é que primeiro você tem que provar que é bom vencendo, para depois implantar a gestão profissional…. É um paradoxo, mas sabemos que não tem outro jeito. Antes de acertar um acordo de consultoria para 4 meses, conversamos várias vezes com um empresário, que tem direito sobre a gestão do clube, e o seu presidente. Gostei das conversas com eles, que me pareceram pessoas sérias e que tinham convicção de que deveria ser feito um trabalho profissional. Depois de muitas conversas, idas e vindas, acabei aceitando o desafio mesmo sabendo que era um alto risco. Alto risco porque, primeiro, você tem que contar com um pouco de sorte para, depois, implantar o trabalho. O time subiu de 2015 para 2016 do Módulo 2 para o Módulo 1, depois de longos anos no Módulo 2.

O Uberlândia tinha algumas peculiaridades interessantes. A cidade é muito boa, possui mais de 700 mil habitantes e é uma cidade que gosta do futebol. A torcida do Uberlândia vai ao estádio, comparece aos jogos com clubes pequenos. Geralmente, o público fica entre 9 e 12 mil pessoas no estádio. Isso é inusitado no cenário do futebol brasileiro hoje. Sempre cito um exemplo de um jogo que aconteceu há uns cinco anos, em Santos. Eram dois times de peso, Santos e Cruzeiro, e tinha menos de 4 mil pessoas no estádio. Isso é a falência total em termos de futebol profissional. Além dessa peculiaridade, outro fato interessante é que o clube possuía o CND (Certificado Negativo de Dívidas), o certificado que demonstra que o clube não tem dívidas. Essa gestão paga os salários com pé no chão. Esse foi outro desafio porque a gente tinha que montar um time barato, que tivesse como meta de curtíssimo prazo não voltar para o Módulo 2 neste ano de 2016 e, como aspiração, ter uma classificação que permitisse disputar a Série D, da qual eles estão fora também há muito tempo. Essa era uma exigência de curtíssimo prazo que a gente tinha que cumprir. As condições extremamente difíceis de orçamento e dificuldades de formar uma equipe competitiva e uma série de desentendimentos com a diretoria culminaram com o encerramento da consultoria, apesar de termos conseguido o primeiro objetivo que era não voltar ao Módulo 2.

Mas este foi um outro modelo completamente diferente do Coritiba. Considerei positiva (a experiência) no sentido de se encontrar, na prática, modelos de sobrevivência e de crescimento dos clubes de futebol do Brasil. Eles estão quase todos à míngua. Na verdade, o Brasil está na UTI do futebol, não tenho dúvidas disso. Outro dia fiz uma palestra a convite da Associação Brasileira dos Executivos de Futebol (ABEX) e afirmei que dentro do cenário mundial, o Brasil – antes protagonista – hoje está na “segunda divisão” do futebol. Não por que nós tivemos em outras épocas gestões brilhantes (má gestão é algo histórico no futebol brasileiro), mas as exigências eram outras. Nossos bons jogadores, formados geralmente nas ruas, praias e terrenos baldios, permitiam bons resultados. Bastava um pouco de bom senso e uma orientação empírica bem-feita. Atualmente só isso não é suficiente. Você tem que fazer um trabalho muito competente para poder dar conta das demandas do futebol globalizado. Se despertarmos para esta atual realidade sem perder mais tempo, nos próximos dez ou quinze anos, poderemos até almejar voltar à “primeira divisão” e recuperarmos o protagonismo. Afinal, temos condições para isso. Temos ainda um ambiente cultural apropriado, paixão pelo futebol, crianças que querem jogar bola (apesar deste fenômeno estar diminuindo drasticamente). E temos também muitas pessoas interessadas em trabalhar no futebol. São aspectos muito positivos.

Mas, infelizmente, falta muita coisa. Outros países, antes sem muita representatividade no futebol, avaliaram suas deficiências, estudaram, pesquisaram outras culturas futebolísticas, inclusive a nossa, planejaram e foram aos poucos se desenvolvendo. Mesmo os países historicamente protagonistas em vários segmentos da cadeia produtiva do futebol, não pararam no tempo como o Brasil e foram nos deixando cada vez mais para trás. Hoje podemos dizer que estamos quase que na contramão do desenvolvimento do futebol, quer no alto rendimento, como no processo de estímulo à massificação. E se a gente não abrir o olho, é bem provável que alguns países emergentes, que hoje estão na “terceira divisão”, nos passem nas próximas décadas. Isso não é ficção, é uma coisa concreta. Nós temos que avançar, temos que investir, temos que ter políticas públicas para estimular essa cultura da prática do futebol. Ele que era hegemônico, quase que uma monocultura esportiva, hoje concorre não apenas com outras modalidades esportivas, mas sobretudo com outros tipos de entretenimento, muitos deles alavancados pela tecnologia. As crianças atualmente têm muitos outros interesses. Portanto, temos que preservar essa cultura da prática do futebol com políticas públicas e diretrizes políticas dos órgãos responsáveis pelo desenvolvimento do esporte, e do futebol em particular. A CBF, por exemplo, é estatutariamente a responsável pelo fomento do futebol brasileiro, embora paradoxalmente seja comum ouvir depoimentos de seus dirigentes que o objetivo principal desta instituição é cuidar das seleções nacionais em suas diferentes categorias. Isto é um absurdo. Parece até que os dirigentes da CBF não leem o próprio estatuto da instituição, pelo menos naquilo que trata do fomento do esporte. Na verdade, o estatuto da CBF diz que é responsabilidade da entidade fomentar, desenvolver o futebol profissional e não profissional no Brasil. Portanto, alguma coisa está errada.

Enfim, estas coisas todas são parte do diagnóstico que faço do futebol brasileiro. Esta reflexão, este debate está dentro daquilo que a Universidade do Futebol propõe hoje, ou seja, levantar essas questões e tentar contribuir para que possamos resgatar e preservar essa cultura do futebol. Nela deve estar incluído também o futebol de alto rendimento, que é sempre uma referência até para que as políticas públicas tenham mais resultado. Tendo bons atletas e clubes que sirvam de referência, levam inspiração à prática; isso é uma cadeia – a cadeia produtiva do futebol. Ela depende de todos esses segmentos, de todos esses atores que fazem parte de todo o cenário onde se desenvolve o futebol. Esta cadeia precisa ser alimentada, retroalimentada, para que evolua. É um pouco isso que penso.

 

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