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Luiza Travassos

Gabriel Said 11 de fevereiro de 2021

“Jogo como uma garota e me orgulho disso”

A primeira vez que vi algo sobre a Luiza Travassos foi alguns anos atrás, em uma notícia sobre uma torcedora do Fluminense que mesmo bem nova, era eleita pela BBC como uma das cem mulheres mais influentes do mundo. Luiza jogava futebol e cuidava de sua página no Facebook, que incentivava muitas outras meninas a jogarem também. Pulamos para 2020 e vejo mais uma vez o seu nome, agora em uma convocação da Seleção Brasileira feminina sub-17. Conversamos virtualmente no dia 19 de janeiro de 2021, Luiza vestia uma camisa do Fluminense, talvez já pronta para o treino de logo mais, e na parede ao fundo estava sua camisa número 15 da Seleção. A conversa foi muito boa e espero que a leitura também seja.

Luiza Travassos com faixa de capitã em jogo pelo Fluminense. Imagem cedida pela Luiza.


Qual é sua primeira lembrança com futebol?

É engraçado porque ninguém na minha família gostava de futebol antes de eu chegar, então o futebol é uma coisa que veio de mim mesmo. Foi colecionando figurinha da Copa do Mundo de 2010 que eu comecei a gostar e acompanhar futebol, então a primeira coisa que me vem é todo mundo na mesa, sentado, trocando figurinhas. Minha irmã colecionava um álbum, eu colecionava outro, tinha essa competição boa. É uma lembrança muito maneira, comecei a assistir aos jogos e quando passou a Copa eu não parei de assistir. Foi um ano que o Fluminense foi campeão brasileiro, então engatei nos jogos do campeonato brasileiro e fui me apaixonando cada vez mais pelo esporte.

Sua família já torcia pro Fluminense apesar de não acompanhar futebol, por que você começou a ser tricolor?

Quando eu era menorzinha não tinha time, mas minha mãe era Fluminense porque meu avô, que eu nem cheguei a conhecer, era tricolor doente. Minha irmã era Flamengo e meu pai não tinha time. Minha mãe até falou para meu pai arrumar um time quando estava grávida porque se fosse menino teria que ter time, aí quando viram que era menina deixaram para lá. Minha mãe é quem mais me influenciou a ser Fluminense e eu também comecei a assistir os jogos. Agora meu pai, minha irmã, a família inteira torce pro Fluminense, não só para mim como para o clube. Sempre levo eles para os jogos quando tem como.

“Como vocês querem mandar no que minha filha pode fazer ou não?”

E você começou a jogar futebol na praia, não é? Ou foi na escolinha do PSG?

Comecei na praia. No PSG foi quando se tornou algo mais sério, quando percebi que era o que eu queria para a vida. Tinha essa questão quando comecei de jogar com menino, queriam que eu jogasse com meninas ou que a vontade de jogar futebol passasse, mas eu insisti. Lembro que tinha uma escolinha do Flamengo perto de casa e eu falava que não queria jogar lá, ainda mais que eu era criança, aí não tinha esse lado profissional do esporte, então procuramos outro lugar. Tentei na minha escola, mas não aceitavam meninas e foi aí que o jogo virou e minha mãe disse “como vocês querem mandar no que minha filha pode fazer ou não?”. Foi aí que eu fui para essa escolinha na praia, que era do Fluminense quando entrei, mas logo virou do Espanyol. Lá comecei a treinar com meninas bem mais velhas. Eu tinha nove e elas entre 16 e 20 anos, mas eu não estava nem aí delas serem do dobro do meu tamanho. Eu finalmente podia estar jogando, que eu queria desde os seis anos. Depois fui para o PSG.

E no PSG você chegou a participar de competição internacional…

Foi. Quando entrei no PSG eu era uma das únicas meninas, junto com a Lara, que também joga no Fluminense hoje e algumas outras. Primeiro participei com a Lara de uma competição internacional na França que só tinha nós duas de meninas. Foi legal ver depois que com o passar do tempo mais meninas foram entrando, organizamos de fazer uma turma feminina e conseguimos fazer aquela mesma viagem para a França com um time totalmente feminino, ficando um mês lá e disputando três competições. Acho que o mais legal disso é ver como era quando entrei, aí mais meninas foram entrando, criaram uma turma e hoje o PSG Academy até organiza seletivas femininas.

Como foi a ida para o Fluminense?

Foi em 2018. Estava no PSG e o Fluminense foi o primeiro clube que abriu as portas organizando peneiras. É um sonho jogar num clube grande e para mim foi mais ainda por ser o Fluminense. Então a gente lá do PSG se organizou para fazer essa peneira. Eu e algumas meninas passamos e logo já criamos um time porque em menos de dois meses já tinha o Campeonato Brasileiro sub-14. O time juntou meninas do PSG e do Daminhas da Bola, que é um projeto social da Thaissan Passos, treinadora do Fluminense. Foi tudo muito rápido e quando eu vi já estava disputando competição pelo Fluminense, pude ser capitã na semifinal e depois nós fomos vice-campeãs, perdendo nos pênaltis. Então foram vários sonhos se realizando muito rápido. Agora já vou jogar meu segundo Campeonato Brasileiro sub-18.

Você joga como volante, mas não começou nessa posição, certo?

Nesse Campeonato Brasileiro sub-14 eu era zagueira, mas sempre quis ser volante. Só que sempre falta gente para a zaga, então como tá ali perto sempre me puxavam e como dava certo eu fui ficando. No sub-18 eu tive a oportunidade de ser volante, me apaixonei pela posição e jogo nela até hoje.

O futebol feminino de base no Fluminense

Como é o dia a dia no Fluminense?

Desde o início de 2020 a gente começou a treinar no Centro de Treinamento Vale das Laranjeiras (CTVL), que é a sede das bases do Fluminense. Antes a gente treinava no Tigres, que também é em Xerém, mas não é do Fluminense em si. Então começamos a ter mais acesso à infraestrutura, academia e aos campos. Ainda tem coisa pra melhorar pra chegar na igualdade que falamos tanto, mas começar a treinar nos mesmos lugares que os Meninos de Xerém treinam e ter também as Meninas de Xerém é fundamental. A Pia Sundhage nos visitou lá e falou sobre a igualdade. A partir desse ano estamos treinando com a base todos os dias, antes eram três vezes por semana e só as adultas treinavam todos os dias. Temos um acompanhamento que acho fundamental para o esporte que é o de psicólogo, fisiologista e nutricionista. É muito importante começar isso desde a base nos clubes para que quando outras meninas mais novas cheguem no profissional estarmos mais desenvolvidas ainda e também trazer frutos pro Fluminense e os clubes que tem todo esse trabalho com a base.

O feminino tem equipe técnica própria ou divide com o masculino?

Não, é só para o feminino. É mais ou menos a mesma equipe técnica para o profissional e para a base, aí ajuda nessa transição. Não é o mesmo treinador, a Thaissan é a treinadora do adulto e na base tem dois treinadores, mas a Thaissan está sempre vendo nossos treinos, os treinadores da base são auxiliares no adulto, então tem essa equipe para os dois.

Você falou de psicólogo, nutricionista e fisiologista. Quais são os outros cargos na equipe técnica?

Então, esses daí são do masculino também. Por exemplo, uma psicóloga está com a gente, mas também trabalha com algumas categorias do futebol masculino. Fisiologista e nutricionista também. A fisioterapia é própria do feminismo, temos médicas, preparador físico, auxiliar e treinador.

Quando o garoto chega aos dezesseis anos normalmente ganha um contrato profissional. Como é essa transição no feminino?

Acho que é diferente no feminino, não só no Fluminense. Tem muitas meninas que aos 15 anos já jogam no profissional. Nós vamos até o sub-18 e depois vem o profissional, já o masculino tem até sub-23, então o garoto tem muito mais competições de base para jogar do que a menina, mas acho que a nossa transição acontece muito bem porque temos a oportunidade de treinar com as meninas de cima. É mais rápida a transição no feminino do que no masculino. A não ser que o menino seja muito fora da curva, só vai começar a ganhar oportunidade no profissional um pouco mais velho. Acho que todo esse tempo que o futebol feminino tem de “atraso” por ter sido proibido faz com que algumas coisas ainda estejam se desenvolvendo como esse processo da menina sair da categoria de base para o profissional.

“As mulheres que vieram antes de mim, que vejo no adulto do Fluminense, não tiveram esse incentivo para o desenvolvimento da base e do futebol feminino em geral”

Quantas categorias o Fluminense tem?

O sub-16 e sub-18. Eu estou no sub-18, mas treinei um tempo no adulto durante a preparação do Brasileiro A-2 e enquanto a base não tinha voltado ainda por causa da pandemia. Agora treino só com o sub-18 para o Brasileiro sub-18, que começa dia 26 de janeiro.

Poucos anos atrás foi criada uma obrigação aos clubes a investirem no futebol feminino. Percebe essa exigência como algo que está dando bons resultados?

Com certeza. Eu me vejo como privilegiada por estar vivendo isso. As mulheres que vieram antes de mim, que vejo no adulto do Fluminense, não tiveram esse incentivo para o desenvolvimento da base e do futebol feminino em geral. Então vemos essa evolução tanto nas categorias de base quanto nos adultos, por mais que ainda não esteja no ideal por várias questões, tem um desenvolvimento maior. Eu vejo que o Fluminense tem esse desejo de criar e desenvolver a base, porque tem muito clube que segue as obrigações da Conmebol e CBF de ter o futebol feminino e a base, mas acabam fazendo não por acreditar que vai dar frutos no futuro, fazem só por obrigação e aí quando tem que cortar gastos vai lá primeiro. Isso é um problema que acho que vai melhorar porque os dirigentes vão começar a ver que faz sentido investir na base para ter um resultado mais a longo prazo. O Fluminense, São Paulo e Internacional são clubes que estão fazendo isso.

Tem contato dos times femininos com masculinos no clube?

Tem, mas é distante. Tem um tabu de separar os times para evitar problemas. Acho que como o futebol feminino é uma novidade no CTVL, a gente vê que ainda é uma surpresa ter as meninas lá para algumas pessoas, seja para os meninos ou para alguns funcionários. É algo que está estruturado e que temos que mudar. Dar títulos para o Fluminense como os meninos fazem, mostrar que nosso trabalho é sério e demonstrar respeito é um caminho para igualdade maior ali dentro do clube.

Por um futebol mais justo

Acha que seria interessante uma categoria mista?

Óbvio que é importante ter turmas femininas, até porque a menina pode se sentir desconfortável entre os meninos e é normal. Mas acho que alguma hora vais misturar, principalmente entre as crianças menores porque futebol é brincadeira para a criança. Isso acaba criando um olhar de que somos todos iguais, é futebol independentemente de quem está jogando. Depois dos 13 ou 14 anos faz sentido separar por questões biológicas, mas antes disso ter a mistura acho super bacana.

Como você começou a se envolver na luta por um futebol mais justo?

Foi natural. Por ter sido proibida de jogar em uma escolinha por ser menina e também ouvir alguns comentários, aí comecei a perceber essa diferença de estar nesse ambiente muito masculino, um esporte que muita gente vê como só de homem ou que ainda não é uma realidade no Brasil, como nosso presidente falou. Então comecei a ver esse sexismo por trás disso tudo e aí comecei a postar na minha página no Facebook e meninas começaram a se identificar comigo. Quando percebi isso, vi que o pouco que eu posso fazer como uma atleta, uma menina que joga futebol e contar minha história e conhecer outras garotas que passam pelos mesmos desafios, vemos o quanto ainda tem caminho para ser percorrido.

Vê muita resistência de dirigentes contra o futebol feminino?

Com certeza. Como falei, é sempre o primeiro lugar pra cortar gasto. Falam que é porque não precisa, não é realidade, não dá lucro… e na Copa do Mundo de 2019 a gente viu que bombou, o futebol feminino é sim uma realidade. Falta as pessoas que estão investindo acreditarem nisso. O Guaraná até fez uma campanha recentemente de incentivar marcas que patrocinem futebol feminino, mas existe ainda rejeição e falta de olhar para perceber que o futebol feminino está crescendo cada vez mais. Acredito até que um dia não vamos mais precisar da obrigatoriedade porque vai ser algo que os clubes vão querer fazer.

“Jogar como uma garota é algo forte, porque significa uma resiliência por tudo que já teve que ouvir por ser menina e praticar esporte.”

Nos últimos anos estamos vendo cada vez mais mulheres envolvidas com futebol, jornalistas, comentaristas na TV, programas de futebol formado só por mulheres, o próprio Ludopédio tem uma abordagem assim também. Acha que isso incentiva mais garotas a jogarem?

Com certeza. Quando eu era mais nova gostava muito de assistir jogos e só passava jogo masculino e provavelmente só via homem falando na TV. Então eu nem tinha noção que poderia ser jogadora também. Lembro que depois de jogar na praia a minha escola permitiu que meninas jogassem, e lembro que era uma treinadora que tinha jogado futsal profissional na Espanha. Para mim isso foi o máximo, comecei a pensar que poderia ser jogadora também. Acho que uma menininha ver uma mulher narrando ou comentando um jogo, do feminino ou masculino, mostra para ela que também pode estar lá. Foi o que eu senti com a minha treinadora. Acho extremamente importante ter mulheres comentando, aparecendo em canais de YouTube, escrevendo sobre futebol para ajudar a criar sentimento de identificação.

Para terminar, você joga como uma garota?

Jogo! Uma vez me pediram para criar uma frase nesse sentido e pensei em “jogo como uma garota e me orgulho disso”. Tem muito comentário assim, né? “Ai, joga como uma menina”, “é garota e tá chutando mais forte do quê você”. Temos que acabar com esse preconceito e mostrar que jogar como uma garota é algo forte, porque significa uma resiliência por tudo que já teve que ouvir por ser menina e praticar esporte. É muito importante a gente se orgulhar de estar nesse meio sendo mulher. Então jogo como uma garota e me orgulho disso.

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Gabriel Said

Formado em Sociologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestrando em Antropologia pela UFF e aluno da Associação de Treinadores do Futebol Argentino (ATFA). Participa do grupo de estudos de Futebol e Cultura, do LEME/UERJ; do grupo de Futebol e Humanidades da Universidade do Futebol e do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Esporte e Sociedade (NEPESS), da UFF. Além de escrever a coluna Danúbio Azul no Ludopédio, também escreve para a Universidade do Futebol. E-mail: [email protected]
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