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Luiz Henrique de Toledo

Equipe Ludopédio 7 de março de 2010

Graduado em Ciências Sociais, mestre em Antropologia Social e doutor Antropologia Social pela USP, Luiz Henrique de Toledo é hoje um dos principais pesquisadores ligados à temática esportiva. Sua dissertação de mestrado ganhou o Prêmio José Albertino Rodrigues, concedido pela Anpocs, de melhor dissertação em Ciências Sociais de 1994. Professor do departamento de Ciências Sociais da UFSCAR, Kike (como é conhecido nos corredores acadêmicos) retoma, nesta entrevista, algumas das principais questões trabalhadas em suas pesquisas. Além disso, apresenta suas linhas de pesquisa atuais, centradas tanto no campo da Antropologia Urbana, como também no da Antropologia do Esporte.

Primeira parte 


Suas pesquisas sobre futebol foram realizadas em um momento em que a produção sobre o assunto ainda era incipiente. Como surgiu o seu interesse no assunto, ainda mais em um tema tão polêmico como “Torcidas Organizadas”?

Carreiras acadêmicas se fazem ou se desfazem quase sempre por caminhos muitos tortuosos e citar o “acaso” é uma forma de arrumar nossas biografias de modo a dar alguma coerência transcendental para esse tipo de narrativa, por isso até eu tenho na manga os meus “acasos”. Minha graduação foi mais voltada para a ciência política e a sociologia, pois naquela época, segunda metade dos anos oitenta, e infelizmente, compreendia muito mal a etnologia e numa certa altura precisava terminar os créditos. Num dos últimos semestres fiz meio ao acaso matrícula no curso optativo de antropologia urbana do professor José Guilherme Cantor Magnani, decisivo na minha escolha por antropologia. Nessa época eu tinha uma bolsa Fapesp e estudava o movimento tenentista em São Paulo, mas vi a coisa toda virar de tal maneira que foi difícil terminar a modesta revisão bibliográfica que havia proposto como relatório. O interesse pela antropologia urbana foi despertado nas primeiras aulas, o que me levou às torcidas num momento logo posterior ao curso em virtude do convite do próprio Magnani para participar das reuniões e exercícios etnográficos pela cidade de São Paulo daquilo que seria chamado Núcleo de Antropologia Urbana. O NAU reunia alunos da pós-graduação a ele vinculados e alunos recém-egressos da graduação, enfim, era um balaio interessante e fervilhavam por ali ideias e trocas de experiências e havia, de fato, um clima aparentemente informal de pesquisa e um coletivismo que faltara na graduação. As escolhas por temas passam por questões pessoais, mas descobrir um modo sistemático de observar a cidade nesse caso foi decisivo, isso diminuiu a intencionalidade pessoal, ou a domesticou pelo método, digamos assim.

Ali vi uma real chance de uma carreira acadêmica, descobri uma determinada antropologia, e o manuseio experimental realizado nas idas a campo sugeriram caminhos interessantes. As torcidas sempre fizeram parte do gosto pessoal e impressionista por futebol, mas também estavam sempre nos noticiários, era assunto que circulava entre colegas da faculdade, mas não somente por conta da violência, isso é importante ressaltar.

Torcedores eram atores pela cidade e a vivenciavam de modo peculiar para além da fruição esportiva, e isso, fato aparentemente banal, foi a descoberta e a chave para nomeá-las como objeto, o que aconteceu na seleção do mestrado de 1990 por intermédio de um projeto de pesquisa horrível que apresentei, nunca mais tive coragem de lê-lo. Na entrevista com as professoras Aracy Lopes, Margarida Moura e Carmem Cinira, de quem ouvi, assim que entrei na sala, a brincadeirinha “cadê a bola?”, esse tipo de jocosidade ainda era muito comum, desfilei toda a minha fragilidade e ignorância em antropologia. Claro, havia feito praticamente duas optativas em toda a graduação (uma terceira foi muito ruim para ser lembrada), mas acho que foram com a minha cara e com a novidade de um objeto ainda pouco assistido por um programa de pós uspiano e ingressei em último lugar numa turma de 12 alunos.


Quais foram os primeiros passos de sua pesquisa com Torcidas Organizadas? Como você teve acesso a esses grupos?

Sempre fui um torcedor comum e gostava de ficar do lado diametralmente oposto às torcidas uniformizadas, era assim que as entendia e as nomeava inicialmente, porque gostava de assistir toda a beleza da festa. Além de bandeiras imensas e rojões, que estalavam em profusão ainda na época em que comecei a ir aos estádios, esses grupos tinham uma particularidade que delimitava o seu modo de atuar e que mobilizava a minha atenção: o jogar papel higiênico como se fosse serpentina na entrada dos times em campo. De longe era um espetáculo incrível, sincronizado quando o time apontava nos túneis em direção ao gramado, aquela movimentação torcedora, o bailado dos papéis pelo ar atirados lá de cima era pra mim de uma beleza carnavalesca feita sem carnavalesco. Alguma consciência corporal eu já tinha disso!

Esse deslumbramento aparentemente banal significava para mim um senso de proporção estética e participação no espetáculo que sempre me chamou muito a atenção, mas daí virar objeto de reflexão demorou, obviamente, embora essa subjetivação tenha sido essencial para o que viria depois com as observações etnográficas. Só um parêntese, vi coreografias improvisadas de torcedores e tantas situações que se perderam na observação, pena que tenha sido tão difíceis de expressá-las na sua real dimensão numa etnografia, aparecem como resíduos de uma sociabilidade que se perde numa pesquisa dessa natureza. Então sou da época em que o acesso às torcidas se deu por aí e não tanto pela truculência ou violência que, claro, existia e sempre existiu, e que pauta, mas também condena logo de início, muitas pesquisas recentes, felizmente não todas. Mas a violência e a virilidades faz parte das escaramuças aprendidas do ser torcedor até entre os amigos naquele futebol de chutar latas no terreirão da escola, nas controvérsias futebolísticas às segundas-feiras, tudo se misturando em doses de brincadeira, intolerância, alguma violência e prazer.

Bom, depois desse maravilhamento juvenil, e já na fase da pesquisa propriamente dita, mas sem deixar de perceber essa intervenção carnavalesca realizada por eles, me aproximei desses grupos dentro do estádio e ficava ali observando o comportamento geral, que em contraste com o espetáculo visual trazia uma excessiva normatização do torcer, fortes hierarquizações entre comandados e comandantes, competitividade entre grupos rivais de mesmo clube, divisão de tarefas, ritualização, tudo virava “sociedade” demais. Mas era curioso ver que muitos sequer viam aos jogos tamanho empenho que dedicavam à dinâmica própria da torcida, à bateria, às performances e gritos de guerra. Pude tomar contato com torcedores de todos os tipos, daqueles que faziam discurso a favor da ordem até aqueles que tinham como esporte caçar torcedores rivais durante os jogos. Vi muita gente de classe média engajada nessas disputas corporais. Lembro que, sobretudo no Morumbi, que era muito menos demarcado por setores, podíamos rodear o estádio pelas arquibancadas, havia uma movimentação intensa de torcedores mesmo com o jogo rolando e aqueles dotados de alguma perícia literalmente escalavam o estádio, driblavam a polícia.

Poderia dizer então que o primeiro acesso aos torcedores organizados se deu por intermédio dessa imersão etnográfica via corpo, via técnicas de torcer mais do que entrevistas. Gastei um tempo aí até perceber que precisaria descobrir outros espaços de convivência e o círculo foi se estreitando e me levou às sedes das torcidas. Pensar a cidade sempre foi uma decisão metodológica desde o Nau (Núcleo de Antropologia Urbana da Universidade de São Paulo) e uma boa saída para viabilizar o trabalho, quer dizer, sair da esfera ritual. Torcidas vivenciavam experiências para além dos jogos, fundamentais para sedimentar o coletivismo e a co-presença que anima essas instituições populares, é o que se lê um pouco em Torcidas Organizadas...


Durante a sua pesquisa, no início dos anos 90, as Torcidas se tornaram um foco midiático, devido às diversas manifestações de violência ocorridas nos estádios e fora deles. Como esses eventos interferiram e/ou direcionaram a sua pesquisa?

A cronologia de violência nos estádios não nasce nos anos 1990, mas é verdade que ela se objetiva e é qualificada como violência “de” torcedores cada vez mais nesse período por razões que deveríamos buscar para além das próprias torcidas. Poderíamos, à lá Norbert Elias, pensar que uma nova sensibilidade se enraizou nesse momento no universo esportivo e aí houve a real necessidade de coibir e dar conta dessas intolerâncias, quer dizer,  o futebol profissional gerenciado racionalmente e cultivando a parlamentarização não mais tolerou tais abusos e todo caso de violência física individual, é o que mais ocorria entre torcidas, foi visibilizado e tomado como tema e problema na arena midiática. Não penso assim, acho mesmo que há um desmonte, sem pleno sucesso, no processo que levou e leva torcedores a experimentar formas institucionalizadas de torcer.

O interessante é que tal desmonte, isso para o caso paulista, foi menos jurídico do que estético. Sabemos dos imbróglios judiciais e processuais nas apurações de casos de intolerância e violência torcedora, mas indivíduos têm sido condenados pela justiça. Já a condenação moral coletiva fica a cargo da imprensa. Em contrapartida as torcidas só cresceram e ampliam sua atuação para fora da arena esportiva. O que me parece mais cínico e fruto desse desmonte organizado pela lógica conivente com uma mídia parceira e incentivadora da lógica elitista que incentiva o torcedor de poltrona foi o desmonte estético. É interessante que há uma migração, iniciada antes com os Gaviões, para o universo do carnaval e aí elas garantiriam a continuidade da expressão estética.

É claro que as proibições (de bandeiras, de instrumentos percussivos), que tomaram força a partir de 1995, relaxaram um pouco, mas esse processo de desmonte precisaria ser visto com mais pesquisa. Terminei o mestrado justamente nesse momento de maior recrudescimento da violência, ou se preferirem, maior exposição e expiação das torcidas na mídia, então me pareceu à época que ficou um tema minimizado no Torcidas…, o que me chateou um pouco e tornou motivo de apreensão antes da banca de defesa da dissertação, mas a Lilia Schwarcz e o Roberto [DaMatta] souberam compreender as outras dimensões ali etnografadas. Mas revendo hoje o modo como arquitetei o trabalho, creio que acertei na mão ao dar mais ênfase à dimensão estética e à sociabilidade naquele livro [Torcidas organizadas de futebol] porque são elementos fundamentais inclusive para se pensar na violência para além das visões normativizadoras e conservadoras que grassam por aí sobre violência urbana.


Como você entende o papel da imprensa perante as Torcidas Organizadas?

Há de tudo na imprensa esportiva e o discurso fragmentador que a caracteriza, muito devotado ao cotidiano e à factualidade produziu interessantes tipologias. Tinha gente com visão progressista que rapidamente saiu em nome da condenação sumária das torcidas. Outros politicamente mais conservadores atenuaram as críticas às torcidas e tentaram ver que elas faziam parte do espetáculo, quer dizer, não dá para tomar a imprensa como um bloco monolítico, mas também não dá para tomar as torcidas como sendo também uma coisa só, um bando de agrupamentos facínoras e fascistas. Torcidas Organizadas (TOs), como se sabe, são vistas como grupamentos conservadores votados a todo jogo dos jeitinhos e apadrinhamentos políticos, daí a proximidade com políticos mais à direita. De qualquer forma, houve a preponderância no sentido da condenação sumária. Quem não condenaria a violência nos estádios? Isso tem a ver também, obviamente com o purismo da visão que se quer hegemônica de que esportes, saúde e civilidade andam juntos. Mas também diria que nada mais conservador do que essa posição tomada por muitos dos ditos progressistas da imprensa. Para se ter um panorama mais satisfatório dessa relação que se inicia muito antes de torcidas organizadas é ver na história que a conduta torcedora sempre foi espreitada pela mídia esportiva, uma se fez à sombra da outra, tal como mostra bem trabalhos como os do carioca Bernardo Buarque [ver seu doutorado].

Há um imediatismo no conhecimento jornalístico que me incomoda, toda vez que ocorre uma morte torcedora chama-se algum especialista incauto para explicar a violência das torcidas. Esta é uma visão, como disse fragmentada, que perde o foco ou patina sobre o fato. Há que se observar movimentos mais sutis nesse processo que são os modos de torcer que têm a ver como as alianças políticas que são feitas e desfeitas a todo o momento. Essa violência para além das perdas fatais individuais, em si mesma condenável, é política e sintoma de como caminha a “vida parlamentar” fora dos parlamentos. Esses universalismos da política são outra falácia.

O debate entre o Ministério Público e as Torcidas Organizadas já perdura há mais de duas décadas. Alguns anos após encerrar a sua pesquisa, foi regulamentado o Estatuto do Torcedor. Essa nova regulamentação trouxe mudanças significativas?

Não sei, precisaria de observação sistemática a respeito do estatuto e voltar ao tema das torcidas em novas pesquisas! Comento em Lógicas no Futebol que jornalistas de renome no meio esportivo como Tomáz Mazzoni já apresentavam à sua época propostas de normatização da conduta torcedora, antes do advento das torcidas organizadas. O Estatuto, como qualquer peça jurídica dessa natureza, tenta produzir alguma previsibilidade e universalizar condutas, mas a vida é um fluxo, produz suas próprias linhas de fuga, as torcidas já apontaram para novas direções e outros arranjos recentemente podem ser observados, novas alianças políticas, outras pacificações, acho que as torcidas e seus torcedores se cansaram dos políticos. O Estatuto veio tarde demais embora deva ser louvado para se pensar o futebol brasileiro dentro de alguma universalização. Vejo-o, então, como uma peça política importante no sentido de adensar o debate político institucionalizado, o que quer dizer angariar recursos materiais e simbólicos na promoção dos megaeventos que se avizinham, as Olimpíadas e, antes, a Copa do Mundo. É, então, um instrumento de política esportiva externa, digamos assim. Torcedores estão aí em segundo plano.

Confira a segunda parte da entrevista no dia 21 de março.

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