16.6

Leda Costa (parte 2)

Equipe Ludopédio 26 de março de 2017

Leda Costa é doutora em Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Defendeu a tese “A trajetória da queda. As narrativas da derrota e os principais vilões da seleção em Copas do Mundo“. É pesquisadora vinculada ao NEPESS (Núcleo de Estudos e Pesquisas Sobre Esporte e Sociedade – UFF, Universidade Federal Fluminense) e Editora-chefe da Revista Esporte e Sociedade. Organizou o livro “Enquanto a Copa não vem. Memórias e narrativas sobre futebol“, publicado pela EdUFF, em 2013, que reúne a produção de importantes pesquisadores, visando lançar sobre o fenômeno futebol uma perspectiva que abarque diferentes áreas do conhecimento. Possui o Blog Caravana de Boleiros em que narra suas visitas a diversos jogos, sobretudo, aqueles fora do circuito mainstream do futebol.

Foto: Sérgio Giglio
Leda Costa. Foto: Sérgio Settani Giglio.

Segunda parte

Quais são seus projetos após o doutorado? Você está num pós-doc em que discute a relação do futebol com a mídia. Como você tenta retomar algumas discussões que o próprio limite do trabalho de doutorado não dá conta? Algo ficou e vai reaparecer agora ou está tentando trazer um outro olhar para a questão da mídia? Qual é seu projeto neste momento?

O que fica do meu doutorado são as várias produções de artigos e publicações em livros sobre como a imprensa esportiva dialoga com as narrativas ficcionais e, especificamente, com o melodrama, as estruturas melodramáticas e folhetinescas. Parti de um questionamento de que a imprensa faz uso, sim, de artifícios narrativos para chamar a atenção do leitor, captá-lo, dimensionar o fato e fazer sua manchete. Então, questionei essa pretensa neutralidade da imprensa esportiva e parti do princípio de que ela é uma das grandes fomentadoras do imaginário futebolístico a partir do uso desses artifícios narrativos. Peguei como exemplo algumas manchetes que dialogam com a hiperbolização da fala. Tem uma manchete, por exemplo, d’O Globo de quando o Botafogo foi campeão em que havia uma foto da torcida no Maracanã e um balãozinho, tipo de quadrinhos, dizendo: “Vice é o Cuca!”. Isso pra mim não é uma manchete que posso chamar de neutra. Quem fez aquilo ali o fez pensando na maneira como o torcedor se comporta, no tipo de pensamento que o torcedor tem, no tipo de fala típica do torcedor, e ele está pensando: “Quem ver essa manchete vai comprar.”. Aí tenho de me lembrar de uma manchete do Lance que me cativou, de quando o Vasco se classificou para a Libertadores contra o Palmeiras: “Devoradores de porcos!” (ou algo parecido). Eu tenho esse Lance até hoje, porque, de fato, isso cativa. Por isso, é interessante pensar que não é uma questão de baixo para cima, há uma sedução, há leitores que querem aquilo. Então, dei continuidade com isso, que é um assunto que adoro.

No meu pós-doutorado, eu mudei um pouco de enfoque, mantendo a ênfase na questão da importância da mídia no futebol. Meu projeto de pós-doc nasceu da Caravana de Boleiros, de minha ida a jogos que eu chamo de não-mainstream. São jogos que não fazem parte do circuito espetacularizado que chama a atenção da TV. Foi um projeto que começou de maneira muito informal, que era basicamente visitar jogos e estádios que não aparecem na TV, tais como os do Olaria, Bonsucesso. Enfim, visitar esses jogos, estádios e bares ao redor. Era muito informal, uma coisa pessoal e que resolvi transformar em blog para compartilhar isso, porque encontrei muitas coisas interessantes. Daí comecei a perceber que era um ambiente diferente, tinha formas de torcer diferentes, formas de jogar diferentes, e pensei: “Dá para sair um projeto disso.”. Levou bastante tempo, mas veio a ideia de pensar algumas torcidas, não todas, que torcem nesses ambientes. Assim, meu foco foi para a torcida e não para o clube.

No meu caso, eu escolhi a Movimento de Castores da Guilherme, que é a torcida do Bangu, para pensar essas torcidas como formas de uma manifestação da contracultura no futebol. Vou dialogar com a contracultura da década de 1960 até os dias de hoje, pensando na possibilidade da existência de manifestações contraculturais. Entendo a contracultura, necessariamente, como uma oposição às culturas hegemônicas que tentam se tornar predominantes. No caso, a cultura hegemônica no futebol é o futebol espetáculo. São torcidas, portanto, que se voltam contra o futebol espetáculo e adotam o slogan “não ao futebol moderno”. É um questionamento frontal às tentativas de homogeneização, que de tanto que a gente vê na mídia e, principalmente, nas estruturas das novas arenas. Então, eu quero investigar essa torcida especificamente. A Castores tem uma especificidade razoável, é composta em sua maioria por jovens, os quais nem todos torcem pelo Bangu, mas têm um apego muito ideológico ao torcer pelo Bangu.

Por quê? Porque torcer pelo Bangu significa uma identidade autêntica do torcer, e isso vai ser um tema importante para mim. Há uma disputa de autenticidade que existe muito entre esses torcedores que adotam o “não ao futebol moderno”. Quem torce mais? Quem é o mais verdadeiro? Eles têm faixa do tipo: “Não torço para o time da mídia”. Nos cânticos, eles enfatizam o fato de torcerem para um time pequeno. No caso das Castores da Guilherme, eles orgulham-se de terem sido fundados num jogo em que o Bangu perdeu. Eles têm uma relação com a derrota diferente. Eles dão um significado para a vitória diferente. O sonho deles é a ida do Bangu para a Série D. Isso seria um grande momento. Eles dão um significado diferente à vitória se comparados a um palmeirense, por exemplo. Para um palmeirense vitória é ganhar a Libertadores, a Copa do Brasil, já para muitos torcedores do Bangu ir para a Série D seria fantástico. Então, diferentes experiências do torcer, da vitória, da derrota, do que é estar próximo de um jogador, do que é estar em um estádio que não é uma arena, são deliberadamente buscadas. O que isso significa e como está em diálogo com outras formas de manifestação da juventude que a gente pode chamar de contracultural, tal como o movimento vegano? Muitos torcedores são contra, também, o que chamam de uma predominância do neoliberalismo, que estaria corrompendo o futebol, tornando-o não autêntico.

Eu fiz uma apresentação aqui no NEPESS (Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Esporte e Sociedade – Universidade Federal Fluminense) e o encaminhamento que darei a este pós-doc, que está sendo desenvolvido na UERJ, na pós-graduação de Comunicação Social, sob supervisão do Ronaldo Helal, é direcionar um pouco para essa disputa no que se refere a essa ideia de autenticidade, que é o que mais gera ambiguidade. O que é autêntico? Em alguns discursos desses torcedores, essa autenticidade gera um tom opressor gigantesco. Você não pode fazer um monte de coisas. A Castores da Guilherme não foi ao jogo Bangu e Portuguesa-RJ na Arena Botafogo. Eu estranhei quando lá estava, olhei e tinha apenas a Bangoró, mas não a Castores. No momento pensei: “Que estranho!”. Depois fui ao Facebook e descobri por quê. Porque se chama Arena Botafogo. Na internet escreveram com palavrão: “Foda-se a Arena!”. Por isso não foram. Então, existe um tom autoritário que é muito típico de movimentos alternativos e contraculturais. Os hippies em algum momento foram muito autoritários, os Novos Baianos em grande medida falam disso, como aquela comunidade hippie que eles criaram teve um momento que foi algo muito sufocante, eles não podiam fazer nada senão não eram mais hippie. Se comprasse fralda não era mais hippie, se tomasse remédio não era mais hippie… Fica uma coisa sufocante, e isso é uma grande ambiguidade que passa por esses torcedores.

Nesse sentido, pensando nos extremos desses posicionamentos, esses torcedores acabam gerando ou reproduzindo diversos preconceitos que estão postos na sociedade? Por exemplo, você, mulher, vai sozinha a esses estádios, que são ambientes majoritariamente masculinizados. O que esses ambientes brotam no olhar da pesquisadora?

Esses ambientes que eu chamo de não-mainstream são muito amplos e variados. Nesse sentido, parafraseio o meu colega Gustavo Bandeira e penso este lugar da seguinte maneira: eu amo e odeio estar no estádio. Por quê? Porque você consegue ter experiências extremamente interessantes e outras experiências bastante negativas, como tive em diversos momentos. A proximidade desse ambiente não-mainstream com os jogadores gera uma permissividade de xingamentos e de manifestações homofóbicas e racistas impressionantes, tal como vi recentemente no jogo do Serrano, clube de Petrópolis, com o Duquecaxiense. Eu presenciei isso e estou pensando como vou escrever sobre o assunto, porque é muito delicado. Estive no estádio e fui com toda a expectativa de conhecer o Atílio Marotti, um jogo da Série C do Campeonato Carioca, ou seja, a consagração de quem gosta de futebol alternativo. Cheguei lá, achei bacana, bonito, e tinha venda de bebida artesanal, a ponto de você até se iludir com essa ideia de autenticidade, sentindo-se: “Estou num lugar autêntico!”.

Quando começou o jogo, percebi que havia uma implicância excessiva com o goleiro. Começaram a chamá-lo de Steve Wonder que me inicialmente me pareceu um referência ao fato de o goleiro ser negro. Tinha aquele grito “Biii-chaaa” lá também… Até que fui para um canto atrás do goleiro e aí desandou mesmo, porque um grupo fazia claros xingamentos racistas na direção dele. Um disse: “Volta pra jaula!”. Outro: “Graças a Deus tem grade aqui, senão ele iria atacar a gente.”. E eu cheguei a questionar: “Vocês não acham que estão tendo um comportamento racista, não?”. Falei com certo medo, por estar sozinha e por não dar para bancar a heroína em tudo quanto é lugar. Um dos caras replicou: “O que você queria que eu fizesse, o chamasse de ‘meu amor’?”. “Não.”, respondi. E eles continuaram xingando demais aquele menino. Tive muita vontade de entrevistá-lo no fim do jogo. O interessante é que o Serrano tem jogadores negros. O artilheiro do Serrano é negro. Outro xingamento feito em demasia era: “Isso aqui não é Baixada, não! Aqui é Petrópolis, cara! Baixada só tem ladrão, aqui tem gente boa.”. Ouvi cada absurdo dentro daquele estádio que pensei: “Nunca mais vou frequentar estádio.”.

Esses fatos também relativizam essa ideia de que, se você sair do ambiente mainstream, será uma beleza, tudo muito romântico, lindo. Não! Tem coisas feias lá. Eu já fui à Copa das Favelas, em Bangu, no estádio do Céres, onde nunca tinha ido. Assisti a um jogo de futebol feminino, e nunca ouvi tanta barbaridade na minha vida! Coisas gritadas na direção das meninas… São falas que não dá para reproduzir de tão horríveis que eram. Então, esses espaços não-mainstream não são como muitos torcedores idealizam. Aí é interessante questionar o que muitos chamam de “futebol moderno”. Não gostar do “futebol moderno”, significa o quê? Significa buscar algum “futebol tradicional”, mas o que se entendem por “futebol tradicional”? O homofóbico, o racista? Esse slogan “não ao futebol moderno” surgiu na Itália: “no al calcio moderno”. Ele tem origem racista e surgiu por conta do excesso da imigração de jogadores. E foi, anos depois, apropriado aqui no Brasil como símbolo de libertação. Então é válido pensar como se dá esse processo de adaptação, de interpretação de certos fenômenos em contextos diferentes.

O mais importante é que não é possível a pretensão da certeza: “Isso é bom e isso, isso é ruim.”. Depende. Estar nesses estádios pequenos é extremamente delicioso, proporciona a mim e aos jogadores – ou melhor, aos jogadores nem tanto, pois acho que eles gostariam de estar no Maracanã –, mas aos torcedores proporciona experiências muito interessantes, como invadir o gramado ao fim do jogo e uma série de coisas que o futebol mainstream não permite. Mas ele não está absolutamente livre das mazelas que a gente vê em diversos outros lugares. É essa complexidade que vai me dar um baita trabalho, e será muito bom.

Qual o papel das federações e da CBF no combate ao racismo no futebol? As ações que promovem atingem os objetivos?

Não sei dizer ao certo qual o papel da CBF no combate ao racismo. Muitas federações fazem campanhas, porém também não sei dizer qual o resultado dessas ações. Por outro lado, o caso Aranha e a eliminação do Grêmio da Copa do Brasil, em 2014, após decisão do STJ me pareceu muito significativa no que se refere a possibilidade de se fomentar políticas de punição e prevenção ao racismo. Mas não é fácil em se tratando de um país como o Brasil que tem certa dificuldade em reconhecer a presença do racismo arraigado no cotidiano. O Relatório Anual da Discriminação Racial no Futebol 2015 mostrou um aumento nos casos de racismo no futebol, mas em grande medida notáveis porque também aumentou a quantidade de denúncias.

Muito do que sabemos sobre racismo no futebol nos chega por conta dos flagrantes da televisão. Penso que a questão é mais grave, porque há inúmeros jogos que não são transmitidos, como é o caso daqueles que costumo frequentar aqui no Rio. Por isso, creio que o racismo no futebol pode ser um problema mais sério do que pensamos.

 

Depois da Copa e dos Jogos Olímpicos sobraram as estruturas desses megaeventos no Rio de Janeiro. Como estão sendo usados os “legados materiais” que ficaram para o Rio?

Nunca duvidei da capacidade de o Rio realizar o evento, porque nunca duvido da capacidade de o Rio festejar. Porém quando a festa acaba…. A questão do legado é fundamental para sustentar uma série de discursos relativos aos benefícios trazidos por megaeventos. Os legados também são usados como uma tentativa de se legitimar gastos, sobretudo, públicos. Isso já era evidente antes dos Jogos e depois está mais do que demonstrado. Eu só não esperava que o “novo” Maracanã estaria nesse pacote. O estádio, aliás, o complexo esportivo Maracanã – que inclui o Célio de Barros e o Parque Julio Delamare e o ginásio Maracanazinho – está abandonado. A grande reforma do Maracanã descaracterizou o estádio, tornando-o um lugar como outro qualquer. O gasto com as obras foi gigantesco e ao final vemos a inabilidade de se fazer do Maracanã um estádio que possa receber simples partidas. Diversas outras instalações esportivas ainda permanecem sem um uso efetivo, repetindo o que ocorreu após o Pan-2007.

Em termos esportivos creio que o estádio Nilton Santos possa ser considerado um legado positivo. Sua reforma foi motivada pelos Jogos. Porém é de considerar o absurdo de vê-lo ser reformado com tão pouca idade, afinal é importante lembrar que ele foi construído para o Pan de 2007 e já, em 2013, fechara devido a problemas em sua estrutura. Mas pelo menos o estádio está vivo e receberá diversos jogos do campeonato carioca, da Libertadores e será usado pelo Botafogo ao longo dos próximos anos.

Andando pelo Rio de Janeiro, pela parte onde os Jogos passaram, é possível ver muitas obras inacabadas, como é o caso do VLT no centro da cidade. A linha 4 do metrô que funciona entre os Bairros de Ipanema e Barra foi construída com gastos em torno dos 9 bilhões de reais e esse projeto atendeu, basicamente, as demandas do público dos Jogos. No dia a dia, não creio que havia necessidade pelo menos no que se refere ao trajeto mencionado. O Rio de Janeiro continua com seríssimos problemas de transporte público.

É difícil fazer avaliações nesse momento em que o Rio passa por crises em diversos níveis. Mas em termos de legado material para a cidade, penso que foram muitas promessas, mas pouca mudança concreta que beneficie os moradores.

Última pergunta: o que é o futebol para você?

Futebol é a melhor e a pior coisa do mundo. É a melhor, porque fascina, porque é paixão e porque proporciona momentos de felicidade para quem acompanha, e que são únicos. Pra mim, o futebol proporciona experiências e momentos únicos na vida, seja assistindo um jogo de seu time ou de outro clube. Nesse sentido, eu concordo com o Nick Hornby que, no Febre de Bola, diz: “O futebol te coloca no centro do mundo.”. Pra mim, o futebol me coloca no centro do mundo… Mas também é a pior coisa, porque ele está integrado à sociedade como um todo. Então, ele tem seus vícios, seus problemas. Quanto mais a gente adentra nele, mais vê suas mazelas, muitas delas legitimadas pela justificativa da paixão: “Isso é futebol, então pode.” Confesso que isso me assusta. Por isso, futebol é a melhor e a pior coisa do mundo ao mesmo tempo.

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