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Leo Samaja

Gabriel Said 4 de junho de 2020

Conheci a Associação de Treinadores do Futebol Argentino (ATFA) em 2016 quando comecei a pesquisar sobre cursos de capacitação técnica de futebol. Frustrado por não poder fazer os cursos brasileiros por exigirem formação em educação física, fui aconselhado a deixar os cursos no Brasil para lá e conhecer os oferecidos nos outros países, que além de não imporem esse impedimento sem sentido, seriam mais ricos de conteúdo. A Argentina é historicamente um país que pensa o futebol, já de pronto podemos pensar em Menottismo e Bilardismo, duas filosofias ricas e que deram mundiais ao país. A ATFA é fundamental para manter a tradição da busca pelo conhecimento e aprimoramento do país. São vários os exemplos de grandes treinadores argentinos por todos os cantos do mundo, conseguindo protagonismo em Copa do Mundo, Libertadores, Liga dos Campeões, etc. Não é segredo (ou não deveria ser) que para evoluir e conseguir se manter no alto nível é necessário o pensamento crítico, o debate, o respeito com a busca pelo conhecimento. A própria evolução do jogo de futebol se dá pela absorção, debate e discussão de ideias. Dos escoceses derrotando os ingleses no século XIX, passando pelo crescimento do futebol sul-americano na primeira metade do século XX, às ideias de Rinus Michels e Cruyff, do boot room do Liverpool no seu auge com Shankly e Paisley, à era dourada da Hungria e por que não, a Argentina que tem 15 treinadores na Libertadores 2020 e que formou Bielsa, Simeone, Pochettino, Sampaoli, Gallardo e companhia?

Em uma viagem a passeio em Minas Gerais, tive a sorte de coincidir estar em Belo Horizonte no mesmo dia que Leo Samaja participaria de um evento na UFMG chamado “Qualificação dos treinadores de futebol e os cursos oferecidos atualmente”. Ali consegui seu contato e conversamos sobre a possibilidade desta entrevista. Leo Samaja é o coordenador dos cursos da ATFA no Brasil. Argentino filho de mãe brasileira, viveu parte da infância e adolescência no Brasil, parte na Argentina. É conhecedor de ambas as culturas e isso torna a entrevista mais rica. Do evento em Belo Horizonte até a entrevista acontecer (em 19/03/2020) se passaram alguns meses, nesse meio tempo o Flamengo e Santos terminaram o ano de 2019 com treinadores estrangeiros fazendo os melhores trabalhos vistos Brasil nos últimos anos, alguns clubes começaram a procurar estrangeiros para treinar seus times e a pandemia do Covid-19 estava chegando no Brasil.


Leo Samaja. Imagem: Reprodução Twitter.

Aqui no Brasil estava em discussão no ano passado a exigência da formação em educação física para fazer os cursos oferecidos pela CBF.

Isso não existe… Não existe na federação argentina e na verdade não existe praticamente no mundo. Imagina se você excluísse as pessoas sem formação em educação física… Imagina só: o Mourinho não seria treinador, o Manuel Pellegrini não seria treinador, 99% dos treinadores argentinos não seriam treinadores; Simeone não seria treinador, Pochettino não seria treinador. O único treinador argentino de elite que fez graduação em educação física é Marcelo Bielsa. Os requisitos para realizar o curso de treinador e completar todas as licenças é primeiramente iniciar pelo primeiro nível, isso é obrigatório para todos, sejam ex-atletas, diretores, médicos ou advogados. Também precisa ter mais de 18 anos, contar com o ensino médio completo e comprovar aptidão para realizar atividades físicas. Esses são os requisitos, iguais aos que a UEFA impõe: todos começam pelo primeiro nível, não importa a precedência e essa é a caminhada. Não existe análise de currículo como tenho entendido que existe no Brasil, que parece ter análise de currículo para pular níveis. Isso não existe aqui na ATFA e não existe fora também.

Como é a relação da ATFA com a CBF, existe algum tipo de contato?

Não há nenhum tipo de contato. Não há contato direto a nível acadêmico e os únicos contatos que existem eventualmente são quando os cursos presenciais de capacitação da Conmebol são realizados, que normalmente os instrutores são da nossa escola e é aí que há algum contato com federações ligadas à CBF. Com outras federações os contatos são mais fluentes e habituais porque a ATFA vem trabalhando na formação de treinadores a muitos anos, é pioneira na formação de técnicos então a muitos anos a gente vem trabalhando com praticamente todas as federações do nosso continente. Inúmeros treinadores da Colômbia, Peru, Equador e Paraguai são formados na nossa escola então não houve jamais uma estratégia de isolamento por parte dessas federações, um pouco diferente do que ocorreu no Brasil. Eu estou desde 2014 aqui e jamais recebi uma ligação ou contato para trocar experiências. Eu até participei ano passado do congresso da CBF e não fui procurado por nenhuma das autoridades da CBF, nem pela CBF Academy para conversar então acredito que há interesse da CBF para trocar conhecimentos com gente de fora. Posso estar enganado, mas é a impressão que eu tenho.

Várias vezes vemos treinadores brasileiros falando contra treinadores estrangeiros como se não tivessem nada a aprender, existe também uma resistência ao estudo. Acha que isso está atrapalhando o desenvolvimento da formação de treinadores no Brasil?

É um comportamento quase que normal e esperado em um sistema que vem funcionando assim em todas as suas áreas. Eu costumo repetir em discussões e debates que a educação e o sistema educacional brasileiro é muito fraco, então esses defeitos fazem com que quando aparece algo mais diferente, mais complexo o habitual é fugir, procurar negar e desacreditar. Tem muitas postagens de profissionais envolvidos em cursos aqui no Brasil que dizem que os cursos do Brasil são melhores que o da ATFA ou da UEFA, e as pessoas que fazem esse tipo de postagem sem nunca sentar em uma sala de aula da ATFA ou UEFA diz um pouco a respeito do que a gente vive no Brasil. É uma triste realidade. Aqui não se está aberto ao conhecimento. Sem querer fugir muito do debate, mas é só ver o comportamento do Estado Brasileiro em relação a essa catástrofe mundial (pandemia do COVID-19), o mundo está em pânico com o vírus e tomando medidas de guerra e aqui parece que não acontece nada. Alguns estados tomam suas medidas próprias, desatendendo o governo federal porque para o governo federal isso é uma histeria. Então esse é o confronto de ideias, é comportamental, é cultural e educacional. Então alguns treinadores do país quando vêm outros chegando de fora com outra bagagem, a reação vai ser essa de negar o conhecimento de fora. Mas contra fatos não tem como confrontar e você vê que chega o Eduardo Coudet no Inter de Porto Alegre e em poucos dias faz uma transformação no DNA da equipe praticamente com os mesmos jogadores que outros treinadores tinham. Ele rapidamente fez uma transformação estrutural no funcionamento em campo sem a necessidade de passar meses. Esse tempo que exigem os treinadores aqui para instalar uma mudança de filosofia, os que vem de fora não precisam de tanto tempo. Coudet não precisou desse tempo, Jorge Jesus não precisou de muito tempo para fazer uma mudança extraordinária e o Sampaoli também não precisou de tanto tempo. Esse tempo é só justificativa, o futebol não dá tempo. Então aqui é muito fácil aqui ter uma licença passando alguns dias de estudo em algum lugar determinado enquanto fora você precisa estar anos prestando conta do conhecimento, estudando, presenciando aulas e sendo examinado. Então há uma diferença cultural na formação e por isso se espanta quem não está acostumado a ter que dar conta das mudanças no nosso esporte. Quem deve ficar incomodado é o torcedor e ele já começou a se mostrar incomodado e não aceitar esses discursos pobres porque vêm o resultado em campo.

Enquanto nós conversamos 6 clubes já trocaram de treinador e um desses clubes trocou duas vezes, que foi o Ceará. Até clubes que você lembrou como o Flamengo tinha um treinador de característica bem diferente do Jesus, o Fluminense teve técnicos muito diferentes nesse último ano e a lista pode continuar eternamente. Como é essa questão na Argentina Como é a preocupação dos clubes com a sua cultura?

De forma geral, normalmente a escolha do técnico pelos clubes argentinos passa por uma análise muito profunda em relação ao DNA do clube. A escolha não é só pelo nome, então não há uma contradição pelo estilo de técnicos, até porque o treinador argentino é muito adaptável. É difícil encontrar um técnico que esteja fechado em uma só ideia. O Simeone quando comandou o Racing jogava mais fechado devido as características dos jogadores, já no River Plate foi campeão com um elenco de riqueza técnica extraordinária e depois foi para o Atlético de Madrid, onde tem outro DNA, outras características e ambições. Nossos colegas conseguem se adaptar e esse é um pouco do espírito que nos representa, mas isso não é só uma questão de personalidade, é uma questão de conteúdo e conhecimento. Passamos nos nossos cursos conteúdos, conhecimentos, variantes e metodologias. Não orientamos a um modelo ou esquema de forma superficial em 4 ou 5 palestras e depois fica por conta do treinador ser autodidata, esse não é o espírito formativo. Um clube argentino quando vai contratar um técnico faz a análise da sua bagagem e pra isso serve o diretor de futebol. O Brasil é um modelo que não se encaixa em como funciona o futebol no mundo, veja a dança de treinadores. Um treinador deixa um clube na zona de rebaixamento, sai do clube e na semana seguinte já pega outro time, deixa esse também no rebaixamento e vai pra outro, onde vai um pouquinho melhor e já sai também. A mesma coisa acontece com os diretores de futebol no Brasil que estão em um clube, independentemente de como foi nesse clube já vai para outro e daqui a pouco já está em outro… tem histórias de diretores de futebol aqui que deixaram um monte de clubes em situações dramáticas mas hoje continuam desfilando por outros clubes. Não existe isso fora que o diretor de futebol do River Plate esteja trabalhando no Boca.

Foto: Guilherme Frossard.

 

Dentre os cursos oferecidos pela ATFA está o de análise de rendimento e algo que já deu pra perceber entre os treinadores argentinos como Sampaoli e Coudet é que eles sempre são acompanhados por alguns preparadores ou analistas…

É normal, a gente forma nossa comissão técnica reunindo profissionais de nossa confiança. Isso teria que ser assim como é em qualquer empresa, ou deveria ser assim. Você monta sua diretoria na sua empresa escolhendo seus funcionários, fazendo entrevistas, com o passar dos anos alguém pode ser demitido, um estagiário ser promovido, alguém de confiança pode querer sair pra trabalhar por conta própria… Agora, isso no Brasil funciona um pouquinho diferente também. O treinador chega e o clube que determina o preparador físico, de goleiro e o analista de rendimento. O Sampaoli chegou no Santos e fez uma baita revolução quanto a isso, mas veja só, ele foi para o Atlético Mineiro e o Diogo, que era analista no Santos, foi para o Atlético como auxiliar e coincidentemente também é aluno nosso. Não há rejeição em relação ao profissional de outra cultura e outro país, essa é uma questão muito brasileira, né? Esse preconceito é muito brasileiro, embora o Brasil seja um país que vem lutando a tantos anos contra o racismo, mas está enraizado o preconceito. Temos que superá-lo. Então dentro do nosso ambiente, dentro da nossa profissão assim como em qualquer profissão temos o nosso círculo de confiança e você pra conseguir trabalhar e ter sucesso em um projeto precisa que seu auxiliar seja da sua confiança, que seu preparador trabalhe metodologicamente o quê você tem como DNA, então se você trabalha com um preparador que não está dentro do teu modelo de trabalho e não tem sua confiança o resultado mais provável é que não dê certo. Então Coudet veio com sua equipe, Sampaoli também, Jorge Jesus da mesma forma e os clubes que estão entendendo que trabalhando assim é a melhor forma estão mostrando uma mudança de nível. E parece estranho, mas são clubes que não estão querendo mais treinadores brasileiros como o Santos que depois do Sampaoli não quis procurar treinador no Brasil, o Flamengo já disse também que não quer mais treinadores brasileiros e pode acreditar que o Internacional daqui a pouco vai falar a mesma coisa, mas o problema não é o treinador ser brasileiro, o problema é a estrutura que recebe esses treinadores brasileiros, que não têm a possibilidade de aprender, testar e implementar modelos diferentes.

Vários dos melhores clubes do mundo tem sul-americanos em suas equipes técnicas, seja preparador ou técnico, mas é raro encontrar um técnico brasileiro no estrangeiro.

A chave é a educação, tanto para o treinador quanto para o jogador. A formação de base acadêmica é o que permite você seguir evoluindo e conquistando seu espaço e manter o espaço, que é o mais difícil. Então você vê um técnico dar resultado superlativo em um projeto X, depois em outro projeto mais ambicioso não dá certo. É difícil manter o nível se não tem uma solidez formativa por trás e muito disso cai nos princípios da sorte também. No futebol já aprendemos que temos que reduzir o fator sorte. Esse fator sorte é real. Em que sentido? Para ter sucesso no seu projeto tem que reunir todas as competências: trabalhar exaustivamente na parte física, técnica, tática, mas também precisa da sorte do seu lado. A sorte é os jogadores estarem passando por um bom momento emocional, de carreira, de estabilidade, que o clima entre eles seja ótimo – e obviamente que o treinador deve trabalhar para isso – tem também a compatibilidade de personalidades e isso faz parte da nossa formação de estudos para que você saiba identificar os tipos de personalidade, os tipos de aprendizado, saber analisar o tipo de jogador que está sendo contratado, o histórico do jogador para evitar algumas contratações que podem rachar o elenco… Todo esse combo faz parte do trabalho, mas a parte educacional não atinge só a comissão técnica mas também a qualidades dos atletas. O que vem acontecendo no Brasil é que fundamentalmente o nível educativo sendo tão fraco, tão simples, de tão baixa exigência e comprometimento, você recebe nas categorias de base garotos de 12 a 15 anos que não sabem ler e escrever, não tem educação, não respeitam hierarquias, não tem conteúdo cultural básico. Isso afeta qualquer trabalho estrutural que você realiza porque esses garotos sem estrutura, base e bagagem também ficam sem caráter, aí se reúnem com outros que não tem caráter como empresários sem caráter, que acabam tomando conta da formação dentro de categorias de base. Imagina essa roda: garotos sem caráter, sem formação e sem cultura; empresários sem caráter, sem formação e sem cultura; diretores e presidentes sem caráter, formação e cultura. Imagina a contaminação dessa roda. Então chega um treinador como o Jesus e diz “pessoal, esse não é o caminho”, faz toda uma mudança e que deu certo. Então é uma questão cultural e educacional, não podemos negar a realidade da pobreza na América Latina, mas se você tem uma estrutura educacional suficientemente sólida as coisas mudam de alguma maneira, veja o Perú que a nível formativo deu um passo adiante, Venezuela também, Argentina e Chile também já mantém a educação em nível mais exigente. A educação é o chão de tudo e o Brasil ao invés de fazer como os demais países quem mantém os níveis ou melhoram, o país decresce. Antes de aperfeiçoar os modelos dos profissionais temos que começar embaixo porque esses garotos serão os treinadores daqui 20 anos.

Mascherano é aluno da ATFA. Imagem: ATFA.

 

Atualmente o treinador do São Paulo é o Fernando Diniz, tem formação em psicologia e também já falou algumas vezes em entrevistas que a mudança mais necessária no Brasil em termos estruturais desde a base é na educação, falando até que os jogadores são tratados como “coisa” ao invés de pessoas. Acha que é por aí? Na Argentina tem escolas dentro dos clubes…

Concordo completamente com o Diniz nesse aspecto. Tive até a possibilidade de encontrar ele no último congresso da CBF (Brasil Futebol Expo 2019), de conversar bastante com ele, trocar muita ideia e gostei bastante da profissionalidade dele. Venho acompanhando a tempo o trabalho dele e é um caso muito especial dentro do Brasil, eu particularmente torço para que o São Paulo dele dê certo porque o exemplo a ser seguido pelo profissional brasileiro dentro dos recursos que o Brasil tem é ele; cresceu e se formou aqui dentro, está mostrando o caminho e deve ser seguido por um profissional brasileiro com os recursos que o Brasil tem. Ele está dizendo “não é impossível, fiz uma carreira específica, me formei aqui, aposto nisso e morro com a minha ideia”. É um caminho a seguir e estou torcendo muito para que dê certo. Em relação à educação, a maioria dos clubes argentinos de maior porte têm suas escolas dentro do clube, mas não são só para o clube. É uma escola particular como qualquer outra, mas que recebe todos os atletas no alojamento do clube e são obrigados a estudar. Isso acontece no River, no Racing, Vélez, Independiente e se um clube não tem sua escola ainda devem colocar seus jogadores em uma e cobrar desempenho.

D’Alessandro já completou os cursos da ATFA. Imagem: ATFA.

 

E essa formação educativa está contribuindo para a formação de jogadores inteligentes como Tagliafico, Martínez Quarta, Zaracho, Lautaro Martinez, que mostram capacidade de se manterem sempre evoluindo, além da adaptabilidade para jogar de diferentes maneiras e posições. Faz parte desse processo na Argentina?

Sem dúvida. É uma questão biológica que influencia em todos os aspectos; cognitivos e neurossensoriais além do físico especificamente relacionado ao esporte. Você tem que abrir a cabeça e entender seus atletas como um todo. Então você vê atletas adultos de alto rendimento como Demichelis, D’alessandro, Mascherano, Zaballeta, Milito ainda no Barcelona, o Lucas Pratto já fazendo cursos de treinadores sem necessariamente ter a ambição de serem treinadores no futuro. Muitos jogadores fazem curso da ATFA não para serem treinadores, mas para ter mais conhecimento do jogo. Há um desejo do jogador em buscar conhecimento e não ficar confortável onde está e isso vem de onde? Vem de um processo educativo onde já viram com 12 anos na escola alguma coisa que os motivou e fez com que eles encontrassem na educação um crescimento e não uma perda de tempo. Temos que mudar isso no Brasil. Hoje o que os garotos sentem na escola brasileira é perda de tempo, não estão estimulados nela. Não é por acaso o que acontece com os jogadores argentinos, que você pega o time do Sevilla e o líder do elenco e braço direito do treinador é o Éver Banega, no Barcelona do Guardiola era o Gabriel Milito e depois o Mascherano, no Internacional de Porto Alegre é o D’alessandro, no Ajax hoje o Tagliafico mostra esse espírito e mostrava já no Independiente sendo campeão e capitão bem jovem. O jogador argentino nesse quesito é muito respeitado como líder porque tem conteúdo para levar essa liderança à frente. Já não adianta ter como líder alguém que faz uma roda e grita um Pai Nosso, isso já não convence ninguém – não sei se convence no Brasil – mas já não é o caminho que o futebol segue: o grito, a prepotência. O caminho é dar respostas aos questionamentos e para ter as respostas tem que ter conhecimento.

Como as transferências precoces de garotos com 17, 19 anos atrapalham o desenvolvimento?

Isso atrapalha muito a formação e faz parte de um negócio muito perverso que toma conta do mercado brasileiro. É de conhecimento público já que todos os países da nossa região admiram a forma como o profissional da gestão de futebol do Brasil faz negócio muito fácil. Até com jogadores de base que nem estouraram em equipes profissionais. Hoje o futebol brasileiro se transformou nisso, não está mais na formação da qualidade e sim no negócio. Se vende aqui muito fácil um jogador por 30 milhões de euros que nem jogou ainda no profissional, mas é considerado craque no exterior e 6 meses depois que chega na Europa já tá emprestado para um time B porque não está à altura. Compara com a Argentina, o Exequiel Palacios foi vendido por 20 milhões de euros, o Carrascal está sendo negociado pela cláusula de rescisão de 20 milhões de euros. Então nesse sentido o Brasil está muito à frente, mas isso é um castelo de areia porque estão destruindo a formação dos garotos com garotos de 16 e 17 anos já assumindo responsabilidades no profissional e perdendo sua formação e aí está o erro. É diferente com casos excepcionais como Messi que não é que o garoto esteja pronto, mas não tem como segurar. Com qualquer outro jogador, mesmo que tenha muita qualidade, ao queimar etapas você está destruindo vida útil de um potencial atleta de elite. É um prejuízo grande pro atleta, mas um benefício muito grande para os empresários com eventuais vendas astronômicas.

Jogadores na América do Sul sempre tiveram as ruas como parte do processo formativo pelo menos até os 15 anos, mas cada vez mais temos menos ruas para crianças jogarem futebol. Como você vê a rua na formação do jogador?

Essa é a primeira grande perda do Brasil, mas outros países como a Argentina se adaptaram a essa realidade. Preenchemos esse espaço vazio com outra coisa, aí entra a figura do treinador, que deve ter na sua formação conteúdos e conhecimentos necessários para dar ao garoto tudo aquilo que ele não recebe mais de forma natural. Falta isso no Brasil e parece que ninguém percebeu, por isso a culpa vai para a falta de espaço e o assunto morre aqui então não há iniciativas de criação de espaços e políticas para que os garotos voltem para as ruas para jogar futebol e também não existe intenção de qualificar e formar treinador com a capacidade de, em escolinhas, projetos sociais e categorias de base fornecer conhecimentos que os garotos adquiriam antes nas ruas. Como consequência disso estamos vendo cada vez mais gerações pobres tecnicamente, taticamente e fisicamente. Quem assistiu a Copa São Paulo desse ano viu até na final que dois grandes clubes historicamente formadores uma partida com chances de gol com garotos que não sabiam finalizar, não sabiam cabecear, não entendem de espaços, então tudo fica na automatização de movimentos que o treinador passa porque ninguém sabe resolver e aí tudo fica por responsabilidade do treinador, que ao invés de dar conhecimento e experiências, automatiza movimentos e busca os resultados através disso. Depois esse treinador vai para outro clube, não consegue automatizar os movimentos porque demora um tempo e a culpa cai sobre os clubes que não dão tempo, quando na realidade é o treinador que não tem conteúdo e capacidade para gerar mudanças de comportamento e levar conhecimento, que é o caminho mais difícil. O futebol de rua é o que está destruindo o futebol raiz do Brasil, com cada vez menos crianças fazendo esporte por gosto, as escolas fazem sua parte com aulas de educação física em sala de aula, então tudo vem sendo desvirtuado e vem destruindo o que resta do nosso futebol histórico.

Banega, um camisa 10 contemporâneo.

Já que falou do nosso futebol histórico, já faz um tempo que não vemos um camisa 10 aqui no Brasil, por outro lado isso não acontece na Argentina. Isso é por uma falta de adaptação nossa do camisa 10 para o futebol atual? Como você explica isso?

O camisa 10 historicamente é o jogador com maior visão de jogo e isso não é só levantar a cabeça e ver os espaços, é entender o jogo, o espaço, a velocidade, movimento e interpretar as oportunidades. Não é só pelo número da camisa. A Argentina continua produzindo jogadores nesse quesito de conhecimento de jogo que são adaptáveis em suas posições. Éver Banega é um camisa 10 que se adaptou a jogar como volante, também no Sevilla tem o Franco Vázquez adaptado para jogar na ponta, Ezequiel Barco, que está hoje na Major League Soccer, é um camisa 10 adaptado como ponta. Isso vem com o conhecimento do jogo, o Brasil não tem esse camisa 10 porque não tem como dar conhecimentos aos atletas, jogadores não estão mais sendo formados. Antes eram naturalmente com a pelada na rua, hoje estão nos centros de treinamento e não há esse conhecimento, por isso ficou mais fácil automatizar o futebol em 4-2-3-1, 4-3-3 e o conhecimento está com o treinador que controla como se fosse um video-game. É assim no futebol formativo e no profissional e tudo está nas mãos dessa geração de treinadores que acham que esse é o caminho. Por isso é difícil ver um camisa 10, porque quando enxergar em alguém o potencial para ser camisa 10 vai ver rapidamente como ele será negado ou desaproveitado. Quer que eu dê um exemplo? O Pedrinho, do Corinthians é alguém que nós enxergamos como um camisa 10 da velha escola se for trabalhado, potenciado e se gerar a confiança nele poderia ser justamente o que a gente está esperando, mas ele está fechado em uma estrutura que não o permite cumprir essa função. Em paralelo a isso, a confiança é dada a um jogador que querem que faça essa missão como o Luan, que infelizmente não tem toda a bagagem e conhecimento acumulado em seu processo formativo para tal função. Então é um jogador limitado nessa função, mas com qualidade extraordinária e que também vem sendo desaproveitado. Posso estar enganado, mas é o que acredito e defendo.

Seria o Ganso outro camisa 10 com talento desperdiçado?

Também. Lamentavelmente nasceu na época errada. Acho que faltaram muitos recursos para serem desenvolvidos no processo formativo dele. Você tinha um diamante na mão e um processo formativo similar a outros tempos, porém em outros tempos a gente contava com outros recursos. Creio que foi um jogador que se perdeu, ou melhor, nós perdemos.

Para quem se interessar em conhecer melhor sobre a ATFA e seus cursos oferecidos, o site é ATFA Campus Virtual e está em português.

 

Links de entrevistas e debates com Leo Samaja e sua conta no Twitter:

FP Entrevista: Leo Samaja, coordenador da ATFA no Brasil

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Gabriel Said

Formado em Sociologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestrando em Antropologia pela UFF e aluno da Associação de Treinadores do Futebol Argentino (ATFA). Participa do grupo de estudos de Futebol e Cultura, do LEME/UERJ; do grupo de Futebol e Humanidades da Universidade do Futebol e do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Esporte e Sociedade (NEPESS), da UFF. Além de escrever a coluna Danúbio Azul no Ludopédio, também escreve para a Universidade do Futebol. E-mail: [email protected]
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