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Luiz Henrique de Toledo (parte 2)

Equipe Ludopédio 21 de março de 2010

Graduado em Ciências Sociais, mestre em Antropologia Social e doutor Antropologia Social pela USP, Luiz Henrique de Toledo é hoje um dos principais pesquisadores ligados à temática esportiva. Sua dissertação de mestrado ganhou o Prêmio José Albertino Rodrigues, concedido pela Anpocs, de melhor dissertação em Ciências Sociais de 1994. Professor do departamento de Ciências Sociais da UFSCAR, Kike (como é conhecido nos corredores acadêmicos) retoma, nesta entrevista, algumas das principais questões trabalhadas em suas pesquisas. Além disso, apresenta suas linhas de pesquisa atuais, centradas tanto no campo da Antropologia Urbana, como também no da Antropologia do Esporte.

 
 

Segunda parte


Em seu Doutorado você ampliou o campo de atores pesquisados, dividindo-os em três categorias.  Quais os critérios utilizados para delimitá-las?

O projeto de doutorado foi feito às pressas, pois defendi o mestrado em dezembro de 1994 e já queria ingressar no doutorado no começo do próximo ano e aí a equação futebol-identidade veio como espinhal dorsal ou muleta para ajudar a rascunhar alguma coisa e apresentar à banca, que era uma pedreira com as super-poderosas e inteligentíssimas Maria Lúcia Montes, Manuela Carneiro da Cunha e Paula Monteiro. O projeto era visivelmente mais consistente que o do mestrado, mas não havia nada do Lógicas no Futebol nele ainda. Relendo, aparece postiço e com uma vaga ideia sobre a relação entre futebol e Estado, um horror…a banca nem deu muita bola, falou-se de outras coisas, viu que ele estava correto do ponto de vista formal e mandou tocar o bonde, nessa entrei em primeiro. Era uma coisa malhada sobre identidade, o Brasil e tal. Lógicas ficaria por um tempo em banho-maria até que alguma ideia um pouco mais original e consistente pudesse aparecer para, senão descartar, ao menos contornar a fraseologia fácil em torno da identidade e esse essencialismo tolo que se vê numa vasta bibliografia de segunda mão que gira por aí nas bibliografias. O que é engraçado nessa biografia é o modo como citações visivelmente damattianas ganham sobrenomes diferentes, como se o cara estivesse ali inventando a roda, mas deixemos isso pra lá…

Digo de segunda mão porque, é lógico, houve aqueles que, como o Roberto [DaMatta], trilharam com muita competência e maestria esse caminho muito antes de nós, alguns, felizmente, pude conhecer e travo amizade até hoje, mas a questão pra mim não era, e ainda acho isso, reificar o que disseram e repetir ad nausean os mesmos enunciados e máximas sociológicas, capturadas também pela imprensa no discurso rotineiro de seus analistas. Há nisso tudo um mal culturalismo, digamos assim. Pois bem, a saída foi lidar com algum tipo de literatura menos explorada e foi aí que vi nos manuais técnicos uma bela matriz narrativa desse futebol profissional para se pensar essas mesmas coisas, só que não na chave nem culturalizada das raças e nem sociologizante das classes, sequer engolfada pela fantasmagoria que se reveste na funesta expressão “sociedade brasileira”. Pois sair da matriz estratificada e da matriz racialista era importante para mim na medida em que descobria nessa “literatura nativa” um tipo de saber técnico que diz muito respeito aos arranjos internos de parte do próprio desenvolvimento do futebol, antes ou concomitante, às representações. Falar que o cara chuta assim e assado por que é negro ou por que a ginga e tal é desqualificar a prática, é torná-la epifenômeno de outra coisa que a englobaria e que estaria pairando no ar, as tais representações de brasilidade. É preciso, era ao menos naquele momento para mim, reposicionar as técnicas, primeiro tomando-as como técnicas corporais no sentido mais exato maussiano, segundo colocá-las no epicentro de uma atividade humana que, certamente é simbólica, mas não à sua própria revelia, tomada somente do ponto de vista da sobrecodificação. Aí a dimensão da experimentação, daquilo que Mauss tão bem viu, mas muitos negligenciam que é a dimensão da “expectativa” tem muito a ver com o apuro dessas técnicas.

O futebol não nasceu como uma representação do nacional e duvido que para muitos ele o seja nessa exata medida ideológica que assumimos por aí. Daí, vejo esses movimentos “desnacionalizantes” que eclodem aqui e ali, seleções misturadas, negros na Alemanha ou brasileiros evangélicos evitando alguns dos aspectos do jeitinho um fenômeno amplo de coisas misturadas que fazem repensar inclusive os valores que julgávamos caros e intocáveis. Adaptando as palavras de Latour, o jeitinho não faz parte da explicação, ele é justamente aquilo que deve ser explicado, é o que se numa sub-literatura sobre futebol por aí. De qualquer modo, encantava-me o fato de lidar com algumas das propriedades internas às técnicas que aparecem nos manuais de treinamento, que pipocam desde muito tempo, ao menos desde o início da prática experimentada há mais de cem anos e tal. Pois bem, calma que chegarei às categorias, que na verdade não as tomo por categorias…

Mas cair no ensaísmo era outro perigo, pois falar do futebol em geral é coisa ingrata e precisaria controlar um universo de coisas e ideias para começar a testar algumas hipóteses de trabalho. Dos manuais fui ver, então, alguma prática, matriculei em alguns cursos chamarizes de neófitos treinadores de futebol realizados por algumas instituições sindicalistas. Uma experiência interessante, pois pude ver os teóricos do futebol e algumas de suas estrelas desfilarem seus modelos de jogar e nesses cursos havia palestras de preparação física, psicologia, mas o que mobilizava de fato a turma eram essas aulas sobre táticas de jogo, isso verdadeiramente deixava a plateia alvoroçada. Esse era um conhecimento que conformava um campo, divisava um saber de posse de alguns atores que dele se nutria e conferia legitimidade diante de outros, torcedores, jogadores, imprensa esportiva, dirigentes etc. Aqui começava a ser delineada uma possibilidade de sistematização econômica para se pensar o futebol. Digo econômica porque creio que as tipologias não são nessa medida. Por isso desgosto em chamar aqueles três campos ou regiões ou o que quer que seja de categorias. Categoria encaçapa pessoas e atidudes e não era exatamente isso que pretendia ao delimitar três formas de apreensão e produção de saberes sobre o futebol, circunscritas naquilo que chamei de profissionais, especialistas e torcedores.

Bom, mas cadê os cartolas, e os juízes, e outros futebóis? Ouvi e acatei todas essas críticas, necessárias e pertinentes de um ponto de vista, obviamente, mas o que me interessava era a produção desses saberes, que me parecem estar mais fortemente ancorados na fala e na produção discursiva da mídia especializada (não de seus cartolas e donos dos meios, mas dos profissionais que estão na ponta desse processo, ali no  cotidiano dos times e nas mesas redondas, nos jornais, blogs etc), inventora em grande parte dos próprios manuais, e que continua a inventar e reinventar o futebol, ao menos na sua expressão mais poderosa que é o profissional, mas também na fala torcedora que faz com maestria inigualável a junção corporal entre o jogo e a narrativa sobre ele, e consiste num lugar onde todos em algum momento foram ou serão torcedores ou admiradores do futebol. Torcedor não é somente uma categoria no sentido explicativo, mas uma condição de possibilidade para que exista o futebol percebido como uma representação. Em terceiro aqueles que, de fato, fazem o futebol acontecer profissionalmente, que chamei de profissionais. Há excessos de um esteticismo nesse modelo, sei disso, mas prefiro, como já o fizera lá no Torcidas, driblar, perdoe-me a infâmia, a boa sociologia (do trabalho, das classes, das elites, das estatísticas, disso e aquilo).


Essa classificação ainda permanece ou pode ser ampliada, conforme propôs Arlei Damo ao incluir a categoria “dirigentes”?

O trabalho do Arlei, desde o “…rivalidades entre torcedores e clubes” é excelente. A pesquisa do doutorado, laureada como melhor tese de doutorado é impressionante. Mas creio que já respondi isso na questão anterior, não adianta trazer todos os atores e decalcá-los como se fossem categorias. Jamais quis mensurar qualquer coisa. O que me interessou foi a capacidade de produção de técnicas e narrativas que se aglutinam em regiões que denominei de especialistas, torcedores e profissionais. Torcedores também inventaram técnicas, corporais, diga-se, para adensar os significados do futebol. Com os especialistas (é como chamo quixotescamente a mídia esportiva), fiz campo para o Lógicas, participando de alguns cursos intensivos de jornalismo esportivo, que me mostraram que há técnicas, aliadas às tecnologias dos meios, produzindo as notícias e as coberturas esportivas, enfim, esses mereciam da minha parte uma maior atenção sem que caísse numa sociologia que não sei fazer. Outros ainda disseram que eu estava fazendo ali uma leitura bourdieusiana dos campos, mas não me parece bem isso também, há uma independência em relação às frações de classe, sequer a dinâmica das classes é posta à prova no modelo. Li de verdade A Distinção muito tempos depois.


A discussão dos diferentes estilos e formas de jogar, principalmente em época de Copa do Mundo, é sempre retomada. Por exemplo, o livro de José Miguel Wisnik, O Veneno Remédio, procura fugir da polarização futebol-arte/futebol-força, porém reforça a presença de outros elementos (beleza estética, mestiçagem, “dialética da malandragem” etc.) para definir o modo de “jogar à brasileira”.  Quais questões que o conceito de forma-representação, trabalhado ao longo do seu doutorado, traz para essa discussão?

Primeiro não creio que tal discussão seja retomada de quatro em quatro anos, na verdade ela nunca abandona a pauta daqueles que pretendem ler o jogo ou participar dele seja do ponto de vista torcedor, especialista ou profissional.

Estilos e formas não é assunto privilegiado da mídia ou segredo dos técnicos, é algo mais profundo, ou participa de algo mais profundo que confere toda a ossatura da popularidade do futebol. Isso é a teoria nativa, ou parte dela, em ato. Os outros elementos seriam as próprias regras e as ditas representações (chamadas de diversas formas como futebol arte, futebol força, futebol italiano, futebol brasileiro, jogar à Muricy e tantas outras).

Infelizmente, e essa entrevista é uma oportunidade que se apresenta, posso voltar a falar um pouquinho mais dessa expressão pouco econômica e de baixíssimo rendimento poético que é a tal forma-representação. Que diabos seria isso? Bem, a primeira pessoa que viu alguma qualidade analítica nela além de mim foi Simoni Guedes, um desses monstros sagrados nos estudos sobre futebol no mundo, e minha amiga, felizmente. A segunda foi o Toni [Antonio Jorge Soares] da Gama Filho, outro carioca atento. A banca de doutorado, que foi composta pelos professores José Sérgio Leite Lopes, Maria Lúcia Montes, Márcia Regina da Costa e o José Carlos Bruni deu pouca ou nada de importância a ela.

Forma-representação é uma espécie de síntese analítica possível composta por três naturezas do jogo, a saber, as regras, as formas de jogo – esquemas táticos – e representações sobre o futebol condensadas nas chamadas escolas: arte, força etc. Seriam variadas técnicas corporais, discursivas e tecnológicas à disposição para embasar e experenciar o futebol. O futebol nos chega e nos emociona por intermédio dessas formas–representações.

A expressão meio esdrúxula é a junção forçada de duas dimensões (que, repito, as chamo de naturezas do jogo), representando na verdade três, incluo aí as regras além das formas de jogo (também esquemas táticos no linguajar técnico) e as representações que se elevam e se autonomizam sobre essas formas, de modo a conferir unidade discursiva e prática entre saberes sobre o jogo. Daí ela deslizar livremente nos discursos torcedor, especialista e profissional, mas é um instrumento que permite captar esses discursos em ato. Ela é suficientemente plástica (como as três regiões que enuncio) para se acomodar ou receber novas tecnologias, novas formas de ver o jogo, novas maneiras de jogar, outros esquemas táticos, chamar jogadores de craques quando em outras épocas teriam sido tomados por jogadores comuns, aceitar ou rejeitar formas de se narrar as partidas.

É a tentativa de dar conta conceitualmente dessa disputa ou dinâmica, como queiram, entre esses saberes incorporados naqueles que se investem de torcedores, de especialistas e de profissionais. Por isso não há predominância de uma coisa sobre a outra, quer dizer, futebol arte, por exemplo, ou qualquer outro é dependente do exercício das variadas técnicas, de quem as realiza, de quem as legitima (torcedores), das execuções em treinos ou em campo de jogo, da tecnologia disponível dos meios que as revelam de um modo ou de outro (no discurso, na crônica ou na imagem), enfim, essas representações seriam fruto de consensos instáveis, que chamo de forma-reprsentação.

Não daria para falar em futebol-arte sem falar no domínio da experimentação continuada das técnicas que o suportam e que se extravasam por aí, que alcança as peladas e tal. Fala-se muito dos celeiros de craques “espontâneos”, mas o que se tem que olhar é o caminho inverso, craques peladeiros ou aqueles que, cada vez mais raro, se destacaram nas peladas já foram instruídos por uma série de experimentações técnicas no cotidiano, via tecnologias (via mídia), via experiência como simples torcedores que vieram do arranjo do futebol profissional e que, por boa imitação, no sentido tardeano, se alastraram por aí. Esse purismo em relação às peladas é outro tema que mereceria maior investigação.


Confira a terceira parte da entrevista no dia 31 de março.

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