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José Carlos Marques

Equipe Ludopédio 12 de setembro de 2012

Professor do Departamento de Ciências Humanas e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista (Unesp/Bauru), Zeca Marques vem trabalhando as relações entre comunicação e esporte. Entre suas publicações, destaca-se o livro “O futebol em Nelson Rodrigues” (com base em sua dissertação de mestrado). Coordena o GECEF (Grupo de Estudos em Comunicação Esportiva e Futebol) e participa do LUDENS (Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Futebol e Modalidades Lúdicas).

Nessa entrevista, realizada nos jardins da Cinemateca Brasileira em São Paulo, Zeca Marques relata sua trajetória acadêmica, suas experiências como árbitro de futebol profissional, bem como analisa as mediações do esporte, a crônica esportiva no Brasil, a atuação dos meios de comunicação e as novas tecnologias.

José Carlos Marques é autor do livro “O futebol em Nelson Rodrigues”. Foto: Max Rocha.

 

Primeira parte

 

Zeca, você tem apresentado uma sólida relação acadêmica com o futebol nos últimos anos. Porém, sabemos que não foi seu primeiro contato com a prática futebolística. Como foi a sua trajetória no universo do futebol?

Não sei qual foi a minha primeira experiência mais intensa. Desde garoto sempre gostei muito de futebol. Tenho uma lembrança muito vaga da primeira vez em que fui a um estádio, eu acho que foi em 1972, eu tinha de cinco para seis anos. Depois eu perguntei para o meu pai, ele acha que foi um jogo Portuguesa x São Bento de Sorocaba no Pacaembu. Eu fiquei bastante surpreso porque era uma festa. Do jogo não lembro nada; lembro da movimentação da torcida. A segunda lembrança que tenho de ir a um estádio foi no Canindé, antes da reforma das arquibancadas, num jogo Portuguesa x Atlético Paranaense, em 1973. Fiquei atrás do gol para onde a Portuguesa gosta de atacar, que é o gol do clube, pois há o “gol da Marginal Tietê” e o “gol do clube”. Essa é a minha segunda grande lembrança de futebol. Eu diria para vocês que a minha grande experiência de vida, tirando outras questões pessoais, é o futebol – antes de entrar na faculdade, antes de querer ser professor, antes de fazer qualquer curso. Eu brinco até que a minha alfabetização teve como livro-parceiro não uma cartilha, mas o Manual do Zé Carioca. Manual que foi lançado pela Editora Abril em 1974 para a Copa do Mundo da Alemanha. O Brasil era tricampeão mundial, e a Editora Abril fez um trabalho belíssimo sobre a Copa e o futebol. Era um manual que tinha uma apresentação a princípio caótica, não tinha uma organização cartesiana: havia as seleções, jogadores, grandes times, regras etc – tudo misturado. Era um conteúdo apresentado de forma fragmentada, meio em forma de mosaico. Mas eu brinco que minha alfabetização foi um pouco em função do Manual do Zé Carioca. Eu tinha sete anos quando aconteceu essa Copa do Mundo, então o futebol foi uma coisa muito marcante. Quando entrei para fazer a faculdade de Letras, obviamente fui fazer esse curso porque não deu certo ser jogador. Mas eu também nunca tentei ser jogador profissional. Eu tinha vontade de ser jogador, mas nunca tentei. Acho que foi bom nunca ter tentado, porque eu sempre tive muitos problemas de tornozelo. Nas minhas atuações nos jogos amadores com amigos, no futebol de salão ou no futebol de areia, já rompi os ligamentos do tornozelo cinco vezes; quatro no pé direito e uma no pé esquerdo. Se eu fosse jogador profissional, provavelmente teria encerrado a carreira muito precocemente, porque o tornozelo não aguentaria. Mas a minha pesquisa de mestrado foi sobre as crônicas esportivas do Nelson Rodrigues. Foi depois que entrei no mestrado que comecei a ser professor de ensino superior. Eu diria que a minha experiência na pesquisa e na docência está diretamente ligada ao futebol em função desse mestrado que eu fiz na PUC/SP. Entrei em 1994. Fiz a inscrição às vésperas do início da Copa do Mundo dos EUA. O resultado saiu durante a competição. Fui fazer a matrícula durante o mês de julho, pouco tempo depois de o Brasil ter vencido a Copa. Há uma crônica do Luis Fernando Veríssimo que ele publicou em 1998, na qual ele fala que é possível marcar nossos ciclos de vida a partir das Copas do Mundo. Veja que interessante: estou pontuando questões da minha vida, sempre com a Copa do Mundo como pano de fundo. Em 1974 comecei a me alfabetizar; em 1994 entrei no mestrado e a minha intenção era fazer uma pesquisa sobre futebol e imprensa. Vamos medindo nossa vida nesse ciclo de quatro em quatro anos por causa da Copa do Mundo. Então, o futebol é uma coisa que está sempre muito presente em minha vida, às vezes mais, às vezes menos. Eu fui um torcedor muito fanático da Portuguesa até os 14 e 15 anos. Deixei de ir um pouco ao estádio, voltei tempos depois. Para você ver como o futebol está sempre presente: em 1992, e não era ano de Copa do Mundo, me tornei árbitro de futebol profissional na Federação Paulista. A ligação com o futebol acompanha a minha vida o tempo todo. Acho que aquilo que eu mais queria ter sido na minha vida não era professor universitário, mas sim árbitro de futebol, ter chegado à elite da arbitragem, ser um árbitro FIFA, atuar em uma grande competição, tipo Olimpíada, Copa do Mundo, Mundial Sub-20 ou Sub-23. Mas era muito difícil conciliar as pesquisas, pois na época fazia mestrado e depois doutorado. Era difícil conciliar tudo isso e tive que abrir mão. Mas quando entrei na arbitragem, tratava-se de um projeto de vida. Empenhei-me bastante fisicamente, emagreci, hoje estou muito mais pesado do que quando era árbitro. Emagreci, tinha um preparo físico excelente, passava com facilidade em todos os testes físicos. E eu tinha um belo conhecimento de regras. A FPF fez um exame com todos os árbitros em 1994 e obtive uma das melhores notas entre cerca de 300 árbitros. Eu tinha conhecimento teórico e um bom preparo físico, mas não era um excelente árbitro dentro de campo. Às vezes pessoas com menos preparo físico e conhecimento conseguem levar o jogo de uma maneira mais positiva do que eu, que tive muitos problemas dentro de campo. Mas, enfim, para começar, eu diria que o futebol está sempre presente historicamente ao longo da minha vida.

Zeca, conte como foi essa fase de árbitro de futebol… De onde veio a vontade? Qual foi o primeiro estalo?

Eu sempre achei que era um belo jogador de futebol nas peladas, nas brincadeiras. Muito técnico, muito goleador. Brinco que eu era uma espécie de Romário, pois gostava de jogar ali perdido na grande área. Ou então um Muller, do São Paulo, um jogador versátil, que caía pelos dois lados, mas que em alguns jogos do São Paulo e da seleção brasileira caía pelo lado esquerdo; e como não sou canhoto, sou destro, eu levava alguma vantagem, pois quando limpava a bola para dentro, eu estava com o pé direito pronto para arrematar ou tocar a bola. Eu sempre achei que tinha qualidade para ser jogador, mas nunca arrisquei, nunca tive vontade. Meu pai nunca teve conhecimento para me levar a um clube. Eu sempre joguei de maneira recreativa. Quando entrei na faculdade de Letras da USP, em 1984, conheci um rapaz de Santos, ele era de família japonesa, o Laércio, não me lembro do sobrenome dele hoje, e ele entrou para o curso de arbitragem em 1985 ou 1986. E para mim e meus colegas era uma coisa totalmente absurda alguém fazer o curso de árbitro ao mesmo tempo em que fazia o curso de alemão na Letras da USP. Ele nos mostrou os cartões amarelo e vermelho. Para alguém que acompanhava muito futebol, como eu, aquilo foi uma surpresa. Veja, o curso de Letras tem poucos homens na composição das turmas; praticamente 85% de mulheres. São poucos homens e dentre os homens que estão lá são poucos os que gostam de futebol. E, naquela época, as mulheres também não demonstravam grande apreço pelo futebol. Assim, eu e alguns amigos éramos um pouco alienígenas naquela turma. O Laércio fez o curso, concluiu e começou a atuar como árbitro. Eu lembro que houve um campeonato de seleções de masters, daqueles que o Luciano do Vale organizava no Pacaembu e chamava aqueles craques já fora de forma, barrigudos, para jogar (risos), e esse meu amigo japonês do curso de Letras atuou como árbitro assistente (“bandeirinha”) num jogo no Pacaembu, com o Silvio Luis fazendo a locução na TV. Então, imagine: um japonês bandeirando o jogo e descobriram que ele era professor de alemão. Era todo o mote da transmissão: um japonês bandeirando; professor de alemão; nem lembro que jogo era. Mas, enfim, esse foi o primeiro ‘estalo’, utilizando o seu termo, que eu tive para ser árbitro.

Depois, mais ou menos no final dos anos 80, não sei por qual motivo comecei a observar a movimentação dos árbitros durante as transmissões de jogos. Às vezes deixava de olhar a bola e o time atacando para observar qual o caminho o árbitro percorria, a diagonal que ele fazia, quais eram as marcações, os gestos, e comecei a ficar interessado, já que não tive a oportunidade de ser jogador. Mas não tive oportunidade porque também nunca procurei oportunidades. Não é como muitos jovens que vão treinar ou passam em peneiras, nunca fiz nada disso. É muito difícil para alguém de classe média na minha época – meu pai era comerciante – ter a disposição e disponibilidade para jogar bola. No nosso meio, para ter algum tipo de ascensão social era por meio dos estudos. Hoje talvez haja outras possibilidades. Mas na minha época, nos anos 80, a possibilidade de ascensão, de conseguir alguma ocupação, era por meio dos estudos. Sempre preferi estudar a me dedicar a ser jogador. Nessa de ficar vendo a movimentação dos árbitros, em 1992 eu já estava formado e pensei: “poxa, quero ser árbitro, vamos ver o que é preciso fazer, quais são os caminhos”. Telefonei para a Federação Paulista e eles disseram que as inscrições estavam abertas até o final do mês. Eu peguei a documentação necessária e fiz a inscrição. Na época, em 1992, não havia muita concorrência. Quem se inscrevia acabava fazendo o curso. Não havia um processo seletivo. Havia mais vagas do que interessados. A profissão de árbitro até 1992 era uma coisa completamente estranha ao cidadão comum. Quem vai ser árbitro de futebol? Então, não teve processo seletivo para ingresso; quem se inscreveu, fez o curso. O processo seletivo foi só o teste físico e a prova escrita ao final do curso. Lembro até hoje: a inscrição era um salário mínimo e uma lata de leite em pó. Acho que a mensalidade também era um salário mínimo. Em 1994, eu era recém-formado e a Federação Paulista resolveu fazer uma mudança radical na carreira do árbitro em São Paulo e criou uma remuneração altíssima para o árbitro, que começou a ter uma remuneração que nunca teve na história do futebol brasileiro. Não lembro os valores agora, mas é só vocês checarem os valores que os árbitros ganham hoje no Campeonato Paulista e Campeonato Brasileiro. Tudo isso tem a ver com a mudança que a FPF fez em 1994. E por que ela fez isso? Por que ela achava que o árbitro tinha que ser mais bem tratado? Não. Em 1994 havia um projeto sério do então presidente da FPF, Eduardo Farah, de ser presidente da CBF. Ele quis fazer da FPF um laboratório de excelência na gestão do futebol. Ele começou a importar árbitros do exterior; a FPF foi pioneira em trazer árbitros de fora. Pioneira nessa fase recente, porque nos anos 50 e 60 havia árbitros estrangeiros que vinham apitar aqui. Mas na história recente do futebol brasileiro foi São Paulo que começou a trazer árbitros de fora. Nós tivemos árbitros como o húngaro que apitou a final da Copa do Mundo de 1994, Sandor Puhl; árbitros da Dinamarca, Alemanha, França, regiamente pagos, bem instalados, apitavam o jogo e iam embora. Esse processo acabou com o fatídico caso do Javier Castrilli. Eu gostaria até de falar um palavrão aqui, mas por decoro não vou falar (risos). Ele fez uma coisa espetacular contra a Portuguesa no Morumbi; classificou o Corinthians para a final, num pênalti inventado. Com a experiência do Castrilli, a FPF viu que não poderia continuar trazendo árbitros de fora porque aquilo levou a uma crise na arbitragem. Simultaneamente à vinda dos árbitros do exterior, a FPF trazia árbitros de outros Estados. Isso é algo que, na verdade, se for analisar bem, depõe contra a formação de árbitros paulistas. Se eu trago para os grandes jogos árbitros de outros países e Estados, como é que eu estou formando árbitros da casa? Tínhamos árbitros de outros Estados apitando as finais do Campeonato Paulista. Vinha Sidrack Marinho, de Sergipe; Márcio Rezende de Freitas, de Minas Gerais; vinha um árbitro do Rio Grande do Sul, depois do Renato Marsiglia e antes do Carlos Eugênio Simon, o José Mocellin, que era excelente; vinha o Dalmo Bozzano, de Santa Catarina; o Cláudio Cerdeira, do Rio de Janeiro; vinha um que certa vez foi chamado de “paraíba” pelo ex-jogador Edmundo, um árbitro do Ceará, o Dacildo Mourão. A FPF começou a trazer esse pessoal e a remuneração era altíssima. A FPF queria, com esse modelo de gestão, mostrar para o Brasil e para as outras Federações que a FPF tinha um nível de excelência que capacitava e gabaritava a ida do Eduardo Farah para a CBF. Quando acabou esse plano do Farah? Quando houve aquela reviravolta na CBF às vésperas da Copa do Mundo de 2002. A Globo quando quer, faz um bom jornalismo. Fez aquela matéria para o Globo Repórter que acabou praticamente provocando a criação da CPI da Nike. O Brasil estava ameaçado de não ir para a Copa de 2002. Vocês devem lembrar que a seleção conseguiu a classificação no último jogo contra a “poderosa” Venezuela em casa. Em função dessas instabilidades do futebol brasileiro, a Rede Globo fez uma matéria fantástica e acabou provocando a CPI da Nike. Nessa reviravolta, mudou-se o calendário brasileiro e o Farah perdeu as apostas que ele fazia. Com as mudanças no calendário de 2002 para 2003 – a criação de um grande campeonato brasileiro de pontos corridos, turno e returno, começando em maio -, os campeonatos estaduais foram sepultados. Esse laboratório do Farah, que eram os estaduais, acabou tendo esvaziada sua importância. Simultaneamente a isso, um pouco antes, o Farah também foi alvo de algumas reportagens que mostravam enriquecimento ilícito, tráfico de influências etc. Enfim, ele acabou se retirando e hoje ninguém escuta falar dele, como daqui a alguns anos poucos deverão lembrar que Ricardo Teixeira era presidente da CBF. Mas tudo isso para dizer que a arbitragem a partir dos anos 90 passou a ser uma forma de remuneração e uma atividade profissional para muitas pessoas, algo que era inimaginável até um tempo atrás. Um árbitro, só com a arbitragem, conseguia ganhar, na época, uma remuneração que não conseguia ganhar na sua ocupação convencional. A partir de 1996, começou a ter muita procura. Se na minha época sobravam vagas, a partir de 1996 e 1997 passou a ter vestibulinho, um processo seletivo para fazer o curso. A FPF, sabendo que havia muita demanda, começou a fazer duas turmas por ano. O que também era uma boa forma de arrecadar dinheiro, porque havia muita gente tendo que pagar o tal do salário mínimo por mês. A Federação passou a criar duas turmas por ano. Isso foi a morte da minha geração. Com tanta gente se formando, passamos a ter muita mão-de-obra para jogar no mercado, para atuar nos jogos, e quem não se dava bem já ia sendo afastado. Aconteceu isso comigo. Tive problemas num jogo em 1999, em Sorocaba, e as escalas foram rareando. Num determinado momento, já estava no meio do meu doutorado, percebi que já não adiantava continuar, pois era uma carta fora do baralho para a federação. Acabei me aposentando em 2000, depois de oito anos como árbitro profissional.

José Carlos Marques é Professor do Departamento de Ciências Humanas e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista (Unesp/Bauru). Foto: Max Rocha.

Mas essa virada foi fundamental, porque hoje na arbitragem, apesar dos erros e problemas, o profissional de arbitragem passou a ter um nível de especialização e formação que ele não tinha tempos atrás. Todos eles são formados, têm nível superior, com boas profissões. Qual é o problema? Quando o árbitro começa a ter projeção, vai apitar partidas da primeira divisão, passa para o quadro nacional da CBF e mais tarde para o quadro da FIFA, nesse momento a arbitragem já é a atividade principal dele, não é a secundária. Então, uma parte dos árbitros que pode se dedicar à arbitragem é formada por profissionais liberais, microempresários, ou têm uma atividade em que conseguem contar com a complacência do chefe, pois as ausências são muito grandes. Se um árbitro trabalha de segunda a sexta na sua empresa e vai para os jogos aos finais de semana, não tem problema. Mas as coisas não são bem assim. Ontem, por exemplo, o jogo do Santos, em Recife, acabou por volta das 20h45. Dificilmente o árbitro teria condições de pegar um avião para voltar a São Paulo. Ele deve ter pegado um avião de madrugada ou de manhã. Se ele tem que estar às 8h da manhã de segunda-feira no seu trabalho, ele já não vai conseguir. No meio da semana é pior ainda. Se tiver que ir para Recife, ele provavelmente terá que viajar na terça-feira. Portanto, a arbitragem mudou muito. Para mim foi uma experiência fantástica. Primeiro, porque conheci o que é o jogo de futebol dentro de campo; apesar de não ser um ator principal, de não jogar bola, comecei a entender a reação do jogador, o que ele sente quando perde um gol no final do jogo, um gol que daria a vitória; eu sei o que o jogador sente quando ele sofre um gol nos acréscimos; eu sei o que um jogador sente quando o árbitro erra, eu errei bastante e sabia que tinha errado. Então, essa experiência da arbitragem foi fundamental para poder entender como o jogo se desenrola dentro das quatro linhas. Além disso, tive a oportunidade de conhecer todo o Estado de São Paulo, pois apitei em todos os cantos do Estado. A experiência de conhecer pessoas que também eram árbitros, mas com outras motivações, de outras classes sociais, outros níveis de escolaridade, ver essa diversidade. Não tenho queixas. A FPF me tratou, talvez, da maneira como me dediquei à arbitragem. Dediquei-me sempre com alguns limites, pois não deixava de lado minha atividade e o meu estudo. Acho que a Federação foi justa comigo. Poderia ter me entregado mais à arbitragem: eu tinha vontade, eu tinha isso como projeto de vida, só que o meu desempenho dentro de campo foi um pouco irregular.


No que diz respeito ao relacionamento com os demais árbitros, havia um estranhamento deles pelo fato de você fazer mestrado, depois doutorado? Como era?

Uma coisa interessante. Eu entrei para a arbitragem em 1992. Em 1994, no meio do ano, mas ou menos em abril ou maio, lembro que estava em casa assistindo ao telejornal e saiu a indicação do árbitro brasileiro que iria para o mundial dos EUA de 1994. Era o Renato Marsiglia. E mostraram o perfil dele no telejornal: Renato Marsiglia, formado em tal coisa, com pós-graduação não sei onde (não era um mestrado, mas uma especialização lato sensu). Pensei assim: ‘Poxa, eu sou graduado em Letras pela USP, sou árbitro formado pela FPF. O que vou ter de diferencial se eu quiser galgar outros postos e degraus na minha carreira? Vou fazer mestrado’. Foi um pouco em questão da arbitragem que fui fazer mestrado na PUC. Apesar de quê – e é bom frisar -, quando entrei na graduação em Letras em 1984, botei os pés naquela Faculdade e falei para mim mesmo: “quero ser professor universitário”. Eu ficava fascinado com os professores que vinham visitar o curso de Letras e proferiam palestras, participavam de simpósios, seminários, congressos. Lembro que logo ao entrar no curso, e eu fazia português e francês, veio um escritor francês, o Michel Butor, fazer uma conferência e eu mal entendia, pois não sabia falar francês na época, ainda estava no segundo ou terceiro mês de aula, e fiquei fascinado com a rotina do escritor. Então, na verdade, apesar do mestrado iniciado na PUC-SP em 1994 ter sido motivado pela arbitragem, o ambiente acadêmico já era um sonho e um projeto de vida desde que eu entrei na graduação. Na verdade, as coisas simplesmente acabaram tendo uma convergência e eu pude aliar um sonho antigo, que era ser professor universitário, com o futebol. E eu achava que podia matar dois coelhos: vou fazer meu projeto de vida e, ao mesmo tempo, ganhar meu upgrade na minha carreira de árbitro, pois quando eu for indicado para a FIFA eles verão que eu tenho um diferencial, no caso, um mestrado.


Apesar dos salários, o árbitro não é registrado profissionalmente. Você acha que há uma necessidade da profissionalização da profissão de árbitro de futebol?

Quando digo que atuei como árbitro profissional, estou me referindo ao fato de ter atuado como árbitro em jogos oficiais, organizados pela FPF, entidade que organiza o futebol no Estado, e ter participado de jogos de futebol profissional. Atuei muito em jogos infantis (até 15 anos), juvenis (até 17) e juniores (até 19/20 anos). Muito júnior com quem atuei já era profissional, já tinha registro em carteira. Já tinha contrato, atuava no time de baixo, ia para o time de cima quando o treinador chamava, mas podia atuar nos dois. Se não era aproveitado no time profissional, ficava no de baixo. Por exemplo: um jogador que eu vi nascer foi o Renato, que atuava no Guarani, depois ele foi jogar no Santos, transferiu-se para o Sevilha e agora em 2012 está no Botafogo. O Renato sempre foi um cavalheiro dentro de campo, um jogador cerebral, técnico e responsável. Pensei: ‘esse rapaz vai ter sucesso’. Infelizmente, depois de ser campeão brasileiro com o Santos em 2002, ele foi para um time pequeno na Europa. Acho que ele errou na saída dele. Apesar de ter sido campeão da Copa UEFA pelo Sevilha, ele sumiu para a seleção brasileira. Ele era um jogador com temperamento parecido com o do Rivaldo, pouco midiático, pouca articulação com imprensa, então tinha pouca visibilidade. Mas eu achava que era um jogador genial. Então, quando atuei com ele, o Renato já era profissional no Guarani. Atuar com futebol organizado pela FPF e atuar em jogos de clubes e ligas amadoras é muito diferente. Essa oficialização do jogo por uma entidade como a FPF muda o comportamento dos atletas, dos dirigentes, das equipes. Eu achava que era maravilhoso atuar, mesmo que fosse num jogo da categoria infantil. Você vai ao CT do Corinthians ou ao CT do Palmeiras apitar um jogo e você sabe que está nascendo ali um futuro jogador… Então, o futebol profissional em que eu atuei era o futebol oficial da FPF, além de muitos jogos profissionais, em jogos das séries A2, A3, aspirantes, juniores etc.

José Carlos Marques, atuou como árbitro profissional de futebol. Foto: Max Rocha.


E o que você pensa sobre o uso da tecnologia no auxílio à arbitragem?

Com relação às regras, vocês vão achar que eu sou um pouco conservador, mas eu acho que muita gente que fala de regras nunca pisou num gramado para ver a dimensão de um campo. Tem esse sistema da bola, de colocar um chip e um sensor nas traves para designar se a bola passou ou não… Eu acho que a FIFA quer dar uma resposta à opinião pública e aos meios de comunicação, quer mostrar que ela não está parada, que diante de tanta tecnologia que acompanha o esporte hoje ela não pode ficar para trás. A FIFA está dando uma resposta à opinião pública. Está desenvolvendo um sistema para determinar se a bola passou ou não, se foi gol ou não. O problema é que o futebol só é a competição e o esporte mais difundido nos quatro cantos do planeta, o mais praticado e mais assistido, porque ele tem regras de aplicação universal. A regra que o futebol tiver na Copa do Mundo será a mesma no campo do Noroeste de Bauru; será a mesma regra aplicada aqui no Guapira do Jaçanã, clube que disputava campeonato da FPF; a mesma disputada no Heidenheim 1846 da terceira divisão da Alemanha. Não só a regra é a mesma, mas a aplicação da regra é a mesma. Esse sistema do chip e das traves com sensor vai valer só na Copa do Mundo? Copa das Confederações? Algumas ligas europeias também poderão ter isso? Agora, eu duvido que no Brasil você tenha a primeira, segunda, terceira e quarta divisão com esse sistema. Falávamos antes de iniciarmos a entrevista sobre o Brasil na Arquibancada, projeto do Ludens (Núcleo Interdisciplinar de Estudos Sobre Futebol e Modalidades Lúdicas, da História/USP). Vocês devem estar fazendo visitas de campo e vendo vários campos que não têm outras estruturas mínimas: banco de suplentes, gramados em boas condições etc. Como podemos imaginar que isso será possível em clubes da terceira ou quarta divisão do Campeonato Brasileiro? E não estamos falando da segunda divisão de um campeonato de um país menor na África. Veja, não dá para fazer uma regra que vai se aplicar na Copa do Mundo ou na Copa das Confederações, e não será aplicada em todos os campos do planeta. O futebol só conseguiu ter esse fascínio que tem até hoje porque ele tem a mesma regra e a mesma aplicação de regra no mundo todo, não varia. Você pode ter uma placa eletrônica para sinalizar o tempo. Se você não tem, você vai sinalizar do mesmo jeito com uma tabuletinha, tal como a que tem no campo do Juventus/SP. Você vai sinalizar e aquilo vai comunicar aos jogadores. De qualquer modo, a comunicação será feita. Então, qual é o fascínio do futebol? Em qualquer lugar do mundo ele é praticado e tem as regras aplicadas da mesma maneira. Eu temo que essa experiência da FIFA acabe, a médio e longo prazo, represente algo que vai prejudicar esse fascínio que o futebol provoca. É diferente do futebol americano, que tem uma dezena e meia de times que disputam um campeonato fechado. No basquete da NBA, por exemplo, são vinte e poucas equipes que disputam um campeonato fechado cujas regras inclusive valem ali e não valem nas competições mundiais. Então é muito fácil pensar nesse aparato tecnológico para essas grandes competições norte-americanas. Eles fecham um liga com duas dezenas de clubes, e a aplicação desses aparatos tecnológicos vale para esses jogos. Se você for ver o campeonato universitário de futebol americano não vai ter esses mesmos aparatos tecnológicos. No basquete americano vemos às vezes aquelas cestas maravilhosas no último minuto do jogador arremessando do fundo de quadra e fazendo uma cesta, mas basta olhar as condições daquela quadra, pois não é uma quadra para basquete profissional. A comparação que se faz entre o futebol e os esportes americanos é um pouco descalibrada e indevida. Mesmo outras competições. O tênis tem o sistema para detectar se a bola bateu dentro ou fora da quadra. Vale em alguns torneios, não vale em todos. Em uma Taça Davis aqui no Brasil não terá isso. É como se houvesse duas aplicações da regra no tênis: uma que vai ter o olhar humano e outra que vai ter o olhar eletrônico para determinar se bola bateu dentro ou fora. E quantos jogos de tênis talvez não tenham tido alguma pontuação incorreta pela ausência desse sistema? Agora, qual é a diferença? Uma marcação errada no tênis valerá um ponto que vai fechar ou não o game. É muito difícil uma bola dessas fechar o campeonato. No futebol, por que se demanda tanto uma solução tecnológica? Porque no futebol uma bola que entrou ou não entrou decide o campeonato. A Copa do Mundo de 1966 tem uma bola que entrou para a história como um lance polêmico em que a Inglaterra fez ou não fez o gol. O futebol tem esse problema que depõe contra ele. Uma marcação errada pode decidir o campeonato. Uma marcação errada no basquete ou no tênis às vezes não é tão fatal. Enfim, sou um pouco conservador ainda. Acho que o que resolveria a arbitragem é uma visão que o basquete resolveu com três árbitros em quadra. Antigamente, acho que vocês não lembram disso, o basquete tinha dois árbitros. Eles percorriam a quadra, mas eles não conseguiam ter uma visão de 360º graus. Era uma visão limitada, não fechavam o círculo de visão. Com três árbitros eles conseguiram ter praticamente uma visão completa da quadra. Eles conseguem saber se o jogador pisou na linha ou não pisou, se houve falta ou se não houve. O que defendo é uma arbitragem que também tenha 360º de visão. Esses árbitros que ficam atrás da linha de fundo, de cada lado, é uma tentativa de solução. Acho que ela bastaria para resolver os problemas. A questão é que esses árbitros têm tido uma função muito decorativa. Eles praticamente não têm tido nenhum tipo de intervenção e deveriam ter. Deixar tudo para o árbitro central é um exagero e acho que é o grande erro que a International Board vem cometendo. A arbitragem hoje, com tantos olhares eletrônicos, poderia democratizar um pouco a tomada de decisões, fazendo com que os árbitros assistentes e esses que ficam atrás do gol pudessem ter uma ação maior dentro do jogo. Se virem alguma, devem sinalizar. Não apenas comunicar por rádio ao árbitro, e este tomar a decisão. Vemos seguidas vezes coisas que acontecem a dois metros do árbitro que está na linha de fundo, ele não marca ou apenas comunica o árbitro central. O spray, por exemplo, é uma bela iniciativa, de custo baixo e tem resolvido. Quando eu parei de apitar ainda não havia spray. Então não sei se para os árbitros traz algum incômodo correr com o cinto no qual carregam o spray, além do transmissor para a comunicação radiofônica. Não sei se isso causa algum incômodo para a arbitragem. Acho que não. Se houvesse, eles teriam se manifestado. O spray é uma bela iniciativa e acho que a FIFA e a International Board têm demorado muito para aceitar essa contribuição. Talvez porque seja uma contribuição brasileira; se fosse de uma contribuição de um país centro-europeu, talvez já tivesse sido colocada em prática. É de baixo de custo, tem uma eficácia comprovada, bastante positiva, e acho que tem disciplinado um pouco alguns dos problemas na condução do jogo, como a formação de barreira e o não respeito à distância regulamentar de 9m15 quando uma falta será cobrada.

José Carlos Marques é popularmente conhecido como Zeca Marques. Foto: Max Rocha.


Sua dissertação de mestrado trata do futebol em Nelson Rodrigues. Qual a contribuição deste autor na construção do imaginário do futebol brasileiro nos últimos 60 anos?

Quando ingressei no mestrado, eu nem sabia que o Nelson Rodrigues havia escrito tantos textos sobre futebol. São aquelas coisas que não conseguimos explicar, obras do acaso. Entrei no mestrado em 1994 e em 1992 havia saído a biografia dele, O Anjo Pornográfico, pela Companhia das Letras. Belíssima biografia que o Ruy Castro escreveu. Na mesma época, a TV Cultura exibiu um documentário, “Nelson Rodrigues: personagem de si mesmo”. Um documentário premiadíssimo que foi produzido pela Cristina Rennó, que depois foi minha colega como professora. Ela fez um documentário maravilhoso. Nesse documentário pouco se falava sobre a predileção do Nelson pelo futebol. Só que eu via a imagem do Nelson naquele documentário e fiquei fascinado por aquele maluco que escreveu dezessete peças, que era meio maldito, era tido como pornográfico etc. Vi o documentário e pensei: ‘esse cara é uma pessoa interessante’. Em 1993 e 1994, pouco antes de eu entrar no mestrado, a Companhia das Letras publicou os dois volumes de crônicas de futebol do Nelson Rodrigues, compiladas pelo Ruy Castro: “À sombra das chuteiras imortais” e “A Pátria em chuteiras”. Aquilo foi um divisor de águas para a própria imagem do Nelson Rodrigues no Brasil. Em 1992, ele tinha sido resgatado do fundo do baú como um autor pouco conhecido, um autor maldito, tido como conservador, politicamente reacionário. Sabia-se da genialidade no teatro, mas era um autor que estava guardado na estante, ninguém dava muita atenção, apesar de ter morrido há pouco tempo, em 1980. A biografia quis fazer esse resgate da imagem e importância dele; e da diversidade e complexidade da obra do Nelson Rodrigues. Acho que a grande virtude daquela biografia é mostrar algumas questões pessoais; é humanizar o Nelson Rodrigues. Nelson Rodrigues não era apenas aquele cara conservador e reacionário, porque eu acho que a obra dele não tem nada de conservadora, não tem nada de reacionária. A obra dele é magistralmente revolucionária. Não só na crônica de futebol, mas no teatro, nas crônicas de costumes, nas crônicas, por exemplo, de “A vida como ela é”, que ele escreveu um pouco para ter uma subsistência financeira e publicou no jornal Última Hora, do Samuel Weiner. Mas enfim, quando são publicados esses volumes de crônicas, às vésperas da Copa de 1994, o meio da imprensa esportiva acabou descobrindo e resgatando expressões que ninguém usava: o óbvio ululante, o Sobrenatural de Almeida, a grã-fina de narinas de cadáver. Então algumas expressões que voltaram a ser utilizadas talvez muito mais em que na época em que elas foram empregadas pelo Nelson, nos anos 50 e 60. Nelson caiu como uma luva para um momento em que o futebol deixava de ser visto com muito preconceito na academia, e que acabava tendo uma feliz coincidência com o Brasil sendo campeão em 1994. Eu escrevi um texto sobre o filme Boleiros, filme lançado em 1998 pelo Ugo Giorgetti. Esse filme tem uma importância fundamental na história do cinema brasileiro, não por ter sido um filme genial. O filme não é genial. Ele é interessantíssimo, muito sensível, emocionante, mas não é um filme genial. Mas a grande importância do Boleiros é que ele coloca na pauta do cinema brasileiro o futebol em uma época em que o futebol estava invadindo as academias, os cursos de comunicação, de humanidades de forma geral, como nunca havia ocorrido até então, com tanta aceitação. O futebol na academia tem alguns pioneiros no Rio de Janeiro – Roberto DaMatta, Maurício Murad, Simoni Lahud Guedes, Ronaldo Helal – mas o futebol era tido com muito preconceito na Antropologia e nas Ciências Sociais, e na Comunicação ele era completamente desconhecido. Nos estudos literários, nos estudos de comunicação era completamente desconhecido. Pipocavam uma dissertação aqui, um doutorado ali, uma tese acolá, mas eram iniciativas muito isoladas. Com esse livro do Nelson, com a conquista de 1994 e depois com o surgimento daquela seleção de 1998, espetacular, que tinha Romário antes de ser cortado. Imaginem, a gente poderia ter visto em 1998 Romário e Ronaldo Fenômeno jogarem juntos, com Rivaldo no meio de campo. É uma coisa fantástica se tivesse visto isto, mas o Romário foi cortado. Então o Brasil teve, a partir dos anos 90 uma efervescência com o futebol porque chegou a três finais consecutivas de mundiais – 1994, 1998 e 2002 – e é óbvio que, chegando a três finais consecutivas e ganhando duas delas, o futebol passasse novamente a pautar a publicidade, o mercado de anunciantes, as artes plásticas, a literatura, a comunicação, as ciências humanas. Então o futebol passou a ser uma resposta de algo soterrado há muito tempo, e em 1994, em plena vivência já das nossas instituições democráticas, não havia sobre ele aquela pecha de ser o ópio do povo, de ser uma modalidade a serviço do Estado, como lhe foi imputado especialmente nos anos 70, com a Copa de 70 no México, quando houve um aproveitamento natural. Natural, não estou dizendo que é aceitável, mas natural, pois todo governo faz isso, como aproveitar a conquista de 70 para aparecer na foto ao lado dos jogadores. As pessoas criticam muito o Médici, quando fez isso em 70 e se esquece de ver que em 1958, Juscelino já tinha feito isso. Ele recebeu a seleção brasileira no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro – antiga capital federal. E em 1962 o João Goulart recebeu a seleção em Brasília. Então vejam, presidentes brasileiros de diferentes matizes ideológicos fizeram a mesma coisa, foram tirar fotos com o time que ganhou a Copa do Mundo. E todos os governos, de esquerda ou de direita, de qualquer inclinação ideológica sempre fazem isso e sempre fizeram. Em 2002 o presidente Fernando Henrique recebeu a seleção – e o Vampeta dá a cambalhota – e olha que interessante: o Fernando Henrique, nem por causa do Brasil ter ganhado a Copa, conseguiu eleger seu sucessor. Então essa história de que o futebol é utilizado como um elemento de propaganda ideológica ela tem que ser um pouco relativizada também. Enfim, estou falando isso porque nos anos 90 o futebol ganha uma expressividade que ele não tinha até então e já não havia sobre ele o peso dessa leitura neomarxista de que ele é o ópio do povo, que ele é um instrumento a favor do Estado, ou das classes dominantes. O futebol pode ser isso, mas nunca será somente isso. Ele pode ser muito mais do que isso. E é o que começou a ser mostrado a partir dos anos 90, com essa sucessão de livros e de trabalhos acadêmicos que colocaram o futebol em pauta. Nelson Rodrigues tem uma importância porque ele passou a ser aquele patrono da imprensa esportiva brasileira, ou da crônica esportiva brasileira, com um nacionalismo muito exacerbado. As crônicas dele têm uma parcialidade que é o que ele defendia no seu trabalho de cronista, dramaturgo e escritor. Ele tem peças que demonstram claramente que o ofício do jornalista é um ofício completamente subjetivo. Em que a subjetividade está presente do começo ao fim; não há objetividade. Ele assume isto para ele mesmo: “eu torço para o Brasil, o Brasil é o melhor time do mundo, e vou sempre dizer isso”. Quem não diz isso é idiota da objetividade, é lorpa, pascácio, entendido… Era a forma de ele querer valorizar algo em que ele sempre acreditou e também de chamar a atenção para uma questão mercadológica. Por que Nelson Rodrigues valorizava tanto o futebol brasileiro? Porque o futebol brasileiro, durante muito tempo, também representou o ganha-pão da família Rodrigues. Era o ganha-pão do seu irmão, muito mais empreendedor, que era Mário Filho. Mário, durante muito tempo, foi o dono do Jornal dos Sports, que dependia do sucesso do futebol brasileiro para vender, e para ser, como ele mostrava no frontispício do jornal, durante os anos 50 e 60 o maior diário de sports da América Latina. Era também o ganha-pão do Nelson no Globo e no Jornal dos Sports. Era a forma que eles tinham de valorizar o futebol brasileiro e de mantê-lo como objeto de pauta constante na imprensa. Muita gente esquece que o que criticamos em pessoas que abusam do merchandising e das promoções em programas de rádio ou TV foi praticado de maneira singular também pelo Luciano do Valle, por exemplo. Luciano, aliás, é alguém que sempre fez na Bandeirantes aquilo que Mário Filho fazia em seu jornal. O que Luciano do Valle fez: ele promoveu eventos, ele criou competições, ele formou competidores desconhecidos e a partir da televisão fez com que se tornassem conhecidos do grande público, como é o caso do Maguila. O Luciano do Valle teve a ousadia, eu diria, de ter feito o Brasil acreditar que o Maguila poderia ser um vencedor internacional no Boxe. O Maguila era um lutador pouco técnico, mas com muita vontade, muito voluntarioso, e o Luciano do Valle fez o Brasil acreditar que ele poderia vencer o Evander Holyfield. O Luciano do Valle fez o Brasil acreditar que o vôlei era uma coisa possível e o vôlei tem um sucesso muito devido ao espaço que o Luciano deu, tanto na Globo como na Bandeirantes. Luciano do Valle inventou a Fórmula Indy no Brasil. Ela era uma coisa de americanos para americanos e hoje é uma competição recheada de brasileiros e que tem espaço na grade do canal, tem seu espaço na TV. O Luciano do Valle criou a grande maratona de esportes aos domingos, quando fez o Show do Esporte na Bandeirantes, que tinha ligações de telemarketing para receber prêmios, um monte de anunciantes. A gente esquece que o que Milton Neves faz no rádio e na TV o Luciano do Valle já fazia nos anos 80. O que o Luciano do Valle fazia era promover o esporte, promovendo competições, jogos, criando competições e pessoas. O Mário Filho fazia isso no jornal dele. O Mário Filho fazia isso criando competições escolares, como fez no Rio; mitificando algumas questões, como fez com o Fla-Flu, mitificando oputras questões, como no livro O negro no futebol brasileiro. Outro exemplo: a briga que o Mário Filho teve antes da Copa de 1950 para se construir o Maracanã onde ele está hoje, próximo ao centro do Rio de Janeiro. O Carlos Lacerda, jornalista e político influente na época, queria levar o Maracanã para Jacarepaguá. Naquela época era quase outro município. Hoje ainda é longe, mas criar uma Vila Olímpica em Jacarepaguá é completamente aceitável, mas agora imagine em 1948, 1949, construir um estádio em Jacarepaguá provavelmente se transformaria em um estádio que não cairia no gosto do carioca como o Maracanã caiu. E acho que esse gosto que o carioca tem pelo Maracanã é tão forte que o carioca não aceita uma segunda casa, que é o Engenhão. O Engenhão está recheado de jogos importantes, mas quase sempre vazio. É um estádio que não caiu no gosto do carioca. Enfim, o Mário Filho tinha essa importância, tinha uma projeção e promoção do esporte. O Nelson Rodrigues que não tinha esse espírito empreendedor ficava mais com o trabalho de mitificar o trabalho que o irmão já fazia. Então, a importância dele foi mostrar que havia a possibilidade de criar uma riqueza literária para seu texto – e ele fazia isso em todas as modalidades e gêneros – e mostrar que o futebol poderia ser lido a partir da pena de alguém que escrevia de forma genial.

José Carlos Marques durante entrevista para o Ludopédio. Foto: Max Rocha.


Pensando a partir do Nelson Rodrigues, e também pelo fato de ser professor de um departamento de comunicação, o que você observa desta geração de futuros jornalistas, radialistas, etc esportivos? A crônica sobrevive?

Eu dou aula para os alunos do curso de comunicação no Departamento de Ciências Humanas da UNESP, em Bauru-SP, unidade que congrega professores que têm um saber que vai ser aplicado em diferentes cursos, não apenas de comunicação. A minha experiência diz um pouco o seguinte: tem muito aluno hoje que está fissurado em trabalhar com o esporte, na editoria de esporte dos jornais, mas é um aluno que eu sempre brinco que é o nerd do futebol. É o cara que adora futebol, conhece tudo, conhece quem está em quinto lugar na segunda divisão da Armênia, o último campeão da Albânia, sabe a escalação de todos os times da série A. Mas aí quando você começa a colocar pra ele questões de geopolítica, contexto internacional, história da arte, ele não tem nenhum tipo de diálogo, nenhum tipo de trânsito em áreas que não sejam de esporte, e isso eu acho que é um problema, uma pena. São alunos que têm muito talento pra lidar com o esporte, mas de uma maneira que eu não gosto que o esporte seja tratado, como algo que esteja separado do resto da vida, do resto da sociedade. O esporte faz parte da nossa organização social como qualquer outra atividade. O caso brasileiro, por exemplo: existe racismo na sociedade brasileira, então como é que vamos imaginar que não exista racismo no futebol? Existe homofobia na sociedade brasileira, então como é que vamos imaginar que não exista homofobia no futebol? Então porque as pessoas ficam tão indignadas por achar que no futebol isso não iria acontecer? Lógico que isso vai acontecer. Tem corrupção na política brasileira? Tem. Tem corrupção na sociedade brasileira? Sim. Por que não haverá corrupção no futebol? Não estou absolvendo o futebol destes males, mas ele é uma parte integrante da nossa vida, da nossa organização social, como qualquer outra atividade. Então ele vai ter em maior ou menor grau as virtudes e as desvirtudes que a gente vai ter na nossa organização como um todo. O problema dos alunos de comunicação – o que não vejo com os alunos de ciências humanas – é uma abstração do fenômeno do esporte, especialmente do futebol como se fosse alguma coisa isolada da vida. Não é à toa que as grandes contribuições que nós temos pra entender o esporte e o futebol nos últimos anos tenham vindo não da área de comunicação, mas da área das ciências humanas. E isso fica pior no jornalismo, que está fragmentado em áreas e editorias. Então o cara que vai trabalhar com esporte não vai entender o esporte a partir de um viés social, econômico, político etc. Se tiver que fazer um texto sobre um filme que fala de futebol vão pegar quem? Um crítico de cinema. Ou alguém que possa transitar pelas duas áreas, como o José Geraldo Couto, que era um brilhante jornalista da Folha, e quando era necessário escrever alguma resenha sobre algum filme de futebol ele era acionado. Ou seja, quando vão escrever sobre economia do futebol é mais fácil procurar um economista que um jornalista esportivo. Outra questão fundamental para entender o curso de comunicação é perceber a expectativa de um aluno que entra no curso de jornalismo, por exemplo. Quando ele é perguntado sobre o que quer ser quando crescer, ele diz: um William Bonner – que nem jornalista é -, um Juca Kfouri; alguns diriam Milton Neves, muitos diriam que querem ser o PVC (Paulo Vinícius Coelho), alguns diriam um articulista como Arnaldo Jabor ou um grande repórter como Ricardo Kotscho. Então basicamente o jornalismo vai se espelhar em quem? Em gente do mercado, em jornalistas profissionais. Se você chega a um curso de literatura provavelmente muitos vão se espelhar nas grandes figuras da área: Antônio Candido, Alfredo Bosi, Davi Arrigucci Jr, José Miguel Wisnik. Na área de história talvez digam Nicolau Sevcenko, Carlos Guilherme Mota; na filosofia a Marilena Chauí e o Renato Janine Ribeiro. Veja que as referências dos alunos das ciências humanas são quase sempre da academia, pessoas que militam na academia, pesquisadores, intelectuais. Na área de comunicação é difícil. Se você entrar numa aula de publicidade, então os alunos vão se espelhar em quem teve sucesso no mercado, nas agências de publicidade, como o Washington Olivetto e o Nizan Guanaes. São poucos os alunos de jornalismo, portanto, que querem fazer um trabalho como o de Alberto Dines, o qual tem um olhar crítico a respeito do trabalho da imprensa. Isso faz com que nos TCC´s os alunos queiram sempre fazer uma grande reportagem, mas dificilmente uma monografia com mais reflexão conceitual. 

Confira a segunda parte da entrevista no dia 26/09/12.

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