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Juca Kfouri (parte 2)

Equipe Ludopédio 20 de abril de 2011

 

A polêmica mais recente do futebol brasileiro foi o dossiê de unificação. A perpetuação dos novos status de campeão vai depender da maneira que a imprensa irá lidar com a questão. A Placar, desde seu início, nunca considerou os títulos da Taça Brasil e do Roberto Gomes Pedrosa. Qual a explicação editorial para isso?

Adorei vocês tocarem nisso, mas foi a primeira ‘bola fora’ de vocês nesta nossa conversa (risos). É ótimo, pois assim posso mostrar para vocês um ranking que a Placar publicou em 1982. Foi o PVC [Paulo Vinícius Coelho] que se lembrou deste ranking. Eu tinha esquecido. Quando a Placar fez 12 anos, publicou o primeiro ranking do futebol brasileiro, conferindo aos quatro ‘Robertões’ os mesmos pontos dos doze Campeonatos Brasileiros até então. Menos para a Taça Brasil. Foi bom vocês tocarem nisso, pois eu não ia falar se não fosse perguntado. O que me irritou com o Odir Cunha [veja a entrevista dele para o Ludopédio: parte 1 e parte 2] e que me levou a escrever o artigo na Folha de S. Paulo (e eu não cito o nome dele), o Lance publicou uma parte do documento onde ele argumentava que a revista Placar deliberadamente tinha omitido a história anterior, como se a história do futebol brasileiro havia começado a existir só com o advento da revista. Senti-me pessoalmente ofendido, porque era uma infâmia. Mandei um email para ele. Respondeu que esse argumento não faz parte do documento. Perguntei se em algum momento ele disse isso a alguém. Ele afirmou que só quis dizer que a revista não tratou bem a história. Isso tudo por email. Posso mostrá-los. Disse ainda que não tivesse razão para ficar ofendido, pois ele não citara meu nome. Depois, li o documento e está lá, escrito em todas as letras. Escrevi uma coluna, sem citar o nome para ele não ficar ofendido (seguindo o mesmo raciocínio). Digo isso com a maior tranquilidade. Sabem por que fui trabalhar no DEDOC? Por que eu tinha um amigo (do tempo de colégio) que trabalhava lá e que quando a Placar ia surgir e precisavam de alguém, este amigo me indicou: “O Juca faz arquivo desde menino”. Aqui está minha pasta, meu arquivo de menino. Quase todas as notícias e recortes são do Santos F.C. e do Pelé. Por quê? Porque este era ‘o time’, apesar de eu ser corintiano. Tem coisas do Brasil bicampeão mundial de basquete. Olha aqui o Ubiratan nesta foto. Aliás, este era meu codinome na Aliança Libertadora Nacional (ALN), em homenagem a ele eu era o Bira. (Folheando a pasta…) Tem imagens do Pelé jogando no gol, mais Pelé, depois basquete, basquete, Santos campeão do mundo contra o Milan; aqui é a quebra do tabu do Corinthians contra o Santos; mais Santos, novamente Santos. Ou seja, eu era apaixonado pelo Santos. Nunca vi um time de futebol tão bom como aquele do Santos. As cinco Taças Brasil do Santos são um momento de ouro do futebol brasileiro e mundial. Não diminui em nada essas conquistas dizer que não se trata de um Campeonato Brasileiro. Mas obriga um pesquisador sério a dizer que estamos falando de coisas de espírito diferente. Não é dizer: “mas o Corinthians foi campeão paulista no tempo do amadorismo, com só quatro jogos”. Este argumento é secundário, utilizado apenas para exacerbar o raciocínio. O Campeonato Paulista com quatro jogos era o Campeonato Paulista Amador de 1922. A Taça Brasil não era o Campeonato Brasileiro, era a Taça Brasil. O Robertão era e não coloco em discussão os dois títulos do Palmeiras, um do Santos e um do Fluminense.

Juca Kfouri pega os arquivos de jornais que guardou. Foto: Equipe Ludopédio.

Para os mais novos, vale esclarecer: por que o Robertão pode ser considerado e a Taça Brasil não?

A Taça Brasil era um torneio disputado desde o início no formato de mata-mata, envolvendo os campeões estaduais do Brasil, que estavam longe de ser o que havia de melhor no futebol brasileiro. De melhor, tinha ali o campeão paulista, o campeão carioca, campeão gaúcho e o campeão mineiro. Tinha também o campeão do Sergipe, do Piauí etc., que não tinham nada a ver com o segundo melhor de São Paulo ou do Rio de Janeiro. O espírito era diferente. Eu brinco que vou começar a lutar para que reconheçam os dois títulos olímpicos do Uruguai como títulos mundiais, pois era o campeonato de seleção que tinha na época. Assim, o Uruguai é tetracampeão mundial. Mas o fato do Uruguai não ser tetracampeão mundial (bicampeão mundial e bicampeão olímpico) não deixa de dar ao Uruguai o mesmo status. Acredito que esta é a questão que deve ser compreendida. Onde essa discussão me pegou: posso divergir de você a vida inteira, numa boa, mas uma maneira honesta. O que me fez romper relações com o Galvão Bueno? Aliás, ele que rompeu comigo. Mas o que foi? O fato de eu ter escrito na Folha de S. Paulo que ele estava sendo intelectualmente desonesto ao defender o fim dos campeonatos de pontos corridos no Brasil e a volta do mata-mata sob o argumento de que se disputa por pontos corridos fosse bom a Copa do Mundo seria disputada assim. Falar isso na TV Globo, no meio de uma transmissão, dando 50 pontos de audiência, é de uma profunda desonestidade. Uma Copa do Mundo disputada em pontos corridos teria que durar o ano inteiro, afinal, são 32 seleções. Isso é impossível. Se é desonesto, paro de discutir com você. Agora, se vier discutir comigo com questões como: e as playoffs da NBA?; e as finais entre campeões de cada turno?. Bem, vamos discutir. Da mesma forma, esse dossiê da unificação transforma alhos em bugalhos. O ridículo da situação está posto a tal ponto que agora que a CBF reconheceu o que não quis reconhecer dois meses atrás no que diz respeito ao título do Flamengo de 1987, o primeiro pentacampeão brasileiro não é mais o Flamengo, mas sim o Santos. Na discussão se a Taça de Bolinhas é do São Paulo ou do Flamengo, agora ela é do Santos. Ah, mas irão dizer que a Caixa Econômica institui isso muito depois e era só para o Campeonato Brasileiro criado em 1971. Mas agora aqueles campeonatos também são ‘brasileiros’. Se eu fosse presidente do Santos pediria a Taça das Bolinhas. É isso: não foi uma condição honesta. Não citou meu nome, mas citou a revista que dirigi durante 16 anos e trabalhei desde sua origem fazendo pesquisa. E vem falar que eu desfiz deste período e conquistas da minha infância, responsável pela minha paixão pelo futebol? E afirmar que é coisa de corintiano ser contra? Então, ser a favor é coisa de santista? Onde já se viu?


Na entrevista que concedeu ao Ludopédio, Odir comentou que o dossiê foi muito combatido pelo fato de ter pouca visibilidade, de ser independente. Além disso, afirmou que não havia a possibilidade de ter um campeonato em outro formato na década de 1950, que não fosse a Taça Brasil.

Certamente, era possível ter, mesmo com as dificuldades de transporte, um campeonato brasileiro nos anos 50 do mesmo molde que tivemos a partir de 1970. O que, no entanto, não dá aos campeonatos da década de 1950 o mesmo formato dos campeonatos posteriores. Não estou desmerecendo os títulos dos Santos. Aliás, estou reafirmando: o Rio-São Paulo era mais importante que a Taça Brasil. Era mais difícil ganhar: os quatro grandes de SP contra os quatro do RJ. Era o que havia de melhor no Brasil. Tanto que a primeira Taça Brasil foi vencida pelo Bahia. Qual era o time do Bahia? O time do Santos você sabe. Conrado Giacomini mandou anteontem, agora com a abertura do acervo da Folha, uma declaração do João Mendonça Falcão, presidente da Federação Paulista, dizendo que o Santos não aguenta mais ganhar a Taça Brasil, pois o torneio já era pouco para o time. Tenho aqui esta declaração. Isso não aparece no dossiê.


Parte-se da ideia que há uma concepção idealizada de Campeonato Brasileiro: a fórmula atual. Então tudo será usado em comparação a este Campeonato? Por exemplo, se agora com o imbróglio do Clube dos 13 muda-se a fórmula atual do Campeonato. Muda a concepção?

Não. Pode até haver outro campeonato. Pode até mudar o nome do campeonato. Ai é aquela tal história: um era Copa União, outro era Copa João Havelange. Quero dizer para vocês o seguinte: qual é o Campeonato que reunia a nata do futebol brasileiro? Eu digo para vocês, objetivamente: no começo dos anos 50 era o Rio-São Paulo; a partir do começo dos anos 60 acrescem-se os gaúchos, os mineiros e os paranaenses no Robertão; e depois segue nos anos 70, com alguns campeonatos que são uns abortos da natureza, contra os quais passei a minha vida inteira brigando. Se você me perguntar o que foi mais importante: o Campeonato Brasileiro do Coritiba ou a Taça Brasil do Santos, é claro que foi a Taça Brasil do Santos. O Campeonato que o Coritiba ganhou, em uma final contra o Bangu, era um negócio muito maluco. Por exemplo, o Internacional, foi campeão invicto de 1979 e ninguém discute. Mas dos times de São Paulo, só participou o Palmeiras. Corinthians, o São Paulo e o Santos não se interessaram em participar, e preferiram disputar o Estadual. É só isso, é uma questão de exatidão. Estamos falando de melancia e estamos falando de laranja. Eu gosto mais de laranja do que de melancia, mas a laranja é menor, só isso.


E você manteria assim?

Para mim, a Taça Brasil é equivalente à Copa do Brasil.

Juca Kfouri tornou-se jornalista por profissão. Foto: Equipe Ludopédio.


E se pudesse escolher? Antes da unificação, manteria igual? Santos Tricampeão Brasileiro, Três vezes o Robertão… Diferenciando os três.

Exato. Eu, não sou um radical, como as pessoas dizem. Eu gosto da ideia de juntar o Robertão. Eu acho que o Santos é tricampeão brasileiro e que o Palmeiras é pentacampeão brasileiro. Fluminense é bicampeão brasileiro. Eu acho. Outro argumento para me sacanear, quando ele diz: “Ah, isso é para o Santos não passar o Corinthians”. Qual a maior rivalidade: Santos e Corinthians ou Palmeiras e Corinthians? Eu dou dois títulos ao Palmeiras numa boa. E igualo ao Corinthians. Quer dizer, é reduzir o debate. É pensar com a cabeça dele. O meu corintianismo, que é latente e indiscutível, não me impediu de ser o primeiro a denunciar a MSI e o Kia Joraabichian e de não poder ir a jogo do Corinthians, porque a patuléia dizia que eu era contra o Tevez, porque eu denunciava o dinheiro sujo.


Seria como se daqui 40 anos um novo dossiê fosse feito e colocassem a Copa do Brasil no mesmo patamar do Campeonato Brasileiro?

Sem dúvida. Exatamente isso. Não é a mesma coisa. Agora se você perguntar: “Você Juca, corintiano, qual diferença teve para você vibrar com o título do Corinthians de 2005 e o título da Copa do Brasil de 2009?”. Eu diria que vibrei muito mais com a de 2009, porque não houve MSI; porque não houve o rolo dos jogos anulados; porque não teve o pênalti clamoroso não marcado no Tinga. Vibrei muito mais em Porto Alegre, 2 a 2. Muito mais. Mas não é igual ao Campeonato Brasileiro. Só isso.


Você acha que é uma prerrogativa que não terá mais fim?

É claro. Porque isso é a contrapartida dos homens que dirigem o nosso futebol. Você acha que o Ricardo Teixeira está minimamente preocupado com a história do futebol? O que é de fato e o que não é? Não está nem ai. E o Pelé se presta a fazer aquela foto das seis medalhas.


E agora fica mais complexo com o reconhecimento do título do Flamengo de 1987?

É. Agora, para mim, nunca houve dúvida nenhuma que o Flamengo foi campeão brasileiro de 1987. E não é que eu reconheço os dois, como faz o PVC, por exemplo. O campeão legítimo de 1987 é o Flamengo. É um aborto essa história do Sport. E todo o Brasil assim o achou em 1987. Houve injustiça com o América e o Guarani? Houve. Pela classificação deles no ano anterior eles deveriam estar em 87. Por que não estavam? Aqui vai falar o leninista. Porque quando você faz uma revolução, uma ruptura, inevitavelmente você comete injustiças. Os injustiçados de então, porque não tinham massa, foram América e Guarani. Além do fato de que se fosse feito o Ranking dos 16 times mais bem colocados do futebol brasileiro eles não estariam entre os 16. Acrescento uma informação que é negada permanentemente: o Sport não estaria no Campeonato Brasileiro de 1987 se tivesse prevalecido o regulamento de 1986, que determinava que ao cabo do Campeonato os 24 primeiros jogariam em 1987. O Sport não se classificou entre os 24. Portanto não tem nenhum direito de pleitear o que estava pleiteando em 1987. Ocorre que em 1987 a CBF disse que não iria organizar o Campeonato, pois não tinha dinheiro. E quis mudar a regra depois que viu o sucesso da Copa União. Eu não agüento mais falar disso. Não sei se vocês sabem: a Taça, que é linda por sinal, foi feita pelo Carlos Fajardo. Uma das primeiras taças que o jogador pode levantar sem precisar de ajuda foi dada por Placar. Está na casa do Zico. Eu entreguei para ele quando se despediu do Futebol.

Juca Kfouri trabalha com jornalismo esportivo. Foto: Equipe Ludopédio.


Como você vê o título do Mundial de 2000 do Corinthians, que inicialmente foi uma experiência e depois passou a ser uma constância?

Se você perguntar quantos são os campeões do mundo de 2000, eu digo dois: o Boca Juniors e o Corinthians. Mas o Corinthians convidado? Sim, convidado, como agora têm sido convidados os clubes campeões dos países sedes. É absolutamente normal que isso ocorra. O grande problema de 2000 aconteceu com o Sr. Mustafá Contursi (ex-presidente do Palmeiras) que aceitou que o Palmeiras não fosse como representante como campeão da Libertadores e fosse o Vasco, sob promessa que no ano seguinte ele estaria independentemente de qualquer resultado. O Campeonato de 2000 da FIFA – laboratório – teria sido de fato uma coisa pouco séria, se por acaso o Corinthians não tivesse sido Campeão Brasileiro de 1999. Digamos que tivesse sido o Flamengo: por que o Corinthians representaria o Brasil em 2000 se o Campeão de 99 fosse o Flamengo? Mas por acaso o Corinthians havia sido bicampeão e era o representante do país sede. Com tudo isso, se você me perguntar se eu acho que o título do Corinthians do Campeonato Mundial da FIFA tem o mesmo valor do título do Santos contra o Benfica ou contra o Milan na Taça Intercontinental da UEFA e da Confederação Sul-americana , eu te diria que o do Santos tem mais valor. E te digo mais: acho que tem mais valor até do que esses recentes, que levam o Internacional a jogar contra o Mazembe e ser eliminado contra o Mazembe, mas que a gente sabe que não é reflexo de diferença de futebol; é dessas coisas que o futebol traz. Agora, o argumento de dizer que aquilo era um campeonato laboratório, ou que depois mudou: “em 2005 não era do mesmo jeito”. Se levarmos isso a ferro e fogo o Uruguai não pode ser considerado Campeão do Mundo de 1930, onde os países eram convidados, onde havia onze seleções. A Argentina não veio nem em 50, pois não quis. O que eu quero te dizer – de novo me aterei à questão jornalística – é que o nome daquilo ali era Copa do Mundo de 1930, promovido pela FIFA; o outro era 1º Campeonato Mundial de Clubes da FIFA. Ai alguém diz: “Pô, mas você quando te interessa usa o que é oficial, quando não te interessa não usa”. A CBF não reconhecia o Flamengo, reconhecia o Sport. E digo, vou repetir, a frase de um grande jurista uruguaio do qual me esqueço sempre: “Você deve sempre ficar com o que é do Direito, mas entre o que é do Direito e o que é justo, fique com o justo”. Entre o legal e o legítimo, eu fico com o legítimo. A CBF não tinha o direito de proclamar ninguém campeão depois de abdicar de realizar o Campeonato. Não houve isso com a FIFA no Mundial de CLUBES. Não existe essa polêmica.


Na sua opinião, a Unificação ajudou a alimentar a atual crise do Clube dos 13?

Sem dúvida. Foi rachando paulatinamente. E não é coisa da cabeça do Ricardo Teixeira. Para mim é coisa da cabeça do Rodrigo Paiva.


Como assim?

O Rodrigo Paiva é um cara inteligente, muito bem preparado, que exerce cada vez mais influência sobre o Ricardo Teixeira. Tirou o Ricardo Teixeira de algumas complicações, e acho que, maquiavelicamente, pensou isso, de maneira tal, a cindir aquele que haviam votado no Fábio Koff contra o Kleber Leite, então candidato da CBF. Olha como as coisas são paradoxais: se você me perguntar na eleição Koff-Leite com que eu ficava, eu diria com nenhum dos dois. O Koff foi uma decepção, nunca realizou aquilo que prometeu, nunca transformou o Clube dos 13 em liga. Não teria nenhuma razão para gostar do Kleber Leite, ainda mais ele representando o Ricardo Teixeira. Horroriza-me a ideia que o grupo do Ricardo Teixeira chegue a tal ponto de poder que até o presidente dos Clube dos 13 seja dele. Mas dialeticamente, pois é melhor ser dialético que paradoxal, eu não tenho dúvidas que em termos da modernização do futebol brasileiro teria sido melhor o Kleber Leite ganhar, sabe por quê? Com Kleber Leite, o Ricardo Teixeira topava fazer a Liga imediatamente. Sem o Leite, não. O Ricardo Teixeira quer pensar na Seleção Brasileira e na Copa do Mundo. Precisa de alguém da confiança dele para tocar os clubes. Não é o Koff; seria o Kleber Leite. É o que eu acho que vai acontecer agora: vai nascer a Liga. Eram 8, já são 10. Tem o Flamengo e Palmeiras, agora do Mustafá. Quem é importante que não é desses 10? São Paulo e Atlético Mineiro. O Galo vem correndo. O São Paulo acha uma solução: talvez o Juvenal não seja candidato e o São Paulo vem para a Liga. Eu acho que é isso que vai acontecer. E com a Globo.


A visão oficial foi dada?

Não é a visão oficial. A Globo vai ganhar essa parada. Hoje você terá cinco licitações diferentes: TV aberta, TV fechada, Pay-per-View, Internet e Telefonia. Antes era uma concorrência só, a Globo ganhava tudo e nem explorava algumas dessas vertentes. Agora não, haverá concorrência em tudo. É possível que a Globo ganhe tudo. Força para isso tem. São aquelas coisas que a gente precisa pensar direito: em qual emissora você gostaria de promover seu produto em horário nobre? Agora, tem o seguinte: a diferença não pode ser abissal. A Globo não pode oferecer 200, a Record 800, e a Globo ganhar. Agora se ela paga 500, as vantagens indiretas devem ser ponderadas.


Mas e o papel do CADE?

Mas o que o CADE fez está feito. Isso não tem retorno. A Globo não tem mais o direito de preferência. O que era uma excrescência no mundo da livre concorrência. Agora não tem mais direito de monopólio. Abriu o envelope: eu dou 500 o outro dá 501, leva o outro. Embora, ainda não sei, parece que a licitação haverá um mecanismo que se a diferença entre a melhor proposta e a segunda for de até 20%, haverá um segundo turno. Para se ter uma ideia, a Globo pagou 12 milhões de dólares por Pequim. A Record levou Londres por 60 milhões de dólares, com uma proposta da Globo de 48 milhões. Sabe quanto a Globo deu para o Rio? 180 milhões de dólares. O que Juvenal e Kalil estão pensando: falaram para a Record que a chance deles é agora, pois daqui três anos a Globo vem com um caminhão de dinheiro e leva de novo. Então não venham com 600, sabendo que a Globo dá 500. Venham com 1 bilhão.

Juca Kfouri trabalhou em importantes veículos esportivos do país. Foto: Equipe Ludopédio.


Você acredita que os campeonatos estaduais devem ser mantidos?

Não. Pois, por exemplo, o que acrescenta na vida dos corintianos o 27º título estadual? Sempre o problema do interior. Mas veja qual o público do interior? O interior não vai mais ao estádio. O interior mudou. Não é mais aquela coisa de quando o Santos ia jogar em Araraquara e a Fonte Luminosa ficava lotada. Mudou, pois o torcedor vê na televisão. Há outras coisas que concorrem com o futebol. E não há graça nenhuma para mim, como corintiano, ganhar do Noroeste. Claro que tem ganhar do Palmeiras, mas eu posso ganhar no Brasileiro. Eu prefiro ganhar do Flamengo a ganhar do Noroeste. Eu acho que deve haver um Estadual sem os grandes o ano inteiro aqui em São Paulo, com o Botafogo de Ribeirão, com Ponte Preta, com Guarani, com Comercial, com Noroeste, com São José, etc. É que eu estou pensando um Campeonato Brasileiro só aos domingos. Com uma Copa do Brasil, com quatro mil times, se for o caso, com todos os times profissionais do Brasil. E com a Libertadores e Copa Sulamericana disputadas paralelamente, também durante toda a temporada. É muito melhor que jogar em Mogi, Presidente Prudente, etc.


Mesmo com a alternativa que o jornalista Paulo Calçade oferece, de um Campeonato Estadual menor?

Eu acho que eu sou um cara que se tiver que negociar, eu negocio. Mas, continuo dizendo que não me comove nem um pouco ser Campeão Paulista outra vez. O que não significa que eu não tenha achado muito boas as finais Corinthians x Santos de 2009. Mas ai não é o valor do Campeonato Estadual: é o valor do Corinthians x Santos. Até na bolinha de gude. Mas o que me deixa irritado é que as pessoas falam: “a rivalidade estadual é muito maior que a nacional”. É verdade, mas eu mantenho a rivalidade estadual no Nacional. E posso estimulá-la ainda mais na Copa do Brasil e na Libertadores ou na Copa Sul-Americana, eventualmente. Mas os Estaduais ocupam tanto espaço que impedem os que estão na Libertadores de disputar a Copa do Brasil e impede que a Copa Sul-Americana seja disputada no segundo semestre.


Como ficaria para os demais Estados, além de São Paulo, o ajuste do calendário para o ano todo?

Quando haverá um time do Piauí na primeira divisão do Campeonato Brasileiro? Jogue o Campeonato Piauiense o ano todo. Com chance de jogar uma quarta divisão do Brasileiro, regionalizada, pois de outra forma não faz sentido. Vou ser franco. Quando caiu o Muro de Berlim, ele não caiu na minha cabeça de maneira tal, que eu tenha deixado de observar coisas óbvias. Mas quando eu vi cair o Muro e que ninguém da Berlim Ocidental queria ir para a Berlim Oriental, que o caminho era inverso, vi que havia alguma coisa errada nas coisas em que eu acreditava até então. Aí chego à conclusão, que eu lamento: o Capitalismo ganhou. E não posso admitir que, o Capitalismo tendo ganho, o Corinthians de Ronaldo Fenômeno, de 1 milhão por mês, vá jogar contra o Noroeste em Bauru, em um gramado esburacado, quando ele pode ir jogar contra o Flamengo no Maracanã. Quem pode sentar na mesa e quem não pode. Estou de acordo que tem que ter mesa para todo mundo, mas cada mesa é uma mesa.


Dificilmente os convidados serão sempre os mesmos?

Eu te diria, acreditando na boa gestão, que se eu pegar um time em uma cidade como São José dos Campos, que possui um dos mais altos IDH do Brasil, tem o ITA, a Embraer, etc., montar lá um time do tamanha do São José, jogando o Campeonato Paulista e a Terceira Divisão do Nacional, com o patrocínio do Supermercado São José, por exemplo, montando um time, e eu ganho um Campeonato da Terceira, aí eu bato na porta do Abílio Diniz e peço ajuda não mais ao Supermercado São José, e sim ao Pão de Açúcar, falando que vou jogar no Rio de Janeiro, em Minas Gerais, etc. Passará lá três anos nesse Campeonato, até chegar na Primeira Divisão. Chego à Primeira Divisão, vou na Embraer, na Volkswagen e falo que vou jogar contra os clubes grandes. E eu aqui, morador de Higienópolis, vou dizer “Pô, hoje tem Corinthians e São José no Pacaembu eu vou ver esse time que subiu em oito anos, que tem um jogador bom, tal. Vou ver”. E quando o Corinthians for a São José, o torcedor do São José vai, e o corintiano de São José vai também. Eu vou forçar a barra um pouco, mas o Santos era isso que exemplifico até surgir o Pelé. O Santos havia sido Campeão Paulista em 1935 e nunca mais. Ai foi Campeão em 55 e 56, e ai começaram a olhar e se perguntar “O que está acontecendo com o Santos?”. E ai apareceu o Pelé, e ai ninguém mais perguntou o que estava acontecendo com o Santos. Todo mundo queria ver o Santos. Mas eu acho que é uma questão de gestão, de você calcular os passos conforme o tamanho da sua perna. Eu não tenho dúvida nenhuma, que, a exemplo do que acontece na Itália, onde o futebol se concentrou no Norte – o Napoli às vezes aparece -, no Brasil, com o futebol bem administrado, de 20 o Estado de São Paulo põe 12 times no Brasileirão. Põe um time de Ribeirão Preto, de Campinas, de São José, pois é onde está a riqueza. Mas estou falando de gestão profissional, da qual nós estamos longe.

 
Com o perdão do trocadilho, pondo o Ronaldo na balança, como você avalia os dois anos dele no Corinthians?

Eu não tenho dúvida nenhuma, que como corintiano, sempre terei o maior orgulho de dizer que vi o Ronaldo jogar com a camisa do Corinthians. Um dos maiores jogadores do mundo de todos os tempos. Aliás, embora eu tenha visto o Garrincha com a camisa do Corinthians, não foi motivo de orgulho, mas de pena. Tinha carinho, paixão, afeto pelo Garrincha, era o segundo maior jogador da minha vida, mas o Garrincha já veio para o Corinthians já em fase avançada de alcoolismo. Já era muito mais digno de pena. E o Ronaldo teve um ano de 2009 no Corinthians absolutamente satisfatório. Agora, acho que o Corinthians ficou muito dependente dele, acho que o final foi melancólico, não há como disfarçar isto. E lamento que ele, a exemplo do Romário, do Pelé, se deixe ser usado por essa gente como eles são.


O que você espera agora do Ronaldo Marketeiro e do Corinthians empresa?

Eu acho que o Ronaldo Marketeiro vai se juntar ao que tem de mais atrasado. Não vai ser um elemento de modernização. E acho que o Corinthians está a anos luz do que o Corinthians deveria estar. O Corinthians não ser alguma coisa parecida com o Barcelona é indesculpável. O futebol em geral, mas o Corinthians principalmente, esse sentimento Corinthians. Essa coisa que o Corinthians tem, que parece com a Catalunha, mas não se transforma em poderio, em pujança. “O bando de louco”. Essas coisas que só acontecem com o Corinthians. Essa energia diferente.

Vista do Pacaembu. Foto: Equipe Ludopédio.


Dentro dessa lógica do futebol profissional, e tomando o Ronaldo como gancho, fica a impressão que quanto mais profissional o futebol for, mais a paixão fica de lado. E o choro do Ronaldo, em sua despedida, foi comentado como uma jogada de Marketing. O que você acha disso?

Acho que o choro foi sincero. É aquilo da primeira morte no futebol. Eu ouvi o Zico falar isso: “Meu medo é parar na Avenida Nossa Senhora de Copacabana e ninguém mais me reconhecer”. Falei “Galinho, você está maluco, você vai morrer e as pessoas vão lembrar de você”. A gente não tem ideia do que seja isto. Ter o seu nome gritado, por 40, 50 mil pessoas toda semana. Em regra é o atleta que tem isso na história da humanidade. O Ronaldo falou aquela bobagem do hipotireoidismo. Não precisava. Foi para deixar todo mundo com má consciência de ter brincado com o peso dele, mas eu acho que o choro foi sincero. Eu acho ele um bom personagem, acho um personagem humano. Vou falar com muita franqueza: mil vezes o Ronaldo e seus travestis do que o Kaká e sua religiosidade. Prefiro muito mais uma figura como o Ronaldo: ser humano, contraditório, etc. Lamento ele se deixar usar, acho que essa gente não tem a noção do seu poderio. Não tem noção, apesar de serem bajulados. Há uma fotografia que a Folha publicou com o Alckmin e o Ricardo Teixeira de cócoras e o Ronaldo sentado como se fosse o Rei na poltrona. Vale mais do que mil palavras. Essa é a realidade, só que eles não exercitam essa realidade. Ele é o soberano, mas faz papel do bobo da corte, e se deixa usar. Agora, sobre o profissionalismo, vou te dizer o seguinte: para mim, o bom gestor do futebol é aquele profissional frio, gelado, capaz de exacerbar as últimas potências da paixão. Esse é o bom profissional. Não é o cara que transforma o Pacaembu na Sala São Paulo, como é a tendência internacional dos estádios virarem estúdios, onde você assiste tudo com muito conforto, mas tudo muito sem alma. O cara que for trabalhar nessa área tem que ter essa capacidade. Eu acho muito complicado, por contraditório que pareça, que o cara que vai tocar o Palmeiras seja corintiano. Tem que sentir o que é ser palmeirense, tem que saber o que é ser palmeirense, para poder exacerbar. Ele tem que fazer isso com frieza, calcular isso.


Quando você fala isso vem à mente a figura do Luiz Gonzaga Beluzzo (ex-presidente da Sociedade Esportiva Palmeiras), que tem esse perfil. O que se perdeu, enquanto oportunidade na gestão dele a frente do clube?

Em relação ao Beluzzo, para ser absolutamente leal, digo o seguinte: o insucesso do Beluzzo me convenceu que, se eu fosse presidente do Corinthians, eu fracassaria igual a ele. Eu não me acho melhor do que ninguém, conheço bem o Beluzzo, sei da formação do Beluzzo. Ao ver o Beluzzo dizer “vamos matar os Bambis”; ao ver o Beluzzo abrir os cofres do Palmeiras para trazer não sei quem fosse do jeito que trouxe; ao ver o Beluzzo, pela ideia do Estádio, começar a demolir uma coisa sem ter certeza do que vai entrar no lugar vai terminar; ao vê-lo ser responsável pela volta do Mustafá, eu penso “acho que eu iria fazer a mesma coisa”. Eu iria fazer tudo contra aquilo que eu digo. Só me resta dizer isso.

 
O Ronaldo é o ícone da geração do futebol globalizado, empresarial?

Deixa eu te falar uma coisa. Outro dia escrevi uma coluna sobre o fenômeno pós-Pelé, em qual eu listei 40 jogadores considerados gênios. Desses 40, certamente há 15 que ainda são mais gênios. Desses 15, eu acho que tem 4 que são realmente fenômenos, capazes de parar o mundo. O Garrincha poderia parar o mundo, mas ele não viveu em um mundo que ele pudesse parar. Pelé ainda viveu. Ele parou o mundo em sua despedida pelo Cosmos, fazendo o gol mil em 1969, que foi tão visto quanto a chegada do homem na Lua. Depois, Maradona, Romário e Ronaldo, esses três. Como fenômeno de Marketing, não há ninguém igual ao Ronaldo. Ai você vê que coisa maluca – tomara que isso no Brasil não aconteça: o Ronaldo foi ídolo de torcidas antagônicas; Real e Barça, Inter e Milan. Saiu mal dos quatro. Ronaldo era ídolo do Flamengo. Saiu do Flamengo do jeito que saiu. Ronaldo quase saiu mal do Corinthians, quase batem nele. Houve um momento em que me perguntei onde ele iria viver. Tenho a sensação que já passou a bronca; que a torcida do Corinthians será carinhosa com ele. Tomara que sejam, acho que ele merece. Mas nesse aspecto do popstar, não há ninguém como ele. Eu conheci o Ronaldo na Copa do Mundo de 1994, não o conheci jogando no Cruzeiro. Eu era diretor da Placar, que na Copa de 1994 já não eram mais semanal e que se planejou para fazer uma revista a cada jogo do Brasil. Quando saiam as revistas, nós dávamos exemplares para os repórteres, para o Parreira e outro para o Romário. E um dia, chegaram as revistas, estava acabando o treino do Brasil, e o Ronaldo era o último a sair. E eu com uma revista na mão o chamei e ele veio. Falei para ele entregar para o Romário e disse “ai de você se não entregar, que amanhã eu vou cobrar. É o seu tio Juca que está mandando”. No outro dia perguntei pro Romário se ele havia dado, que confirmou que sim e ainda falei para o Ronaldo: “depois que o Romário ler, você pode ler”. Em 1998, chego em Paris, primeiro treino da Seleção Brasileira está lá o Ronaldo cercado de gente. Eu me aproximo e ele não sabia quem eu era. Me apresentei para ele. Ele estava longe e tal. Só não foi a última vez que falei com ele, pois ainda falei em uma Sabatina da Folha, em que fui um dos sabatinadores. Mas ficou absolutamente impossível chegar perto, como se fosse o Michael Jackson, e o que me chamou atenção na Copa do Mundo da Alemanha, em 2006, foi isso. A minha sensação é que eu estava cobrindo festival de Rock n’ Roll. Que jogador de futebol virou tudo popstar. Tudo tem assessor. Todos têm o mesmo discurso, um discurso decorado. Todos são perfumados. Você não consegue mais pegar um cara saindo do treino e pode fazer duas perguntas. Eu acho muito chato que seja assim. Eu acho que desumanizou demais, ficou muito distante, muito pasteurizado, mas é a realidade que se vive hoje.


Quase 30 anos depois, em sua opinião, qual a importância do movimento da Democracia Corinthiana? E se houve algum legado daquele movimento? Qual seria a relação dela com a Copa do Mundo no Brasil?

Infelizmente eu acho que não houve legado. É uma baita referência. É um momento em que o Corinthians se transforma em um clube nacional. Até novela da Globo o Corinthians vira. Esse momento é daqueles raros momentos da história que às vezes acontecem de juntar figuras sui generis no mesmo lugar e na mesma hora. Juntar o médico de Ribeirão Preto e o negro com espírito de liderança, com o moleque, meio marginal, com espírito libertário; com um cartola que vinha da USP, que sem saber lidar com aquilo, mas com uma ideia de gestão de pessoas, de administração de conflitos. Estou falando de Sócrates, Wladimir, Casagrande e Adílson Monteiro Alves – que depois se perde, mas naquele momento tem uma função essencial. E com algumas figurar periféricas importantes, como, por exemplo, o Edu, que não é devidamente homenageado, mas o Edu era casado, não era obrigado a concentrar, mas concentrava, pois tinha duas crianças pequenas que choravam de noite. Vocês conhecem, provavelmente, está na trilogia do Isaac Deutscher, na biografia de Trotsky, de como uma caçada de patos mudou a história da humanidade. É como aquilo: de como o encontro de quatro pessoas em um Corinthians, em uma situação absolutamente vexatória, transforma o Corinthians no time da moda, bicampeão paulista, com um time inferior ao São Paulo, mas com uma ideia na cabeça, que infelizmente foi encerrada pelo reacionarismo do futebol, a ponto do Adílson ter perdido a eleição para o Roberto Paschoa, com o Corinthians não sendo tricampeão por causa de um gol, no qual perdeu do Santos. Dias depois tem a eleição. É o caso de uma eleição em que um presidente foi eleito, e minutos depois tem que sair do Corinthians pelas portas dos fundos, pois a torcida invade para bater, indignada com a derrota da Democracia Corintiana. Mas que infelizmente não deixou legado, não há nem resquício daquilo. Democracia Corintiana teve momentos de raríssimo brilho. Ela é um movimento inteligente, bem humorado, capaz de ridicularizar inclusive o conservadorismo da imprensa esportiva, que em sua maioria não apoiava. A Democracia, um belo dia, começou a ser criticada, pois os jogadores se apresentavam para treinar muito mal vestidos; ai eles resolveram se apresentar como se fossem jogadores europeus: de paletó e gravata. E era pior vê-los de paletó e gravata do que de bermuda e camiseta, de tão mal ajambrados eram todos. Democracia Corintiana ia tomar cerveja no Bar da Torre no fim do treino, para horror da imprensa reacionária. E o Doutor Sócrates gozava: o jogador que sai do treino e toma duas cervejas e vai para casa é melhor do que aquele que vai para casa depois do treino e toma meia garrafa de cachaça, que é o que ele gosta. A imprensa não percebe nem isso, que na verdade, os jogadores estão se submetendo ao controle dos outros, estão fazendo tudo à vista, e quando se faz à vista, se faz moderadamente. Democracia Corintiana teve a coragem de entrar com uma faixa escrita “Ganhar ou perder, mas com Democracia”. E teve ainda a felicidade de ganhar dois Campeonatos Paulistas seguidos, em um momento em que o Brasil ia começar a Campanha das Diretas; em um momento em que a Rita Lee, corintiana, brilhava e o time ia junto; e que um presidente que era para ser meramente um testa de ferro resolve honrar as calças, que era o Valdemar Pires, que deveria ser o testa de ferro do Vicente Matheus, mas resolve assumir a função dele. Pensar na Democracia Corintiana e pensar na Copa do Mundo faz todo o sentido quando a gente não vê nenhuma democracia na gestão da Copa do Mundo. A ponto de no país dos jogadores de futebol, o presidente do Comitê ser o mesmo da Confederação Nacional, e não ser um Platini, um Beckenbauer. Isso dá a medida de como a estrutura é autoritária e conservadora.


Em um exercício de futurologia, o que podemos esperar da Copa de 2014? Qual o cenário? Vai ser uma Copa popular? O europeu virá para cá ou não, do jeito que não foi à África do Sul?

Veja bem, na África do Sul houve distribuições de ingressos. Eu acho o seguinte: há um modelo agora que está muito claro e que consagrou-se ainda mais com Rússia e Catar. A FIFA quer quem lhe dê mais moeda, e ai seja o que deus quiser. Será o que deus quiser. Para mim está claro isso. E se dirá no discurso final que esta foi a melhor Copa do Mundo de todos os tempos; só a próxima será melhor do que essa. Basta ver o livro do Jennings. A FIFA monta uma comissão anticorrupção com os cartolas que são acusados de corrupção em seus países. Eu acho que a Copa não será popular, na medida em que os preços impedirão que seja popular. Acho que todos nós temos profundas desconfianças sobre a curiosidade do torcedor brasileiro de ver um jogo Coréia do Sul x Nigéria; Paraguai x Japão. Nós vivemos uma ilusão, que gostamos de repetir: “Brasil, o país do futebol”. O Brasil não é o país do futebol. A Inglaterra é mais país do futebol que o Brasil; a Argentina é mais país do futebol que o Brasil, entre outros. Se você pegar as pesquisas dos tamanhos das torcidas, você vai ver sempre, em primeiro, um item com gente que não se interessa por futebol; depois vem Flamengo, depois vem Corinthians, depois vem São Paulo. Se você pegar na Argentina é primeiro Boca Juniors, River Plate, e depois gente que não se interessa por futebol. Nossa ilusão ocorre exatamente por causa do que acontece no Brasil na Copa do Mundo, que virou uma festa de confraternização das famílias, uma coisa integradora. Mas de gente que não sabe distinguir o impedimento, embora os bandeirinhas também não saibam. Mas nós não somos um país que reverencia a liturgia do jogo, como o inglês é capaz. Nós não somos um país capaz de abrir um Campeonato Brasileiro com o mínimo de imponência, de compostura, de haver o jogo inaugural. Nas mãos de quem está (a Copa do Mundo), só poderei me surpreender se der tudo certo. Como eu posso acreditar que estou vendo o Maracanã ser reformado pela quarta vez. Reformaram para o Pan, estão reformando para o Mundial e provavelmente irão reformar para a Olimpíada depois. Por 1 bilhão. Ai eu aprendi que reformar custa mais caro que construir um novo.


É de se esperar que os estádios serão empurrados e empurrados, até o momento em que não haja licitação?

Passa ser em regime de urgência. Pois obras emergenciais não precisam de licitação. É a faca no peito da viúva. Pior será a Olimpíada. Pois Copa do Mundo no Brasil, evidentemente que faz todo sentido, se você pensar que um país pentacampeão tenha uma Copa. Mas em um país sem nenhuma tradição olímpica, você ter a Olimpíadas que teremos. É aquilo do Soccernomics de novo: Barcelona foi um bom anúncio, Atenas foi um péssimo anúncio. Montreal pagou as Olimpíadas até Junho do ano passado, 30 anos depois. Aqui nós vamos pagar.


E o nosso grande projeto esportivo olímpico chama-se Segundo Tempo.

Exatamente. Não sei se vocês chegaram a ver. Havia gente dizendo em dar investimento em halterofilismo, lutas marciais, etc., para fazer o maior número de medalhas. Imagina o brasileiro torcendo por halterofilismo.

Juca Kfouri. Foto: Equipe Ludopédio.


O jornalista Andrew Jennings, no programa Bola da Vez, da ESPN Brasil, apontou o dedo para todos e disse “Vocês tem a faca e o queijo na mão e devem dizer para a FIFA que as coisas devem ser do nosso jeito”…

Vou te contar um episódio, para você ter uma ideia de como nós somos “bunda-moles”. Dois anos atrás eu fui a um aniversário de um amigo, do Sr. José Luís Portella, que a época era Secretário dos Transportes Metropolitanos do Estado de São Paulo, em um restaurante. Lá chegou o Governador José Serra e sentou-se à mesa onde eu estava. Conversa vai, conversa vem, eu falo para ele: “Governador, porque o senhor não faz valer o lema de São Paulo: ‘Non ducor duco’ (Não Sou Conduzido, Conduzo)? Por que o senhor não fala isso para o Ricardo Teixeira? Por que não fala que a Copa do Mundo em São Paulo será do jeito que nós queremos ou não vai ser?”. Ele vira-se para mim e diz: “Porque se eu faço isso e ele diz que não vai ser, no dia seguinte o Estadão e a Folha me demolem”. Eu disse para ele que eu tinha a certeza do inverso, que ele ganharia eleitoralmente dentre os paulistas se falasse que querem nos impingir uma Copa que nós não temos a obrigação de fazer. Não tenho dúvida que ganharia eleitoralmente. Ele acha que não. Entenda o seguinte: o Jennings tem razão ao cobrar, mas também nós temos que falar uma coisa a nosso favor e contra todo mundo. A FIFA impõe as suas regras pelo mundo afora. Na Alemanha, o Partido Verde quase foi à loucura quando descobriu que a cerveja que seria vendida nos estádios não era a cerveja alemã, mas sim a Budweiser, pois ela é patrocinadora da Copa do Mundo. Quando você se candidata a receber a Copa do Mundo, você entrega junto a sua soberania por seis anos: nenhum imposto sobre tudo o que diz respeito à Copa do Mundo; um regime especial para os visitantes VIPs da FIFA; uma polícia especial da FIFA. Em2010, eu fui interrogado pela polícia da FIFA, em Johanesburgo, quando o meu cofre do hotel foi furtado. Fui para corte em Joanesburgo, e o juiz queria que eu ficasse mais 15 dias para depor, mas eu não podia. Ainda disse que eu estava obstruindo a justiça. Isso com os três suspeitos do crime olhando para mim na frente do juiz, e os três sabendo onde eu estava hospedado. Mas enfim, é assim, você entrega a tua soberania. Não somos só nós. Quando o João Havelange diz que a FIFA tem mais poder que a ONU, é verdade. Tem não só mais países filiados, como também tem mais poder. Não tenham dúvida de que o mundo segue mais as determinações da FIFA do que da ONU.


Tal como o Corinthians, a FIFA não consegue vender todo o potencial do futebol?

Será? Honestamente não sei te dizer. Eu não sei se a FIFA hoje não fatura mais que a NBA. Proporcionalmente, é claro.

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