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José Roberto Torero

Equipe Ludopédio 12 de junho de 2013

O jornalista e escritor José Roberto Torero é conhecido por seu texto intrinsecamente literário e por suas narrativas criativas, seja nos jornais, revistas, livros ou roteiros audiovisuais. Para sorte do futebol, o santista Torero é um apaixonado pelo esporte e sempre transforma os dribles, os craques e os golaços em belas figuras de linguagem, personagens míticos e histórias tocantes.

Vencedor do prêmio Jabuti em 1995, com O Chalaça, Torero também se notabilizou por produzir roteiros para filmes, teatro e televisão. A última obra mais debatida pelos amantes do futebol é a série (fdp) do canal HBO, mas é de longe a única produção ludopédica. Além de colunista da revista Placar e do jornal a Folha de S. Paulo, Torero escreveu “Os Cabeças-de-Bagre também merecem o paraíso”“Zé Cabala e Outros filósofos do futebol”“Uma história de Futebol”“Nove contra o 9”, dentre outras dezenas de obras.

Boa leitura!

 

José Roberto Torero foi vencedor do prêmio Jabuti em 1995. Foto: Max Rocha.

 

 

Primeira parte

 

Como foi construída na infância a sua relação com o futebol?

Foi uma relação familiar-geográfica, pois eu nasci em Santos, em 1963, quando o Santos FC foi bicampeão mundial. O time era a paixão da cidade. Amigos, colegas de escola, família próxima, família distante, todo mundo era santista. Em Santos temos uma ditadura do Santos. É muito raro, ainda mais naquela época, alguém não ser santista. Depois, a partir da segunda metade da década de 1970 e 80, ficou muito fácil não ser santista. Tivemos equipes horríveis, então ficou mais complexo. E familiar também por causa do meu pai. Meu pai gostava do Santos FC. Ele é mineiro, mas veio para Santos, e torcia para o clube desde sempre. Ele me levou a alguns jogos, sem nenhuma pressão. Não tinha pressão de ser santista, não tinha camisetas de presente, chantagem emocional, não tinha nada. Ele me levava às vezes e eu achava muito divertido ver o Santos jogar. Fiz um textinho sobre o primeiro jogo que eu lembro que eu fui: a despedida do Pelé (leia abaixo).


O dia em que virei santista

Aos nove anos eu ainda não tinha escolhido para quem torceria. E isso era muito bom, porque criava uma certa disputa entre o pessoal de casa.
Meu tio Mauro falava que eu tinha que torcer para o Palmeiras, porque o verde era a cor mais bonita do mundo. Mas como essa cor me lembrava alface, chuchu, chicória e outras verduras que eu tinha que comer à força, seu argumento não era grande coisa.
Já minha avó era corintiana. E muito. Escutava os jogos em seu radinho de pilha e gritava quando saía um gol. Porém, como o Corinthians estava há muito tempo sem ganhar um título (eram os idos de 1974 e o deserto ainda duraria mais três anos), ela não possuía grandes argumentos para me convencer. Ela só dizia que, mesmo perdendo, era bom ser corintiana. Mas eu ainda era muito criança para a metafísica.
Meu pai, por sua vez, tentava ganhar minha simpatia dizendo que o Santos era o time da minha cidade. O problema é que uma criança não tem o sentimento bairrista desenvolvido e, assim, esse argumento também não ia muito longe.
Como ninguém conseguia me convencer com palavras, passaram a tentar comprar minha opinião com presentes. Eu ganhava montes de chaveiros, jogos de botões e figurinhas. Mas, como havia um equilíbrio entre os presentes, o empate permanecia.
Porém, um dia, ou melhor, uma noite, meu pai mandou que eu me arrumasse porque ele ia me levar até a Vila Belmiro. Disse que iria acontecer um jogo muito importante e que eu tinha que ver aquilo.
Achei o estádio uma coisa fantástica. Nunca tinha visto tanta gente junta. Nem tantas bandeiras, nem tantas luzes. Era uma mistura de música, fogos de artifício e gritaria. Uma coisa selvagem e linda ao mesmo tempo.
De toda aquela festa eu tinha gostado muito. Já o jogo não estava sendo grande coisa. Mas aí, de repente, um dos jogadores do Santos se ajoelhou no meio do campo e houve um instante de silêncio, como se ninguém acreditasse no que via. Logo depois os torcedores ficaram de pé e começaram a bater palmas.
O jogador abriu os braços e virou-se, de joelhos, para os quatro lados do estádio. Olhei para trás e vi que todo mundo estava chorando. Pior, olhei para o lado e vi que meu pai estava chorando. Meu pai chorando!? Aquilo era uma coisa que eu nunca tinha visto na vida. Nem visto, nem imaginado.
Perguntei-lhe o que estava acontecendo. Ele me explicou que aquele homem de joelhos ia parar de jogar futebol.
“Vai parar por que é muito ruim?”, perguntei.
“Não, ele é o melhor do mundo”, meu pai me respondeu com os olhos cheios de lágrimas.
Eu não entendi aquela lógica: “Se ele é o melhor do mundo, por que vai parar de jogar?”
Meu pai não me respondeu, só ficou olhando para o campo. Talvez ele também não tivesse a resposta. Nem ele, nem os milhares de homens que choravam na Vila Belmiro, transformando as arquibancadas em cascatas.
Depois, quando o jogo recomeçou, com meu pai ainda triste e calado, resolvi que tinha que fazer alguma coisa para consolá-lo. Pensei no que poderia deixá-lo mais alegre. Pensei, pensei e, quando tive uma idéia, falei:
“Pai, acho que vou torcer para o Santos.”
Ele olhou para mim, enxugou as lágrimas, pôs a mão no meu ombro, sorriu e não falou nada. Mas nem precisava. Naquele momento, eu vi que tinha substituído Pelé.
Foi assim, no dia mais triste da história do meu time, que eu me tornei santista.


Nesse período você tinha quantos anos, mais ou menos?

Isso foi 1974, tinha uns 10 anos. Foi ali que comecei a gostar de futebol. Em 1978 passei a gostar ainda mais: Vitor, Nelsinho, Joãozinho, Neto, Gilberto Sorriso, Clodoaldo, Ailton Lira e Pita; Nilton Batata, Juary e João Paulo. Eu tinha 14, 15 anos, pegava o ônibus em casa, ia sozinho. Foi uma época de fanatismo. E também porque o time era lindo. Até hoje o meu ideal de beleza futebolística é o 4-3-3, com volante, armador, ponta-de-lança e dois pontas abertos.

Se assistisse hoje um VT desses jogos, estragaria essa visão?

Talvez, então não vamos estragar. Era um futebol muito bonito, muita velocidade, muito drible, muitos gols. No Playstation eu ainda jogo no 4-3-3.

Sempre com o Santos?

Já joguei com o Arsenal no começo. Mas parei.

O jornalista e escritor José Roberto Torero. Foto: Max Rocha.

Torero, pensando na cidade de Santos, qual foi seu contato com o futebol de praia, que ali se faz muito presente?

Sim, muito. Minha turma, então com uns 13 anos, jogava também muito futebol de salão, por questões particulares. Tinha um amigo que conseguiu a quadra de futebol de salão de uma escola todo sábado para que jogássemos. Todo sábado. Mas na praia também. Jogamos muito futebol de praia, com os amigos do colégio, desde a 6ª série, até anos mais tarde.

E ficava um pouco no imaginário da adolescência: “algum um dia jogarei na Vila Belmiro…”?

Cheguei a fazer testes, não no Santos, mas no Universo, um time de várzea. E eu era um volante vigoroso…

Defina vigoroso… (risos)

Cocito é vigoroso, Pintado é vigoroso.


A bola é um detalhe, é isso?

Um detalhe que atrapalha. Mas eu não era tão ruim assim não. Eu corria muito, pois fazia muita natação. Era um atletinha. Corria feito uma besta durante o jogo. Para volante era ótimo, ia e voltava. Mas não era tão violento. Tá, era violento, mas tinha uma certa habilidade. Mas não passei no teste do Universo. E, se você é reprovado pelo Universo, o que sobra? Nada. O Jorge Luis Borges tem um conto chamado “O Outro”, em que ele encontra com ele mesmo um banco de praça. Fiz um plágio – explícito – dizendo como seria se eu tivesse passado no teste (leia abaixo).

Como seria?

Eu seria um fracassado, mas talvez feliz. Porque a vida de jogador é feliz. É como ser escritor. Ser escritor é um pouco como a de jogador. Você não é muito adulto. Você ganha a vida para fazer historinha, assim como o cara ganha a vida para jogar futebol. Mantém o lúdico para a sua vida adulta. Eu acho isso sensacional, poder trabalhar como escritor. Com a vantagem que como jogador, com 35 anos, a carreira está acabando; como escritor, com 35, eu era um iniciante. Tem essa vantagem. Eu prefiro essa vida mesmo. Mas acho que, por um tempo, teria sido feliz como jogador.


O outro

O fato ocorreu há uns três anos. Não o escrevi logo porque queria esquecê-lo. Como não consegui, vou imprimi-lo aqui. Assim, pelo menos, ele se transformará em ficção e deixará de ser o vivo fantasma que me persegue.
Eu estava sentado num banco da praça, observando o pequeno lago que espelhava o céu. Quando cansava da paisagem, lia um pouco sobre Borges. Não, não sobre Jorge Luis Borges, mas sobre Carlos Alberto Borges, meia que fez algum sucesso no Palmeiras de Telê Santana.
Virava a página quando sentou-se um homem no banco. Olhei-o com atenção. Era eu.
Ou melhor, um outro eu, sem barba, mais magro e vestindo uma camisa do Jabaquara. Ele também me percebeu e trocamos um olhar assustado. Quando me recuperei, perguntei:
_ Por acaso você nasceu em Santos?
_ Isso mesmo.
_ E por acaso você não se chama Torero?
_ É o meu sobrenome. Mas não me chamam assim há muito tempo.
_ E como te chamam?
_ Touro.
_ Como?
_ É o apelido que me deram quando jogava de médio-volante.
_ Você não é jornalista?
_ Não. Nunca fui.
Vi que estava diante de uma possibilidade de mim mesmo. Uma espécie de universo paralelo que aparece nos contos fantásticos e nos episódios de “Jornada nas Estrelas”. Curioso, perguntei:
_ Como você começou a jogar futebol?
Ele achou a pergunta estranha, mas não menos que aquela situação. Então respondeu:
_ Quando tinha 15 anos fiz um teste num time de várzea chamado Universo, lá do Saboó, e passei. Dali fui para o Jabaquara, onde joguei até os 20, e aí entrei no Santos. Fui reserva do reserva do Dema no Paulista de 84. Eu era um jogador meio violento. Estilo Chicão. Não consegui me firmar no time e fui vendido. Joguei no Marília, no XV de Piracicaba, no Águas de Lindóia, no Itararé, no Tanabi, no Linense, no Garça e voltei para o Jabaqara. Hoje sou o auxiliar técnico de lá.
_ Entendi o que está acontecendo. Você é eu, só que passou no teste do Universo. Lembro que fui até lá, perdi um gol na cara do goleiro e acabei dispensado.
_ Eu lembro desse lance. A bola bateu na trave e entrou.
_ A sua entrou. A minha saiu.
_ Foi sorte.
_ Ou azar. E você escreve sobre o quê?
_ Sou colunista esportivo.
_ E nunca jogou futebol profissionalmente?
_ Nunca.
Após me olhar fixamente por algum tempo, ele disse: “Se tem uma coisa que detesto, é colunista esportivo que nunca jogou bola e vive dando palpite”.
Eu respondi: “Se tem uma coisa que eu odeio é volante que não sabe jogar bola e só vive dando pancada”.
Então nos levantamos e saímos, um para cada lado, sem olhar para trás. Ao mesmo tempo odiando e invejando nossos outros eus.


Olhando para a sua trajetória, num determinado ano você sai de Santos. Você muda para São Paulo?

Sim, com 18 anos vim fazer Letras na USP. No primeiro semestre, vou e venho, ônibus todo dia, pois não queria sair da minha cidade, deixar minha namorada, a primeira namorada. Mas não dava para seguir assim e acabei mudando para São Paulo no segundo semestre. Sobrava muito tempo e nesse mesmo ano já prestei vestibular para Jornalismo na ECA. Fiquei fazendo Letras de manhã e ECA de noite. E quando me formei em Letras era o último ano que podia prestar vestibular estando já na USP e então prestei Cinema. Acabei Jornalismo e a de Cinema fui arrastando, pois já trabalhava. Fiquei uns oito anos no curso e nem acabei.

Em algum momento dessa trajetória, que junta três graduações, o futebol aparece do ponto de vista acadêmico, como objeto analítico?

Nunca, sem nenhuma chance. Nem trabalhos. Na vida sim. Voltava para Santos todo final de semana e jogava futebol de salão. Na Letras o futebol ainda era mal visto. O futebol começou a ser bem visto recentemente, nos últimos 15 anos, surgiram mais livros sobre futebol, passou a ser estudado. Antes não tinha nada. Os primeiros livros de clubes, de série, só foram aparecer em 1997 e 1998. E foi uma pequena coleção que o Juca Kfouri fez do Corinthians, eu fiz do Santos, Ignácio Loyola Brandão fez do São Paulo. Mas não tínhamos livros até o final da década de 90. Aí começamos a ter biografias de jogadores, como a do Garrincha, de autoria do Ruy Castro, que foi um marco inicial. E foi uma quebra espetacular, um sucesso, um livro muito bom. Então eu fiz Letras sem pensar em escrever sobre futebol; no Jornalismo fiz alguns textos, coisas sobre futebol nas aulas de crônicas, mas nunca uma reportagem; e nunca tinha pensado sobre futebol no Cinema, algo que só fui fazer depois, com o curta Uma História de Futebol, que concorreu ao Oscar. Depois fiz bastante coisa.

E como foi esse processo de aproximação com o tema já na vida profissional?

Trabalhei com jornalismo, fazendo coisas variadas: revista de cachorro, revista de química, revista de plástico, revista de parapsicologia. O jornalista, no começo, é aquele jogador cigano, que um dia está no Jabaquara, mas no outro dia está no Velo Clube, depois na Ferroviária. Depois de formado, entrei na Folha de S. Paulo. Tinha um curso interno, fui um dos selecionados, passei na peneira. Trabalhei primeiro com a secretaria de redação e fui ser repórter. Escolhi a editoria de Esportes. Fiquei lá alguns meses, mas enjoei, porque ser repórter de futebol é muito chato. É muito monótono, ainda mais quando você cobre um clube. Se ganhou, é um tipo de dia; se perdeu, é outro tipo de dia. Mas é muito igual sempre. Não tem muita variedade. Além disso, a Folha era muito tensa na época; período de implantação do Projeto Folha. Não era um lugar muito saudável para trabalhar. Então saí. Saí também porque eu tinha a ideia de um livro. Passava o dia na Biblioteca Mário de Andrade e na Faculdade de História da USP. Pesquisando e lendo. Achei a história do Chalaça, montei, reescrevi milhares de vezes o livro até ficar bom, inscrevi no concurso Nascente, da USP (que existe até hoje). Na primeira vez não ficou nem entre os selecionados. Reescrevi o livro e ganhou no segundo ano do Nascente. Levei para a Companhia das Letras, fiz eu mesmo a apresentação e deixei lá na portaria. Eles têm leitores críticos. O cara que leu gostou. E o Luiz Schwarcz três semanas depois deixou recado na minha secretaria eletrônica. Foi inacreditável. O livro foi publicado, ficou em primeiro lugar na lista dos mais vendidos, até na frente do Paulo Coelho. Só duas semanas, mas ficou. Ganhou o Jabuti e o Livro do Ano. Então o Jornal da Tarde me convidou para escrever uma coluna no caderno de cultura. Finado Jornal da Tarde… (tem que colocar um parênteses: ‘ele faz um sinal da cruz’ – risos). Era bacana, tinha liberdade total, podia falar o que eu quisesse. Podia escrever uma crítica, uma crônica, um conto. E às vezes eu falava sobre futebol. No Campeonato Brasileiro de 1995, quando teve a final Santos x Botafogo, eu falei muito de futebol. O pessoal de Esporte do JT pediu e escrevi um texto por dia. Acho que a Folha percebeu. No final de 1997 o Jornal da Tarde acabou com as colunas e eu já não fazia mais parte do jornal. Na mesma semana a Folha me liga e convida para escrever sobre esporte. Janeiro do ano seguinte já estava na Folha, escrevendo duas vezes por semana. E fiquei lá até 2012 (às vezes com algumas férias longas, não remuneradas). Agora parei, decidi escrever livros. O futebol é um buraco negro, ele te suga. Para ser um colunista de futebol tem que ler muito, ver muito jogo, vários programas de TV, estar muito bem informado. Tem que saber quem é aquele cara bom do Botafogo de Ribeirão Preto. Toma muito tempo e muito da sua cabeça. O colunista tem que ficar ligado para achar o tema da semana. Não é só a manhã que eu passo escrevendo o texto. Você tem que ficar sintonizado para achar um tema e desenvolver algo diferente.

Isso com o tempo ficou mais fácil?

Isso não muda, é impressionante. É tão difícil quanto, principalmente se você não é um cara que fala do jogo. Esse era o meu problema. Se você fala do jogo, tudo bem, não tem problema. Você vai falar do jogo, dar sua opinião, não tem problema. Mas se você quer fazer uma crônica, uma história de bangue-bangue como foi toda a rodada, se quer entrevistar jogadores mortos com o Zé Cabala, quer inventar personagens, tem que ficar ligado no subtema e achar alguma coisa interessante que sirva de mote. A forma literária precisa ser um pouco mais trabalhada, gasta mais tempo. Por conta da falta de tempo acabei parando com o blog no UOL.

Seu último post foi sobre os milhares de spams que recebeu. Foi por isso que desistiu? (risos)

Ah, blog é uma doidice. Às vezes você recebe 200 comentários por um textinho de nada. E, só para ler os 200 comentários, lá se vai sua manhã. Então abandonei. Depois comecei a achar que no jornal também não estava valendo a pena. Era um tempo que eu queria gastar em outras coisas. E deu certo. Depois que parei de escrever sobre futebol, já lancei Os 33 Porquinhos, livro infantil; o Nove Contra o 9, romance policial; saiu o Kubno e Velva em fevereiro; fiz um livrinho de contos chamado Papis et Circenses, que ganhou o 1º Prêmio Paraná de Literatura na categoria Melhor Livro de Contos; o Lelércules, outro infantil; e já comecei, junto com o Marcus Aurelius Pimenta, um romance histórico sobre o Raposo Tavares. A produção literária aumenta muito, pois você passa o tempo todo dedicado a isso.

Tivemos a oportunidade de entrevistar o Juca Kfouri e ficamos com a impressão que pode acontecer o oposto: a pessoa ficar viciada e imersa no universo do blog…

Aconteceu comigo. Eu era pago para escrever dois dias, mas passei a escrever todos os dias. Trabalhava três dias de graça. Vicia mesmo. Qual escritor não quer ter 10 mil leitores em um dia? Isso é um livro bacana que você lança. O Evangelho de Barrabás, com três mil leitores, foi um romance histórico que levei três anos para fazer. E aí você faz um texto no qual o Zé Cabala entrevista o fundador do Corinthians e 20 mil caras vão ler. É uma tentação.

Torero, a partir disso, qual é a importância do futebol na sociedade brasileira?

É uma questão referencial. Quando você encontra um cara fora do Brasil, você pergunta: “De qual cidade você é?”. Ok, quase sempre é Governador Valadares (risos). A segunda pergunta é sempre para saber o time do cara. É um fator de união nacional. Você vai a uma festa e não conhece ninguém, tranquilamente futebol vai aparecer, você vai conseguir entrar na rodinha masculina e vai ficar à vontade, pois futebol é um assunto em comum. Não existe outro assunto assim no país. Nem sexo, amor, carro ou literatura (risos). É o grande assunto masculino. Não sei do que as mulheres falam. Fiquei até curioso: qual é o futebol das mulheres? O que será? São os homens? Será que elas falam de nós?

Elas reclamam dos homens que falam de futebol…

Pode ser. Acho que o assunto futebol cresceu muito por causa da falência das utopias. O que um cara de 17 anos, que tem aquela energia gigantesca, vai fazer? Não tem mais aquela ditadura para lutar contra; não tem mais movimento social bacana; a comunidade eclesial de base perdeu a força e o charme; comunidade de amigos de bairro, que tinha uma certa força, também esmoreceu; o sindicalismo esmoreceu. Acho que o fim dessas opções de manifestação social acabou alimentando a paixão pelo futebol, deslocando o interesse para esse esporte.

Em que medida o futebol explica o Brasil? Podemos fazer esse tipo de leitura?

Acho que sim. Para escrever, pelo menos, é uma metáfora sensacional. O futebol tem dirigentes complexos, riqueza e pobreza, histórias de amor, enfim, tudo que temos no Brasil é possível achar no futebol. Então é uma metáfora perfeita, por isso é muito tentador escrever sobre futebol de um jeito que não se fala sobre o resultado do jogo. É uma metáfora. Você acha ali os mesmos calhordas que fazem conchavos com políticos; você encontra aquela mistura entre coisa pública e coisa privada; encontra também esse otimismo popular; essa alegria um pouco irracional. É por isso que o futebol é sucesso.

osé Roberto Torero produz roteiros para filmes, teatro e televisão. Foto: Max Rocha.

E qual é o papel social específico do jornalista que trabalha com futebol dentro da nossa sociedade?

Existem vários tipos de jornalistas esportivos. Tem o que só cobre o fato, aquele que analisa mais, aquele que fuça mais e tenta descobrir coisas, tem o meramente fofoqueiro. Como em qualquer outra editoria, tem o informador e o formador. O que acontece com o jornalista esportivo, de forma particular, é que ele tem que ser muito bem informado, pois ele tem o público mais informado do jornal. O cara de cultura não manja tanto de cultura, nem o de economia. O cara de política provavelmente não lembra em quem votou em 1984, mas eu lembro que o Santos de 84 tinha Serginho, Paulo Isidoro, Lino etc. Ele tem esse problema: um público ultra-sofisticado, ultra-informado, com uma memória incrível. Se comete um errinho no jornal chove email. Se você escreve “O gol da final de 1978 foi de Juary”, ferrou. É um massacre. Mas se erra em outras editorias tem grande chance de passar batido. Na de economia: “O IPC de março do ano passado foi de 0,38”, em vez de 0,33. Ninguém vai notar. Talvez o cara da Fundação Getúlio Vargas, mas só. No esporte não; centenas de pessoas vão falar que você não entende nada.

É possível avaliar a atuação da imprensa de forma geral – não só escrita, mas também rádio e TV – na construção de uma imagem do futebol brasileiro?

A imprensa constrói grande parte da imagem desse futebol. Acho que existe um certo otimismo exagerado, principalmente por conta dessa necessidade da televisão de levantar o futebol, de ser melhor do que é realmente. A seleção está um fracasso, mas o Galvão Bueno nunca assume. Esse não é um exemplo isolado. É um exemplo típico. No jornal, que oferece espaço para crítica, já acho que não, pois acredito até que é a crítica que chama a leitura. Mas na TV, não. A crítica afasta. Acho que tem uma certa esperteza no Galvão Bueno em ser um tanto ufanista. Não é à toa. Tem um motivo e um objetivo: não perder telespectadores, cativa mais manter o público atento, manter a esperança…

O Marcelo Tas fala que ao entrar para a TV, essa “caixinha de malucos”, é preciso assumir um personagem. O Galvão Bueno estaria enquadrado nessa lógica?

Acho que sim. Acho que ele assume a personagem desse cara otimista, emocionado.

Pensando em algumas dessas imagens produzidas pela imprensa: se a seleção de 1982 tivesse vencido a Copa do Mundo, será que ela teria significado mítico que carrega hoje?

Sim, tranquilo. Acho que muito mais do que é hoje. Porque a de 1970, que foi uma bela seleção e é muito amada, foi vitoriosa. Se a de 1982 fosse vitoriosa, talvez superasse a de 1970. Era um jogo muito bonito. O jogo da seleção de 1970 não era tão belo. Os gols são belos. O jogo inteiro é bonito, mas não tão bonito quanto os gols. Tem uma coisa engraçada naquela Copa. Alguns lances isolados são muito belos. E quando passa os melhores momentos, parece que foi tudo assim. Não, era um jogo mais lento, não era essa coisa fantástica. Acho que a seleção de 1982 era mais bela. E se vencesse seria espetacular, acho que teria mudado o futebol do mundo. Como também a Holanda se tivesse vencido em 1974.

Partindo dessa comparação entre as seleções de 1970 e 1982, como você define a categoria futebol-arte?

Ambas são produtoras de beleza. É subjetivo, não dá para explicar muito. Se você olha, dá para ver beleza ali. Como você via no Corinthians de Rincón, Marcelinho, Luizão e Ricardinho; ou no Palmeiras do Luxemburgo e da Parmalat. Via-se beleza: ângulos bem desenhados, dribles, movimentação; é um balé quando dá certo. Excesso de marcação geralmente tira mesmo a beleza. E essas duas seleções não eram relaxadas quanto à marcação, num espírito “vamos todo pra frente”.

Você entende que existe, dentro desse mosaico do jornalismo esportivo que você apresentou anteriormente, espaço para um jornalismo crítico?

Acho que os jornalistas têm bastante espaço. Na Folha de S. Paulo só duas vezes tive problemas. Mas não me censuraram. Quando o Fernando Henrique Cardoso ganhou a primeira eleição escrevi uma “Carta ao presidente do Brasil F. C.”, fazendo algumas cobranças do tipo: tem que cuidar dos veteranos; o departamento médico está totalmente esquecido; as categorias de base estão um terror. Aí eles me procuraram, mas eles não me acharam. Não sei se eles iam pedir para mudar alguma coisa, ou o texto inteiro. Mas não me acharam, então o texto foi sem cortes. E uma vez eu fiz uma comparação entre a memória do eleitor e a memória do torcedor na véspera da eleição, falando sobre o Maluf, claro; sobre como o eleitor é uma besta e esquece tudo. Ligaram e falaram: “Olha, já temos vários processos do Maluf, você não consegue tirar?”. Aí eu tirei o nome, mas ficou claro. Mas na Folha foram só essas duas vezes. No plano da investigação não tem problema.

Você se interessava por esses meandros, pelos bastidores?

Eu não era repórter e nem um colunista como o Juca Kfouri, um colunista-repórter, que tem muitas fontes. Vez ou outra me falavam alguma coisa, mas eu retransmitia em forma de conto. Por exemplo: um técnico me contou que um título paulista de um grande clube contra um pequeno foi comprado mesmo. O juiz estava na folha de pagamento do clube grande. Eu coloquei isso um dia em forma de conto. Outro exemplo: contaram-me como funcionou num clube pequeno a venda da categoria de base para um empresário. Eu recontei usando um personagem que inventei na Folha, ‘Raimundo, o rei do submundo’. Mas sempre em forma de conto, nunca como denúncia, pois quem passou para mim não o fez com essa intenção. 

Aproveitando o gancho do Paulistão, equipes do interior… O Juca é um ferrenho defensor do fim dos estaduais. Conte-nos um pouco sobre essa pequena divergência…

O Juca tem uma certa razão. Mas o ponto de partida dele é que eu acho errado. O ponto de partida é que isso prejudica o grande. O meu ponto de partida é o pequeno. O que me importa é o clube pequeno. Eu acho que o que sustenta o futebol brasileiro, o que o faz ser tão bacana, ter tantos bons jogadores, é o clube pequeno, essa quantidade inacreditável de clubes pequenos, com milhares de jogadores. Acho que o clube pequeno é a base do futebol brasileiro. Hoje menos, porque eles ficarem muito pequenos. Mas, mesmo assim, se formos ver o número de jogadores que começaram em clubes pequenos, é gigantesco. Não teria o Cafu sem o Nacional; não teria o Felipe Anderson sem um time chamado Astral, do Paraná. Time pequeno também traz muita felicidade para cidade pequena. Acho triste cidade que não tem um time de futebol. Acho uma falta de identidade todo mundo gostar do Flamengo e do Corinthians. É muito nobre esse amor pelo time da cidade. Então minha questão não é viabilizar para o grande, mas sim viabilizar para o pequeno. E acho que hoje o campeonato estadual viabiliza para o pequeno.

Vocês já debateram pessoalmente essa questão?

Já, inclusive no programa dele. Mas acho que ele conseguiria me convencer se ele partisse do pequeno. Primeiro temos que pensar se há alguma coisa melhor que o Paulista. Aí sim…

O Corinthians, após o rebaixamento para segunda divisão, soube se reestruturar, reconfigurando suas ações com muita rapidez, conseguindo chegar sempre às finais, ou próximo, com uma visibilidade cada vez maior. Como você analisa esse processo nos últimos anos?

O São Paulo conseguiu mudar antes, mas não tanto quanto o Corinthians, e estagnou. E o Corinthians tem uma torcida maior. E entrou o Andrés Sanchez, alguém razoavelmente moderno, que não é nada demais, não é espetacular, não é um gênio, mas é muito melhor do que aqueles que estavam antes. Já o Palmeiras é inacreditável. O Palmeiras é o último, ainda não fez sua revoluçãozinha. O Santos fez agora, com esse presidente, deu um passinho a frente. O São Paulo agora, graças a Deus, caiu numa ditadura do Juvenal, então parou de ser aquele time tão eficiente, sem ir para a Libertadores durante vários anos. O Corinthians teve a mudança na parte de marketing e ainda calhou a mudança na televisão. Foi tudo muito rápido. A televisão passou a pagar muito mais, espetacularmente mais do que pagava. Começou a render mais do que antes. Teve a recuperação na Série B, que foi linda mesmo. Contratou um técnico bacana e teve a esperteza de deixá-lo lá. Calhou de ter muita coisa certa ao mesmo tempo. Fora de ter o apoio dessa torcida gigantesca.

O Palmeiras daria uma boa novela…

Uma daquelas trágicas, como Direito de Nascer. Novela cubana, de rádio. Nem o Belluzzo conseguiu dar um jeito…

O Luiz Gonzaga Belluzzo, por exemplo, representava um cara que veio da universidade, um outro saber. Mas ele também era um cara apaixonado. Você acha que um presidente pode assumir essas posturas?

Pode sim. Acho que ele teve um grande azar. Algumas contratações não deram certo e os principais jogadores se machucaram. Foi mais uma questão de azar. Mas depois disso começou a errar mesmo. Despediu o Jorginho, que vinha bem. Despediu o Muricy Ramalho, que é competente. Na hora dele fazer a revolução no Palmeiras, deu errado. Era como se a Revolução Francesa tivesse dado errado. Em vez da Revolução Francesa, virou a Intentona Comunista. Não deu certo.

José Roberto Torero é colunista da revista Placar e do jornal a Folha de S. Paulo. Foto: Max Rocha.

O que você entende por essa revolução nos clubes de futebol?

Encarar o futebol como negócio de uma maneira mais profissional, com um melhor aproveitamento das várias fontes possíveis de renda, menos corrupção. São coisas que ainda estão engatinhando, não são sensacionais, mas já aconteceu um pouco disso. A camisa não era nada antigamente, o torcedor gerava pouca renda. Hoje o torcedor já sustenta parte do clube e a camisa rende um bocado. Ocorreu um certo choque capitalista em alguns clubes, que saíram do mercantismo para um capitalismo razoável.

E o caso do Neymar, que permaneceu durante algum tempo no Santos, com o apoio de várias empresas. Você acha vai ser uma tendência ou um caso muito específico?

Talvez uma tendência. O Luis Fabiano voltou. O Pato voltou para o Corinthians. Vem ocorrendo um reimportação de jogadores muito grande. Lúcio no São Paulo. Fred no Fluminense.

Mas no caso de manter o jogador também, como era o exemplo do Neymar?

Acho que os clubes conseguem dar conta. Aumentou tanto a renda deles que alguns já conseguem. Não como o Neymar, um caso extremo, de milhões por mês, mas os clubes já conseguem segurar caras muito bons. A corrupção é um problema grave. O problema é que um dirigente corrupto ganha tanto vendendo um jogador para fora que não vai titubear.

Qual análise que você faz da contração de Neymar pelo Barcelona? Corre o risco de seguir o mesmo caminho do Robinho no exterior? De estar em um clube grande, mas cair no ostracismo na seleção brasileira?

Corre o risco. Mas menos que o Robinho. Neymar já vai mais consagrado, e para um time que tem um esquema de jogo em que ele pode se encaixar bem. Por outro lado, lá tem o Messi. Isso me faz pensar no Coutinho. Talvez ele fosse o segundo melhor jogador do mundo no começo dos anos sessenta. Mas deu azar e foi jogar no time do melhor, do primeiro do mundo. E não sei se isso foi totalmente bom para ele. Talvez, se ele estivesse no Palmeiras de Ademir e Dudu, tivesse feito mais sucesso. Talvez.

 

Confira a segunda parte da entrevista no dia 26 de junho de 2013!

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