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José Carlos Marques (parte 2)

Equipe Ludopédio 26 de setembro de 2012

Professor do Departamento de Ciências Humanas e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista (Unesp/Bauru), Zeca Marques vem trabalhando as relações entre comunicação e esporte. Entre suas publicações, destaca-se o livro “O futebol em Nelson Rodrigues” (com base em sua dissertação de mestrado). Coordena o GECEF (Grupo de Estudos em Comunicação Esportiva e Futebol) e participa do LUDENS (Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Futebol e Modalidades Lúdicas).

Nessa entrevista, realizada nos jardins da Cinemateca Brasileira em São Paulo, Zeca Marques relata sua trajetória acadêmica, suas experiências como árbitro de futebol profissional, bem como analisa as mediações do esporte, a crônica esportiva no Brasil, a atuação dos meios de comunicação e as novas tecnologias.

 

José Carlos Marques, atuou como árbitro profissional de futebol. Foto: Max Rocha.

 

 

Segunda parte

 

A linguagem rodriguiana praticamente sumiu do jornalismo esportivo?

Olha, o Nelson na verdade era um cronista, mais do que um jornalista. Tinha um espaço fixo no jornal e tinha liberdade para produzir o texto que quisesse. Ele não era alguém que ia produzir uma reportagem sobre o jogo. O papel do Nelson não era relatar o jogo. O papel dele era ler o futebol a partir de outro olhar, outra preocupação – fabulosa, ficcional e de louvação. Era mais fácil ver o Nelson Rodrigues louvando um jogador que acertou do que espinafrando um que errou. Hoje há muitos jornais que mantêm esse espaço do colunista ou articulista, que tem a liberdade de falar o que quiser sobre o jogo. Então eu diria que hoje existem alguns discípulos, alguns que se assumem como tal e outros que não se assumem, que fazem mais ou menos o que o Nelson Rodrigues fazia. Os dois que mais de destacam nisso, na minha opinião, são o Xico Sá – que explicitamente cita o Nelson o tempo todo, talvez até pela questão regional, uma vez que o Xico cresceu em Pernambuco e o Nelson nasceu lá, apesar de eu achar que o Nelson era muito mais carioca do que pernambucano – e o José Roberto Torero, que não assume isso, mas quando ele cria personagens, relatos ficcionais, ele quer mostrar aquilo que pouca gente enxerga no futebol. Isso acontece quando ele cria o Zé Cabala, uma espécie de oráculo que vai dizer quem vai ganhar ou perder. Quando ele cria o sobrinho dele, o Lelê, personagem ingênuo que faz as perguntas sagazes, que expõe as contradições do esporte. O Torero, com altos e baixos, pois o texto dele nem sempre é interessante para o leitor médio do futebol, faz algo que o Nelson Rodrigues fazia: olhar o futebol de uma maneira fabulosa, trazendo a ficção, com o recurso literário.

Nelson provocador

Hoje é muito difícil fazer o que o Nelson Rodrigues fazia sob a pena de ser taxado de imparcial. Eu acho que nem mesmo o Nelson Rodrigues se levava muito a sério. Eu acho que o Nelson terminava a crônica e ele mesmo começava a gargalhar das provocações que ele fazia. Ele tinha uma característica que talvez hoje incomodasse muita gente: ele era muito provocador. Provocador às vezes com golpes baixos, dando muita rasteira. Criava algumas coisas para promover a família e o irmão Mario Filho. Criava brigas na imprensa, coisa que vemos pouco hoje. Então, Nelson Rodrigues às vezes usava também de golpes muito baixos para fazer prevalecer algumas opiniões que eram facilmente contestáveis. Depois, no doutorado, identifiquei que esse discurso um pouco diferente na visão do futebol vai aparecer de tempos em tempos no futebol brasileiro em época de Copa do Mundo – e de uma maneira muito excepcional. Pessoas que não escrevem sobre futebol no seu trabalho ordinário falarão sobre futebol em época de Copa do Mundo.

Você citou dois exemplos de cronistas, mas ambos começaram a carreira sendo jornalistas, o Xico Sá sendo inclusive jornalista investigativo…

O Torero é formado em jornalismo, mas trabalhou pouco como repórter etc. Simultaneamente, ele também é formado em Letras. E logo encarou a veia cinematográfica, de ser roteirista e diretor. Então, não sei se podemos dizer que ele tem uma grande experiência em jornalismo. Acho que ele aproveitou esse conhecimento que teve da literatura e do cinema para fazer um pouco o trabalho que ele faz hoje.

A partir das coberturas jornalísticas analisadas em seu doutorado, especificamente das Copas de 1994 e 1998, você acredita que essa produção deixou um legado, tendo em vista que esses textos mais próximos do jornalismo literário não estão tão presentes hoje?

Confesso que não vi como o jornalismo se comportou em 2010. A minha pesquisa se encerrou em 2002 e eu ainda acompanhei 2006. Mas não acompanhei 2010, pois passei a fazer outras coisas. O fenômeno é o seguinte: isso é uma coisa histórica. Em época de Copa do Mundo, os jornais acabam inflacionando sua cobertura esportiva em função da seleção brasileira. Tanto é que quando a seleção brasileira é eliminada o número de páginas nos jornais diminui. Como o Brasil vai para a Copa do Mundo sempre com a expectativa da vitória no campeonato, os jornais entram na onda e acabam atraindo investimentos, patrocinadores e anunciantes, a partir da promessa de uma cobertura alargada. Isso é natural: “Eu quero anunciar num jornal. Qual jornal dará mais espaço para a Copa? É nele que eu vou investir. Qual tem mais leitores? Qual tem mais cobertura? Qual tem mais pessoas indo para a Copa?”. Isso é histórico. Qual é a questão? O jornalismo brasileiro, a partir dos anos 60 e 70, passou a ser muito influenciado pelo jornalismo norte-americano. Isso coincide com o momento em que os jornais começam a ter concorrência da televisão. Já tinham tido do rádio, mas até então era um registro de voz, não tinha a imagem para brigar com o jornal. Com a transmissão ao vivo para o Brasil pela primeira vez na Copa de 1970, os jornais tiveram que repensar. ‘Como vamos falar de um jogo que todos já viram na televisão no dia anterior?’. Os jornais sabem que têm um diferencial, que é a reflexão. Mostrar ao leitor aquilo que não foi discutido na TV, aquilo de que o senso comum acabou não tratando. Os jornais sempre terão esse diferencial. O problema é que nem sempre conseguem descobrir ou aceitar isso. E querem ficar concorrendo com a imagem, com a cobertura alargada da TV. Acho que a sobrevivência do jornalismo impresso vai sempre depender disso. O jornalismo impresso vai continuar sendo mais reflexivo, vai pontuar as coisas de diferentes pontos de vista. Como é que o esporte entendeu isso? Não dá para realizar a cobertura de um fenômeno tão importante para o Brasil como a Copa do Mundo apenas com os repórteres e redatores de futebol, porque eles vão continuar produzindo aquele texto padrão. “O Brasil jogou ontem a semifinal contra a Argentina e venceu por 2×1. Dois gols no primeiro tempo, a Argentina diminuiu no segundo tempo, mas não foi suficiente para ameaçar a vitória brasileira”. Ora, esse texto do jornal é desnecessário, no limite, pois já sabemos disso. O leitor que vai ler a matéria no jornal já deve ter visto o resultado na televisão. Então, o que os jornalistas, chefes de reportagem e editores executivos entenderam? Se ficar só com esse texto, o jornal não sobrevive na cobertura da Copa. E se colocar só os comentaristas de futebol, colunistas e cronistas que fazem isso todos os dias, também não tem diferencial. O que é interessante? Mostrar outros olhares.

A “invasão” dos cadernos de Esporte na época de Copa do Mundo

A partir dos anos 80, em diferentes momentos, os jornais brasileiros – os quatro principais da época, que formavam a grande imprensa: Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, O Globo e Jornal do Brasil – começaram em épocas de Copa a recorrer a pessoas de outras editorias. Escritores e cronistas que faziam textos nos cadernos de cultura passaram a ser convidados para, durante a Copa do Mundo, escrever sobre a Copa. Acho que é uma experiência fascinante porque esse pessoal que não era do futebol começou a produzir textos que fugiam do lugar comum e que, pelo menos no meu caso, começaram a trazer muito mais interesse do que ler jornalistas e colunistas tradicionais que escreviam sobre esporte nos jornais. Por exemplo, em 1986 já aconteceu isso. João Ubaldo Ribeiro foi chamado pelo O Globo para comentar a Copa do México. Ele até criou uma inimizade na época porque ele falou que o Zico jamais poderia ter perdido aquele pênalti no jogo contra a França. Isso parece que criou uma inimizade entre ele o Zico. Ele me contou isso numa entrevista. Em 1990 a experiência se repetiu. A partir de 1994, o fenômeno se intensificou e esses quatro grandes jornais recrutaram profissionais de outras áreas para escrever sobre esporte. Tinha gente de coluna social. Colunista social que ia para a Copa do Mundo fazer coluna social da Copa. Entre eles: o Zózimo Barroso do Amaral, do Rio de Janeiro, colunista social dos mais tradicionais; Joyce Pascowitch, da Folha de SP; o Ancelmo Gois também fez. Os jornais levavam seus cronistas de cultura; os escritores que escreviam nos cadernos de domingo; os cronistas de cotidiano; os articulistas políticos, como a Folha de S. Paulo ao levar Jânio de Freitas e Clóvis Rossi em determinada Copa do Mundo. Clóvis Rossi, que na época tinha uma coluna da página 2 da Folha diariamente, foi para a Copa falar sobre a Copa. Uma colunista de cotidiano da Folha de 1998, Marilene Felinto, muito polêmica, foi para a França e só falou mal da Copa do começo ao fim. Falava que aquilo era um absurdo, um desperdício; tinha uma visão sexista da Copa, achava que aquilo era uma coisa de homens, um fenômeno marcado por um machismo exacerbado. Mas o que eu destaquei dessa fauna imensa, especialmente nas Copas de 1994, 1998 e 2002? Percebi que escritores de ofício também eram chamados: Luis Fernando Veríssimo, João Ubaldo Ribeiro, Carlos Heitor Cony, Mario Prata, Matthew Shirts (não é exatamente um literato, mas escrevia crônicas no Estado de SP). Esse pessoal ia para a Copa de uma maneira muito descompromissada. Não tinham o compromisso com a objetividade do jornalismo e dos jornalistas esportivos. Eles tinham aquilo que os fazem escritores; uma habilidade e um manejo com a língua que é algo desigual, incomum. Eram justamente esses profissionais, esses escritores, literatos e cronistas, que ofereciam o que de melhor tinha no texto impresso. Eu não comparava, por exemplo, as imagens que os jornais publicavam dos jogos. O que daria também outra pesquisa fantástica. Analisar o quanto o fotojornalismo progrediu a partir dos anos 90. Por quê? Porque passou a ter mais espaço para publicar fotos nos jornais e fotos coloridas. Até a Copa de 1990, a cobertura de esportes era quase preto e branco. A partir de 1994 já se tem muitas fotos coloridas nos jornais. Então, não estou comparando o registro visual.


Ganhamos porque virei o crachá

Mas o que o registro escrito me provocava a abrir os jornais no dia seguinte, além das fotografias? Era ver esses caras escrevendo algo que víamos. Um exemplo para ilustrar um pouco isso. Na Copa de 1994, todos vocês lembram que o Brasil ganhou depois que o Roberto Baggio perdeu o pênalti. O que um jornalista esportivo vai escrever? “Brasil foi campeão pela quarta vez depois de empatar 0 x 0 no tempo normal e na prorrogação; marcou três pênaltis e perdeu um, e a Itália perdeu três. Primeira vez na história em que uma final de Copa do Mundo acabou em 0 x 0. Primeira vez na história em que uma final de Copa foi decidida nos pênaltis”. E aí pegamos o texto do João Ubaldo Ribeiro e ele coloca o seguinte título: “Ganhamos porque virei o crachá”. O que será isso? Não sei se vocês sabem da história. A crônica dele é a seguinte: o Brasil estava lá, não ganhava, não marcava; o Marcio Santos perdeu o pênalti; aí ele olha para o crachá dele e vê que a fotografia estava voltada para dentro, para o peito; e pensou “é isso que está dando azar” e desvirou o crachá; ele diz que depois que desvirou o crachá a Itália perdeu um pênalti e o Baggio perdeu outro; então, “ganhamos porque eu virei o crachá”. Não dá para imaginar que um jornalista esportivo ou que um colunista de esportes – um Renato Maurício Prado, Paulo Vinícius Coelho, Juca Kfouri – vá escrever algo semelhante. Não se espera isso deles e eles talvez não vejam o futebol e o esporte a partir desse olhar descompromissado e fabuloso tal como tinha o Nelson Rodrigues. É verdade que o João Ubaldo estava com o crachá virado para dentro ou não? Tanto faz. Não importa se estava virado ou não. Importa é o texto que ele nos apresenta e no qual ele brinca com uma questão muito ligada à cultura brasileira: a ideia da superstição. Como o Darcy Ribeiro falava, nós temos aqui um catolicismo santeiro e milagreiro… É isso. E o Nelson Rodrigues soube ver esse componente da nossa religião católica santeira e milagreira o tempo todo; quando ele falava que às vezes era o fato de um jogador ter se benzido que fazia com que ele fosse marcar o gol da vitória e do título. O Nelson coloca o componente da superstição e do misticismo num patamar que pouca gente colocou. Vejam, é um olhar diferente desse olhar da objetividade, da frieza dos números, e é por isso que o Nelson se opunha tanto aos números. Por isso ele falava que aqueles que só liam os números eram os idiotas da objetividade. Portanto, esse fenômeno dos escritores que “poluem” o jornal, para mim, e é o que defendo na minha tese de doutorado, é o que vai mostrar uma cobertura diferenciada e que vai enriquecer a cobertura do impresso. Poderia ser uma saída para a concorrência do meio impresso com os outros meios. E em 1998 e 2002 passou a ter a concorrência da internet.


Julio Cortázar na final da Copa de 2002

Só mais um exemplo. Em 2002, o Milton Hatoum – escritor consagrado e premiado com os livros que publicou na Companhia das Letras – escreve dois ou três textos, convidado pela Folha de SP. Na final Brasil x Alemanha, o jogador Edmílson tem a camisa dele rasgada e vai fazer a troca. A camisa tinha vários forros para controlar o suor. Não sei se vocês lembram, mas o Edmílson se enrolou todo com a camisa, que não saía do braço, depois se enrolou no pescoço, não saía da cabeça. Isso poderia ser algo risível e um jornalista esportivo poderia explicar que era o problema dos forros ou mesmo ser “cera”, para “esfriar o jogo”, por exemplo. O que o Milton Hatoum faz? Ele pega um conto do Julio Cortázar, escritor argentino, o conto ‘Não se culpa ninguém (No se culpe a nadie)’, em que o personagem acaba se sufocando com pulôver que está tentando tirar para poder sair e encontrar a mulher que o está esperando em frente ao prédio do apartamento. O Milton Hatoum começa a criar uma correlação entre o conto do Cortázar e o Edmílson dentro do campo em Yokohama, no Japão. Quem vai poder fazer isso? Só quem tiver esse arsenal e repertório da literatura e da arte para fazer essa correlação incomum. Para mim, cabe ao jornal impresso esse resgate, de mostrar o esporte o futebol a partir de um olhar que não teremos na televisão, nem no rádio e também não teremos na internet. A internet trabalha com a espontaneidade e simultaneidade das coisas, procura fazer algo na frente do concorrente. A reflexão é muito complicada para a internet. O meio impresso tem esse diferencial e é nisso que deveria ficar apostando para as próximas décadas.

José Carlos Marques é Professor do Departamento de Ciências Humanas e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista (Unesp/Bauru). Foto: Max Rocha.


Tendo em vista a Copa de 2014, essa força que os jornais estão fazendo para quebrar o paradigma da pirâmide invertida pode ser o caminho? Pensando nessa geração de informação fragmentada, redes sociais. Um tipo de jornalismo que nem é sempre estatístico, mas que sempre flerta com a busca de rankings, por exemplo. Qual é a perspectiva para 2014?

Eu acho que com a internet e as chamadas ‘redes sociais’ – eu detesto esse nome, porque se utilizamos a internet como um meio e ela é uma rede, então ela já é social, ou seja, é um pleonasmo – você pode acessar informações pelo celular. Receber um SMS está ficando obsoleto. Às vezes recebo comunicados e pedidos de orientação dos meus alunos pelo Facebook, não é nem pelo SMS. Mas eu vejo o Facebook uma vez a cada dois ou três dias, e quase sempre perco o agendamento, ou o aluno perde, pois ele chega e estou atendendo outra pessoa. Quando organizo eventos na Unesp, a garotada prefere a divulgação pelo Facebook e pelo Twitter, uma coisa absurda. Eles não querem divulgar por outras formas. As mais imediatas são estas. Acho que Twitter, Facebook, SMS e qualquer outra coisa que se comunique por telefonia móvel ou por internet tem a facilidade de você comunicar os resultados e repercutir de uma maneira muito rápida. Quando o Corinthians ganhou a Libertadores em julho de 2012, acessei o Facebook para ver quais eram as brincadeiras do corintianos e não-corintianos. Foi uma coisa absurda aquele nível de discussão, de debate público-privado que havia no Facebook. Isso era inimaginável tempos atrás. Isso é algo discutido no livro clássico dos sociólogos Peter Berger e Thomas Luckmann (A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. Petrópolis, Vozes, 1973) sobre as interações face a face. Aquilo que tínhamos na situação face a face dentro do bar, na praça, na provocação dentro do estádio, isso acabou sendo potencializado de outra forma pelas chamadas redes e mídias sociais, como o Facebook e o Twitter. Acho que para resultados isso já foi uma revolução. Por exemplo, no ano passado eu queria saber se a Portuguesa estava ganhando a série B. Acionava o meu telefone e conseguia em poucos minutos saber o resultado do jogo. Coisa que dez anos atrás era impensável. Agora, o jornalismo impresso não poderá concorrer com isso. Tem que concorrer oferecendo o quê? Aquilo que as mídias sociais não conseguem oferecer: o texto que possa subverter a pirâmide invertida, como você citou; o texto que possa citar algumas relações que a informação crua jamais vai conseguir humanizar. Por exemplo: por que a revista Piauí é um sucesso? É uma revista cara de ser feita e a princípio teria todos os ingredientes para não dar certo. Por que ela é um sucesso de leitores e de crítica?

Piauí x Teixeira

Aliás, uma menção honrosa para a revista Piauí: foi depois que ela publicou a entrevista clássica do Ricardo Teixeira, na qual ele desdenhava dos problemas que poderia ter na CBF, que seu processo de fritura se iniciou de forma irreversível. Foi a partir do meio impresso, a partir da revista Piauí, que começou o processo de declínio e retirada do Ricardo Teixeira. Se pegarmos a história recente da política brasileira, veremos que foi sempre o meio impresso que catapultou crises políticas. Como no caso do mensalão, quando Roberto Jefferson concede uma entrevista para uma colunista social, Mônica Bergamo, e a partir da matéria na Folha de S. Paulo se deflagra o mensalão, inclusive enquanto gravamos hoje este bate-papo o Mensalão está na pauta do Supremo Tribunal Federal. Em 1992, foi uma entrevista bombástica do Pedro Collor de Mello, irmão do ex-presidente Fernando Collor de Mello, publicada na revista Veja, que catapultou o processo de impeachment do então presidente. Portanto, o meio impresso tem uma potencialidade incrível nas mãos, mas está sucumbindo à concorrência que ele aceita com os outros meios, e não deveria aceitar. Ele é diferente e deveria continuar a ser diferente se quiser sobreviver. Quando vemos matérias como as da revista Piauí, que fazem um tratamento do tema de uma maneira diferenciada; começando o texto que não seja da maneira convencional do lead e da pirâmide invertida; quando humanizam as relações e enxergam algumas questões sociais com outro olhar, mais sensibilidade e menos pressa; é isso que o meio impresso tem que fazer, pois o meio impresso não pode ter pressa. Pode parecer um jogo de palavras – meio impresso / pressa –, mas não. O meio impresso é sempre o meio que vai perder na notícia e no fato com relação à instantaneidade. Qual é o meio mais rápido para dar uma notícia hoje? O rádio. Se estourarem uma bomba aqui na frente, como essa notícia vai chegar mais rápido ao público? É pelo rádio. Pego o telefone e ligo: “Olha, uma bomba estourou aqui na Cinemateca”. Alguns vão falar que é a internet. Pode ser. Se eu colocar um post no Facebook. Mas acho que entre o tempo de ligar e o tempo de postar, talvez a ligação seja mais rápida. Óbvio que o meio impresso poderia tratar isso no dia seguinte e em edições especiais, em revistas semanais. Então, o meio impresso não pode ter pressa. Quando tem pressa, acaba se atropelando por querer ser tão rápido quanto as novíssimas tecnologias, e isso não dá certo.


Nelson Rodrigues hoje?

Se me perguntassem se o que o Nelson Rodrigues fazia teria espaço hoje, responderia que teria muito espaço, porque o mundo não mudou. Nós acreditamos que com as novas tecnologias as nossas relações sociais são completamente diferentes. Mudam alguns tempos, mudam algumas formas de sociabilidade, mas na essência as coisas continuam as mesmas. O homem vai continuar se reproduzindo da mesma maneira como sempre fez. Tirando as reproduções in vitro, o homem vai continuar amando outra mulher ou homem, como sempre fez. A mulher vai continuar amando outro homem ou outra mulher como sempre fez. Vocês devem lembrar daquele jogo no Pacaembu, Palmeiras x Corinthians no Paulistão de 2010, no qual o jogador colombiano Armero recebe um cartão amarelo, é substituído e começa a chorar. O choro do Armero, captado pelas câmeras, teve um tratamento interessante na cobertura das emissoras de televisão. Mas imaginem o que uma pessoa como Nelson Rodrigues poderia ter feito com aquele acontecimento? Então, imaginar que o Nelson não seria atual hoje é imaginar que o futebol ganhou um nível de mercantilização em que não há mais espaço para mais nada. Não é o que acontece. Eu debato muito com colegas e amigos que acreditam que o futebol é mercantilizado, que o futebol é negócio, é business, que não existe mais amor à camisa, que interessa apenas o consumo etc. Tudo bem, isso acontece. Mas é só com o futebol que acontece isso? Acontece com o cinema, com a televisão, telenovela etc. Comparemos uma telenovela de hoje (e o nível de merchandising que ela tem) com a primeira versão da novela Irmãos Coragem, que foi ao ar entre 1970 e 1971, da Rede Globo. Não dá para comparar. Se houve mercantilização, merchandising e marketing na telenovela; se houve isso no cinema e tem um monte de filmes americanos e brasileiros com merchandising explícito; por que o futebol também não iria se mercantilizar se ele nasceu no seio da Pós-Revolução Industrial do século XIX como um elemento de disciplina e organização social? Lógico que ele estará mercantilizado. O problema é que o futebol só consegue provocar fascínio porque ele manteve intactas algumas questões das nossas civilizações arcaicas, algo que tem a ver com a paixão, o drama, a humanização do indivíduo. O Nelson Rodrigues foi brilhante porque enxergou isso e soube valorizar até de uma maneira muito exagerada – ao passo que outros diminuem a importância dessa dramatização, dessa sensibilidade e humanização que pode existir num jogo de futebol. Quem diminui isso está privilegiando outras coisas. Cada um privilegia aquilo que acha ser importante. O que o Nelson Rodrigues fazia nos anos 50 e 60, especialmente, teria muito espaço nos dias de hoje. Porque hoje talvez o que ele provocasse nos seus textos seria tão distinto do resto que ele seria no seu tempo um homem do esporte entendido como tal. O Nelson Rodrigues era, até os anos 60 e 70, uma pessoa um pouco caricata; o ‘malucão’ que torcia pelo Fluminense e que adorava falar bem do Brasil. Por exemplo: Nelson Rodrigues nunca teve um patamar de seriedade que o Armando Nogueira teve quando eles conviveram na mesma época. O Nelson Rodrigues, a seu tempo, não teve uma importância para o esporte brasileiro como teve o João Saldanha, outro com o qual ele conviveu. Nelson era o folclórico, desse folclorismo de sempre valorizar muito a seleção brasileira. O Armando Nogueira era mais intelectualizado, entendido; valorizava – e o Nelson tirava sarro – o escrete húngaro de 1954. Armando Nogueira achava que a Hungria de 1954 era o grande futebol a criar paradigmas. É interessante essa tríade. O João Saldanha sempre foi o ‘malandrão’. O Saldanha posava de malandro, o Nelson de gozador e o Armando de sério. Foram essas as máscaras que os três levaram para a primeira mesa-redonda da TV Rio nos anos 60. Nunca tive essa confirmação, mas talvez seja a primeira mesa-redonda da televisão brasileira, da TV Rio, em que os três faziam esses personagens. Era a tal da Resenha Facit. Eu brinco com meus alunos hoje: ‘O que é Facit?’. Ninguém sabe. Era uma marca de máquina de escrever. Vejam, o nome da mesa-redonda já era merchandising. E as pessoas vêm falar que o futebol está mercantilizado hoje. O radiojornalismo brasileiro ganhou uma profissionalização com o Repórter Esso e que é o nome de uma petrolífera. Isso nos anos 50. E falam que o futebol está mercantilizado hoje. Acho que querem valorizar alguns aspectos e esquecem que existem outros convivendo juntos, lado a lado.

José Carlos Marques é autor do livro “O futebol em Nelson Rodrigues”. Foto: Max Rocha.


Mas a militância que algumas figuras fazem, como o Juca Kfouri, não é legítima, principalmente ao se colocar em oposição ao Milton Neves, por exemplo?

O Juca Kfouri tem um papel singular na história da imprensa brasileira. Primeiro, ele não é jornalista, mas sim formado em Ciências Sociais. Uma experiência de sociólogo ‘não praticante’, pois quando fazia o curso de Ciências Sociais ele já era estagiário da Editora Abril. Depois foi logo promovido a editor da revista Placar. O Juca Kfouri tem um papel interessante – e o jornalismo esportivo faz pouco – que é o de ser um fiscal da estrutura política da organização do esporte brasileiro. Quantas pessoas você vê denunciando falcatruas na CBF, no COB, falando mal do Carlos Arthur Nuzman, do Ricardo Teixeira? Poucos fizeram oposição e ele sentiu isso na pele. Processos, problemas para ter credenciamentos para mundiais etc. Acho que ele faz isso e faz bem. Mas acho que ele às vezes exagera em alguns pontos sobre os quais ele não tem muita convicção e compreensão, e passa a defender teses um pouco estapafúrdias. De um tempo para cá, tem acentuado suas críticas ao MMA, as Artes Marciais Mistas, afirmando que aquilo não é esporte. Acho que falta maior compreensão para saber o que é esporte, para afirmar se aquilo é ou não é esporte. E ele coloca o boxe no mesmo balaio de gato, dizendo que o boxe também não é esporte. Uma coisa é criticar uma modalidade esportiva pelo nível de crueza e violência que ela pode encerrar em si; outra coisa é afirmar que aquilo não é esporte. Vamos tentar deixar o papo mais conceitual: ele provavelmente não leva em conta em sua análise os conceitos do Roger Caillois, Johan Huizinga, Roland Barthes; ele não leva em conta as pessoas que teorizaram sobre esporte. Ele sequer cita os brasileiros que têm contribuições sobre o tema, como o professor da Educação Física, Valter Bracht, que tem um texto muito interessante sobre o que é a Sociologia do Esporte. Ele provavelmente não leva em conta o livro do Ronaldo Helal, ‘O que é sociologia do esporte’. Ele fala sobre o boxe e o MMA com aquela superficialidade jornalística que ele sempre combateu. Ele chegou ao extremo, e li diversas vezes, de afirmar que automobilismo não esporte. Até conheço o Juca Kfouri, uma pessoa muito gentil, que me ajudou durante a realização do doutorado. Mas numa dessas vezes em que falou mal do automobilismo, pensei em enviar a ele o texto do Barthes (O que é o esporte?) para ele ler e começar a olhar o fenômeno de outra maneira. O problema é quando uma pessoa fica com muita visibilidade na imprensa e nos meios de comunicação: durante mais de uma década, o Juca teve um programa de rádio na CBN, participa de uma mesa-redonda na ESPN Brasil na segunda-feira, escreve textos para a Folha de S. Paulo e para o seu blog. Hoje – 6 de agosto de 2012 –, ele escreveu um texto para a Folha de S. Paulo, de uma sagacidade e de um nível de provocação inteligentíssimo. Ele escreve que foi para Londres fazer a cobertura, mas que estava com preguiça; não deu muito certo, pede desculpas, pois teve o vento, teve a falta de vontade, treinou bastante, mas não conseguiu fazer a cobertura do jeito que queria, pede desculpas novamente… (risos). Esse é o texto dele na Folha de SP de hoje, segunda-feira (“Desculpe, não deu”). O problema de uma pessoa que tem tanta exposição midiática é que ele também acaba criando “máscaras”, passa a ser um personagem, mesmo que involuntariamente. Em algumas brigas que ele acaba estabelecendo com o Milton Neves, ou na luta contra o MMA e o automobilismo, ele passa mais a encarnar aquela “máscara” da qual é difícil desgrudar – como diria o poema Tabacaria do Álvaro de Campos, um dos heterônimos do Fernando Pessoa, “Quando quis tirar a máscara, estava pegada à cara”. O problema é esse. A pessoa tem que defender o ponto de vista sobre o qual ela pode ter pouca convicção, mas é preciso ir até o fim, esticar a corda, se já falou uma vez, tem que continuar mantendo posição. Apesar de tudo isso, o Juca Kfouri é uma pessoa admirável e necessária. Seria bom se tivéssemos mais “Jucas” em nossa imprensa esportiva.


Milton Neves e a transparência (ou a falta dela)

O Milton Neves talvez seja um pouco mais feliz porque ele não está preocupado com as críticas, ganha os seus milhões por mês. Ele deve ganhar em um mês o que o Juca ganha ao longo de um ano. Ele faz o trabalho dele sem ligar para as críticas. E o trabalho do Milton Neves, como eu falei, pode ser criticado hoje pelo nível de desfaçatez que ele tem, mas o que ele faz é em certa medida o que o Mario Filho fazia em outro grau quando promovia os eventos e queria vender seu jornal, o Jornal dos Sports. A briga que o Mario Filho teve para fazer o Maracanã onde o estádio acabou sendo construído era um pouco porque ele queria o Maracanã próximo ao centro do Rio de Janeiro, perto de onde estavam as principais redações de jornais da cidade; tinha uma questão social, política, e o Mario Filho era um homem de relações muito próximas com o poder. Na inauguração do Maracanã ele sobe a rampa ao lado do Presidente da República. Mario Filho também era alguém que fazia os “merchans” da época. Enfim, eu acho que há espaço para vários perfis no jornalismo. O que eu gosto no trabalho de um jornalista é que ele tenha transparência e que não tenha essa desfaçatez que às vezes é possível observar no Milton Neves. Sabemos que ele está fazendo um personagem, mas às vezes aquilo é tão armado que até as máscaras começam a cair por si próprias. Aquele programa de domingo a noite com o Neto e o Osmar de Oliveira na TV Bandeirantes é tão descarado, que consegue proporcionar risadas pela combinação de provocações que eles têm. Eles brigam, parecem que vão sair no tapa, mas sabemos que é tudo armado. Então, essa desfaçatez é algo que às vezes me incomoda – a despeito do caráter risível do programa.


Galvão Bueno x Renato Maurício Prado

É diferente, por exemplo, do que aconteceu recentemente na Olimpíada entre o Galvão Bueno e o Renato Maurício Prado. Aquela foi uma discussão séria e de verdade; não foi ensaiado e encenado. São dois egos extremos, dois ranhetas. Interessante citar esses nomes, pois são figuras que estão há décadas no jornalismo brasileiro e que, de certa forma, moldaram o modo de entender o futebol no Brasil. Esse modo que é lido de maneira tão passional tanto pelos torcedores como pela própria imprensa. Podemos observar o quanto a imprensa é passional na defesa de alguns pontos de vista. Por exemplo, na defesa da ida ou não do Ganso e do Neymar para a Copa do Mundo de 2010. Vocês devem lembrar daquela coletiva de imprensa do Dunga no Rio de Janeiro, quando se divulgou a lista de convocados para a Copa. Alguns jornalistas fizeram intervenções com o Dunga que eu nunca vi um jornalista fazer com um senador, um ministro de estado, um governador etc. Cobramos de alguns atores do futebol e da seleção brasileira o que não cobramos de outras esferas da vida. Talvez por isso que o Roberto DaMatta tenha dito que o Brasil tenha essas particularidades de ver no futebol comportamentos e práticas que não consegue assumir fora do futebol.

Falamos muito sobre o Galvão Bueno, mas gostaria de relembrar, não em tom de defesa, que ele talvez seja o locutor que esteja envolvido com os grandes acontecimentos recentes do esporte brasileiro, principalmente dos últimos 30 anos, como o tricampeonato do Ayrton Senna, os campeonatos do Nelson Piquet, a morte do Senna, o tetra e o penta da Seleção Brasileira de futebol. Se vocês pegarem o áudio da transmissão do acidente do Senna em Ímola em 1994 perceberão que ele teve uma incrível sensibilidade: “Senna bateu forte”. Ele fica vários segundos em silêncio. E a televisão brasileira tem poucos silêncios. Se ouvirmos as coberturas europeias de TV notaremos vários silêncios nas transmissões esportivas. A sensibilidade do Galvão ali foi uma coisa fantástica. Ou o Galvão narrando o Ronaldo fazendo os gols na Copa do Mundo de 2002. Talvez daqui a algum tempo a gente acabe aceitando mais a contribuição do Galvão para o nosso imaginário esportivo, apesar ser um cara arrogante, chato prepotente. Mas isso não deveria apagar todo o resto. A única virtude recente do Renato Maurício Prado talvez tenha sido ssumir ser torcedor do Flamengo. Algo que sempre desconfiamos e sabíamos, e ele assumiu. É interessante. O Renato Maurício Prado se arvora um conhecimento de esportes que talvez no Brasil só Armando Nogueira demonstrasse. Armando era capaz de comentar basquete, tênis, futebol e voleibol com a mesma delicadeza e a mesma entrega. Quantos jornalistas esportivos no Brasil conseguem comentar mais que duas modalidades, por exemplo? Álvaro José talvez, mas ele é mais um locutor. Mas quantos conseguem comentar mais de um esporte? Não digo narrar, pois nesse sentido quem ganha do Álvaro José é o Roby Porto da Sportv. Ele narra Olimpíada de Inverno, narra tudo. Se narra bem é outra coisa. Mas nunca vi uma pessoa tão versátil quanto o Roby Porto – ou então como o Everaldo Marques, da ESPN. Enfim, poucos comentaristas no Brasil conseguem falar sobre duas ou três modalidades com segurança. Armando Nogueira conseguia, não tecnicamente, mas ele conseguia ver beleza na cesta da Magic Paula – era apaixonada pela Paula –, na Hortência, no vôlei da Ana Moser, no automobilismo, no tênis etc. Apesar de ser ultrarromântico e piegas em alguns momentos, Armando Nogueira tem frases muito interessantes. Certa vez vendo uma transmissão de basquete na televisão com o Luciano do Valle, pelo fato de o jogo estar muito eletrizante, ele falou: “o basquete foi inventado por Deus e administrado pelo Diabo”. Uma definição que casava muito naquele momento e que ele usou outras vezes. Depois voltou atrás e disse: “olha, acho que na verdade o futebol é que foi criado por Deus e administrado pelo Diabo”. Eu não vi, mas a semifinal do futebol feminino da Olimpíada de 2012 deve ter sido isso. Estava 2×0 para o Canadá, EUA empatou, Canadá virou 3×2, EUA empatou, foi para a prorrogação, no último minuto o EUA marcou 4×3 e foi para a final olímpica. Então, parodiando Armando Nogueira, o futebol também deve ter sido inventado por Deus e administrado pelo Diabo. Portanto, poucos conseguem comentar sobre mais de um esporte. Renato Maurício Prado acha que tem esse poder e sabedoria. Ele acompanha, é bem informado, sabe falar bem sobre tênis e vôlei. Mas é outro jornalista que com o tempo ficou chato, arrogante, prepotente, pouco tolerante.

José Carlos Marques participa do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Futebol e Modalidades Lúdicas. Foto: Max Rocha.

Qual sua expectativa acerca dos megaeventos esportivos que estão chegando ao Brasil? Qual o cenário pode ser delineado, desde já, para a Copa do Mundo de 2014?

Primeira expectativa que já está acontecendo: derramamento absurdo de dinheiro público. A imprensa vem de uma forma ou de outra acompanhando e denunciando. A questão é que faz parte do jeito de ser do brasileiro essa passividade diante de questões que envolvam política e reivindicações de direitos coletivos. O brasileiro sabe se organizar para fazer a reivindicação de direitos muito particulares. Observamos marchas disso ou daquilo, mas de coisas muito particulares, de pequenos grupos. Para reivindicar coisas coletivas, só em momentos extraordinários como, por exemplo, a passeata dos cara-pintadas para fazer a deposição do Collor. Mas, por exemplo, é impensável imaginar que, tendo um julgamento como o do mensalão que está ocorrendo no STF, a sociedade brasileira não esteja se mobilizando para defender a absolvição ou condenação dos acusados. O nível de desmobilização da sociedade brasileira é uma coisa assustadora. Se isso acontecesse em qualquer país com um sistema político tradicionalmente constituído nos últimos séculos, provavelmente não veríamos isso. Se isso acontecesse na Europa ou mesmo nos nossos vizinhos Argentina, Chile ou Uruguai, a mobilização popular teria sido de outra forma. E o que acontece? É difícil imaginar que o povo brasileiro não se mobiliza para a reivindicação de questões coletivas e sociais, como é que vai se mobilizar para protestar contra o dinheiro que está sendo mal gasto e mal usado? E que está sendo usado de uma maneira pouco republicana, no que diz respeito às decisões sobre as definições de estádios, sedes, verbas para a construção de arenas esportivas etc. O que a Prefeitura de São Paulo fez na aprovação do projeto do estádio do Corinthians é uma coisa poucas vezes vista no município. Um projeto que foi aprovado a toque de caixa, saltando por cima de vários trâmites burocráticos legais. O que não significa que o estádio não seja importante para a cidade. O estádio do Corinthians é muito importante para a cidade, importante para o Corinthians. Um clube como o Corinthians merece um estádio, mas não da maneira como aconteceu. Com um orçamento absurdamente alto para construir um estádio e com verba estatal ‘a rodo’. A questão é essa. Mas isso não surpreende ninguém. Nós sabemos, imaginávamos que seria assim. Talvez não imaginássemos que seria tão às claras esse processo de mau uso dos recursos públicos, e um processo de pouco republicanismo na tomada de decisões.


Os megaeventos e o “jeitinho” brasileiro

A segunda questão é que o Brasil já demonstrou que consegue organizar esses megaeventos sempre em cima da hora e, por incrível que pareça, acaba dando certo. É a tal ideia do jeitinho brasileiro, a ideia da improvisação, que faz parte não só da cultura brasileira, mas eu diria de uma cultura ibérica católica barroca brasileira. Caetano Veloso certa vez falou que não se pode entender o Brasil sem lembrar que o país tem uma origem ibérica, católica e barroca. No meu trabalho sobre Nelson Rodrigues é isso um pouco o que eu defendo também. O Brasil nasce e é colonizado a partir do barroco ibérico, a partir de uma briga do catolicismo pós-cruzadas com a Reforma Protestante, e a partir dessa ideia de religiosidade de uma colônia monárquica. Isso á a cara do Brasil. Fica sempre tudo sendo ajeitado de última hora. O Brasil conseguiu fazer uma reunião da Eco-92, na primeira vez em que o mundo se reuniu para discutir o planeta, de uma maneira tão absurdamente positiva, que vinte anos depois se fez a Rio+20. E não sabemos se ocorreram problemas significativos durante a Rio+20. Qual é o grande risco para o Brasil? Problemas de violência urbana que aconteçam e que maculem os eventos. Os estádios ficarão prontos, pois sempre haverá verbas extras do poder público e mão-de-obra para terminar os estádios. Obras de infraestrutura acabam acontecendo sempre em cima da hora. É a nossa tradição política de deixar tudo para a última hora e sempre por meio do ‘jeitinho’ arrumar as coisas. O Brasil só foi escolhido para organizar esse evento porque todo mundo sabe que ele vai conseguir organizar. Tal como organizou em 1950. O Maracanã foi inaugurado sem estar pronto. Um trecho do Maracanã foi inaugurado depois do primeiro ou segundo jogo. Se vocês assistirem àquele filme “Rio 40 graus” (de 1955), dirigido por Nelson Pereira dos Santos, verão que o acesso ao estádio ainda é de terra, não é nem pavimentado. Quatro anos depois de o estádio ter sido inaugurado – o filme foi rodado em 1954 –, o estádio ainda não estava terminado. Existe um problema no Brasil que mais depõe contra as autoridades esportivas: o Brasil não sabe respeitar e valorizar seu patrimônio histórico esportivo arquitetônico. Não se pode aceitar o que se fez com o Maracanã, um patrimônio tombado e sede da Copa de 1950; não se pode aceitar o que se está fazendo contra o Mineirão. Fizessem o que fizeram em Wembley, ou seja, derrubassem o estádio e construíssem um novo do zero. O Maracanã está irreconhecível. O estádio já tinha sido alvo de várias reformas anteriores para os Jogos Pan-americanos de 2007, Mundial de Clubes da FIFA em 2000 etc. Por que reformas tão intensas agora?


Pelé nasceu em Bauru

Como vocês sabem, ministro aulas em Bauru, cidade em que nasceu o Pelé. Em Três Corações nasceu o Edson Arantes do Nascimento. O Pelé só foi ser chamado de ‘Pelé’ em Bauru, jogando bola. Foi lá que ele teve a sua primeira experiência “profissional” no futebol. Ele era registrado pelo BAC – Bauru Atlético Clube, o popular Baquinho. Foi dali que ele saiu para o Santos. Bauru, que poderia capitalizar toda essa história, afinal, foi lá que nasceu o Pelé, fez o quê? O próprio campo do Baquinho, que ficava numa região privilegiada da cidade, foi vendido para a especulação imobiliária e virou um supermercado. O supermercado fez o “favor” de colocar no frontispício da entrada uma imagem em azulejos do que era a entrada do estádio do Lusitânia (primeiro nome do Baquinho); depois tem duas fotos mostrando como era o campo. Ora, obviamente que o Pelé talvez pudesse ter ajudado nisso. Era para tombar aquele espaço, fazer um dos museus do Pelé ali, mas Bauru não sabe fazer isso, o Pelé talvez não saiba também. Em Bauru vendeu-se a sede do Bauru Tênis Clube (BTC), que era o clube mais tradicional da cidade, o clube da elite. Vendeu-se a sede, que fica no centro da cidade, e o clube só conta hoje com a sede de campo, que fica numa parte um pouco mais afastada. Bauru permitiu também a venda da sede do clube da Associação Luso-Brasileira, que era o ginásio onde a equipe de basquete de Bauru jogava até o semestre passado. A equipe de Bauru inclusive já foi campeã nacional da liga de basquete. A Associação Luso-Brasileira vendeu a sua sede e agora só tem sede de campo. Então, sofremos com esses problemas de campos que viram sucata ou que depois são vendidos para a especulação imobiliária. Para desvio de dinheiro, nada melhor que uma obra. Historicamente, o Brasil sempre soube desviar dinheiro com as grandes obras. Brasília é o primeiro grande exemplo. Como é que vou fazer negociatas com empreiteiras para desviar dinheiro público? Obra é a melhor forma, por isso que tem tanta obra de reforma ou construção de novas arenas para estes megaeventos. Mas eu não tenho dúvidas que serão megaeventos de sucesso. Tem que fazer muita burrada para dar errado. Acho que talvez não tenhamos o nível de excelência na organização como a da Copa de 2006 na Alemanha, mas eu acho que o Brasil vai fazer uma Copa decente e vai fazer uma Olimpíada igualmente decente. Nessas horas, o poder público consegue dar conta daquilo que ele não faz de maneira ordinária e arruma a infraestrutura, arruma as mobilidades viárias, as obras e as coisas acabam se arranjando de última hora. Seria bom que houvesse algum motivo que fizesse o poder público e a iniciativa privada se mobilizarem para pelo menos fazer coisas que retornassem e dessem um ganho de qualidade para a vida do cidadão, como hospitais, escolas, creches, transporte público de qualidade etc. Coisas que só vemos quando realizam esses megaeventos e começam a pensar em trens, metrô, avenidas, questão ambiental. É chato ter que depender desses megaeventos para colocar essas questões na pauta.

José Carlos Marques durante entrevista para o Ludopédio. Foto: Max Rocha.


Quais são os seus projetos atuais? Alguma pesquisa relacionada aos esportes e, mais especificamente, ao fenômeno futebolístico?

Na UNESP, coordeno um grupo de pesquisa, o Grupo de Estudos em Comunicação Esportiva e Futebol (GECEF) que não chega a ter a potencialidade do Ludens (Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Futebol e modalidades Lúdicas, da História/USP), por questões financeiras (risos), mas está cadastrado no CNPq. Um grupo de pesquisa criado pela professora Sandra Turtelli em 2004 e que coloca em discussão as questões que envolvem a relação do esporte com a comunicação. Sou professor do mestrado em Comunicação da UNESP e ofereço uma disciplina que coloca em debate essas questões da comunicação e do esporte. E tenho seis orientandos de mestrado que fazem pesquisas bem interessantes, pois fogem do lugar comum do futebol. Oriento um aluno que pesquisa o MMA e a relação dele com a incursão midiática recente. Oriento o trabalho de outra aluna sobre o rugby e as recentes campanhas de publicidade transmitidas até o ano passado na televisão. Outra aluna analisa a questão da sustentabilidade na organização da Copa do Mundo de 2014. Um aluno que entrou agora está analisando o potencial mercadológico e midiático do Neymar, ou seja, como é que se constituiu essa figura do Neymar pela imprensa. Outro aluno analisa as camisas de futebol de jogo do Corinthians como elemento de comunicação para a transmissão de mensagens que não têm a ver com o jogo. Por exemplo: o time jogar no Rio de Janeiro e colocar os nomes da tragédia do Realengo na camisa. No último domingo, por exemplo, no jogo contra o Vasco, o Corinthians entrou em campo com uma inscrição do AfroReggae, uma ONG carioca que procura promover inclusão social por meio da dança, da música etc. Outra aluna analisa as potencialidades da transmissão da TV digital na mediação do esporte no Brasil. Fico feliz de ver que são seis trabalhos que procuram fugir do lugar comum na pesquisa sobre esporte, pois não é só futebol que está presente. Pessoalmente, tenho um projeto que procura analisar como os meios de comunicação criam essa rede multifacetada de cobertura da mediação do fato esportivo e quais são as particularidades da internet, do rádio, TV, jornal; o que o jornal, internet ou a televisão têm para oferecer de diferente, ou seja, como se comporta cada meio. Defendo a tese de que os meios coexistem. É mais ou menos como aquele joguinho Tetris, que vocês devem ter jogado. As pedras vão caindo e de uma forma ou de outra temos que organizar aquilo lá embaixo. Os meios de comunicação têm um pouco disso. Quando surgiu o cinema, diziam que ele iria acabar com o jornal. Depois surgiu a televisão e disseram que iria acabar com o jornal e o cinema. E não acabou nem com uma coisa, nem com outra. As coisas se modificaram. Há quem diga que a internet vá acabar com o jornal, a televisão e o cinema. Não vai acabar. Cada um terá seu espaço.

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