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Marcelino Rodrigues Silva (parte 2)

Equipe Ludopédio 14 de janeiro de 2015

Mestre e doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Marcelino é professor adjunto da Faculdade de Letras da UFMG e pesquisador do Núcleo de Estudos de Acervos de Escritores Mineiros – NEAEM. Marcelino tem se dedicado, principalmente, às pesquisas sobre o imaginário e a cultura do futebol no Brasil e em Belo Horizonte. Dentre seus trabalhos publicados, destacamos o livro Mil e uma noites de futebol; o Brasil moderno de Mário Filho (UFMG, 2006).

A entrevista foi realizada em maio de 2014 – ou seja, antes da Copa do Mundo realizada no Brasil -, durante o  II Simpósio Internacional de Estudos sobre Futebol (Museu do Futebol, LUDENS/USP).

Marcelino
Marcelino Rodrigues Silva estudou em seu mestrado e doutorado as obras dos irmãos Nelson Rodrigues e Mário Filho. Foto: Max Rocha.

 

 

Segunda parte

 

Após algum tempo, encerradas suas pesquisas de mestrado e doutorado, qual sua análise sobre as interseções entre as obras dos irmãos Nelson Rodrigues e Mário Filho, objetos de seus estudos?

A minha perspectiva não é historiográfica. Não quero fazer história do futebol. Estou fazendo história do discurso do futebol, história das interpretações do futebol. Poderíamos dizer uma história dos mitos do futebol, das ficções que o Brasil faz de si mesmo a partir do futebol. Em algum lugar, não sei dizer agora qual especificamente, fiz uma espécie de brincadeira, disse que quando você olha, por exemplo, para os ciclos míticos da Grécia Antiga, tem sempre um ciclo cosmogônico e uma Era de Ouro. Tem sempre o momento da invenção dos deuses e dos heróis e o momento da vitória dos deuses e heróis. Seriam, por exemplo, a Teogonia de Hesíodo e a Ilíada e a Odisseia de Homero. Eu fiz essa brincadeira: o Mário Filho é a Cosmogonia e o Nelson é a Era de Ouro. O Mário Filho conta a invenção dessa relação do Brasil com o futebol e o Nelson contra o tricampeonato, o momento em que o Brasil se afirma pelo futebol. Tem aquela famosa polêmica no meio acadêmico sobre o livro O negro no futebol brasileiro, envolvendo o Antonio Jorge Soares. Abstraindo um pouco do debate, tem um ponto interessante na proposta do Soares: a ideia de ler o livro do Mário Filho a partir do Vladimir Propp, um teórico da literatura, formalista russo. A ideia é que o Mário Filho conta a história do futebol brasileiro – e isso virou uma espécie de modelo – como se fosse um conto maravilhoso, um mito. Tem uma sequência, segundo a teoria do Propp. Tem um primeiro momento que instaura o conflito, que é uma situação de dano, quando a comunidade está em desequilíbrio. O herói da comunidade vai à luta para restaurar o equilíbrio, enfrenta o adversário, o vilão, perde para o vilão, recebe um objeto mágico, de posse do objeto mágico volta a enfrentar o vilão e vence. A leitura do Antonio Jorge Soares é de que essa é a estrutura narrativa de O negro no futebol brasileiro e da historiografia do futebol brasileiro. Racismo, as primeiras tentativas de ascensão do negro, invenção do estilo brasileiro (que é a doação do objeto mágico), o negro vai à luta de posse do objeto mágico e vence a luta. Poderíamos afirmar que o trabalho do Mário Filho aborda esse primeiro momento, até a doação do objeto mágico. O Nelson fala desse segundo momento, o embate final do herói para restaurar o equilíbrio da comunidade, ou seja, a afirmação do Brasil e do negro através do futebol. A tese do Antonio Jorge gerou muita polêmica, mas não em relação a essa leitura, e sim em relação ao que ele diz sobre o valor do livro do Mário Filho como fonte histórica e a utilização que os historiadores fizeram dele. Qual o problema que gerou o debate? Ele faz uma leitura pouco flexível no que diz respeito ao uso do texto literário como fonte histórica. Alguns o acusam de uma abordagem um tanto positivista da história.

E como você se coloca nesse debate? Nosso papel é jogar na fogueira… (risos)

Eu escrevi um pouco sobre isso. Eu acho que a leitura que o Antonio Jorge Soares faz de O negro no futebol brasileiro é muito inteligente, mas acho pertinente o questionamento que alguns pesquisadores, como o Mauricio Murad, o Ronaldo Helal e o Cesar Gordon Jr., fazem aos argumentos dele. O livro, definitivamente, não é uma fonte primária. É, evidentemente, uma narrativa que flerta com a literatura. Mas isso não quer dizer que não podemos trabalhar com a narrativa para discutir História. Outra coisa que os pesquisadores que fizeram a réplica ao Antonio Jorge afirmam é que ele estaria dizendo que não há provas materiais de que o racismo tenha sido tão preponderante na história do futebol brasileiro. Bom, é claro que teve alguma importância. O que eu disse na tese e desenvolvi em alguns artigos é o seguinte. O livro O negro no futebol brasileiro é um livro de história ou um romance? Se é um livro de história, deveria seguir os protocolos discursivos da História: verificação, autenticação das fontes, crítica dos documentos etc. Se é um romance, não poderia ser fonte histórica, é ficção. Olhando para o livro do ponto de vista dos estudos literários, que é a minha formação, não considero que seja um livro de história nem tampouco um romance. Entendo que seja um livro de memórias. O historiador contemporâneo trabalha com a memória. Mas ele sabe que não é uma fonte primária, não é um documento. É uma interpretação. E o Mário Filho nunca disse que não. É uma narrativa que está dando uma determinada versão dos fatos. Agora, se a gente pensa nele como um livro de memórias, é possível entender o processo do Mário Filho. Ele ouviu um monte de gente no seu trabalho de jornalista, conversou e entrevistou muitas pessoas. Ele traz para o livro coisas típicas do discurso memorialista, como a contradição e a multiplicidade. Tem um texto do Davi Arrigucci Jr. sobre o Pedro Nava que diz que o trabalho do memorialista é um trabalho que nunca fecha. O memorialista trabalha com cacos do passado e está sempre tentando dar coerência para esses cacos, mas nunca consegue. O discurso da memória é um discurso que lida com a multiplicidade. O livro do Mário Filho é isso. Ele tem um viés interpretativo, uma leitura da história do futebol brasileiro, mas ele também tem dentro dele uma multiplicidade de pontos de vista que muitas vezes são contrários ao eixo central da narrativa. Acho que tem tanto esse esforço pedagógico de construir uma memória nacional por esse eixo narrativo quanto uma incorporação daquilo que foge à coerência que essa interpretação quer construir. Acho que ele tinha consciência disso, de estar trabalhando com esse esforço impossível de dar ordem a esse caos que não tem ordem. O livro é interessante para o historiador, pois o fato bruto mesmo nunca está acessível a ele, nem mesmo nos documentos (risos).

Marcelino
Marcelino Rodrigues SIlva, discorre sobre o jornalismo esportivo atual e dos anos 1940, exemplificando o futebol mineiro com os mascotes de Cruzeiro eAtlético MG. Foto: Sérgio Giglio.

Você citou a Cosmogonia e “Era de Ouro” da crônica. Depois desses momentos, o que temos nas décadas seguintes no futebol brasileiro? Qual é a sua avaliação? Uma derrocada?

Muito interessante esse debate. Estamos no II Simpósio, um espaço bacana de discussão. Mas estou sentindo falta do debate sobre esse momento de realização de uma Copa do Mundo no Brasil. Estamos vivendo de maneira contraditória a expectativa pela Copa. Isso tem aparecido meio de tabela nas discussões. Eu tenho uma interpretação, que é um saque, um chute, uma leitura. Participarei de uma mesa em Belo Horizonte, na FAFICH, na semana que vem, com historiadores, sociólogos e antropólogos. Pensei: “como vou entrar nesse debate sem me fragilizar, pois não tenho o arsenal teórico-metodológico deles?”. Estou enxergando essa história toda como uma narrativa. Pediram um nome pra minha fala e eu mandei: “O que foi feito do país do futebol?” Fiz essa pergunta em uma dessas mesas recentes sobre Copa do Mundo, “e aí, o que foi feito do país do futebol?”. Esse ciclo mítico do futebol, essa narrativa de assimilação do futebol pelo Brasil e de afirmação do Brasil pelo futebol, é um ciclo que tem uma historicidade. Isso tem a ver com o populismo nacionalista, com Getúlio Vargas e os desdobramentos da Copa do Mundo de 1950. Com uma certa imagem da nação que o Brasil construiu não só através do futebol, mas a partir da cultura de forma geral. É o Brasil do samba, do carnaval e do futebol. O Brasil multicultural, que assimilou os negros, o Brasil da esperteza do malandro, criativo e alegre. Uma imagem do Brasil que, como qualquer imagem, é uma construção, não é uma verdade objetiva e absoluta. Esse ciclo tem uma historicidade e essa historicidade, de alguma maneira, está vencendo. Não é que o Brasil não goste mais de futebol, tampouco que o Brasil não queira sediar a Copa. Mas acho que o Brasil está dizendo algo desde a Copa das Confederações. Algo do tipo: “a gente não compra mais tudo”. De uma certa perspectiva, essa imagem de nação, do Brasil popular, que se constrói ao longo do século XX – da década de 1920 até a década de 1970 – tem uma contraparte política, para o bem e para o mal. Ela significa a legitimação da formação histórica e cultural do Brasil, de traços brasileiros que eram recusados anteriormente, mas ela serve também para justificar a ação e o poder do Estado, ou seja, os projetos políticos de maneira geral. É um pouco o projeto do Brasil criança, que será grande, que crescerá, que basta ser organizado para aproveitar bem nossa criatividade. Esse projeto talvez já não tenha a mesma efetividade simbólica. O mito que serviu para sustentar esse projeto talvez já não tenha mais a mesma efetividade simbólica porque o projeto se esgarçou. Esse projeto para a sociedade brasileira, do nacional-desenvolvimentismo, se esgarçou. Se pensarmos nas manifestações próximas à Copa das Confederações, o que as pessoas estavam dizendo: “Olha, gente, tudo bem, futebol é legal, Copa é legal, mas não usem isso como desculpa para torrar nossa grana e gastar milhões. Nós precisamos mesmo é de educação padrão FIFA, hospital padrão FIFA. Não vamos cair mais nessa conversa.” Acho que, de alguma maneira, é como se o Brasil estivesse afirmando: “eu não quero mais ser só o país do futebol, isso não é o mais importante”. É um sintoma do desgaste dessa história cultural, desse mito político construído também através do futebol. Isso se desgastou, como se não estivéssemos mais comprando tão fácil essa ideia. Sabemos que isso serve para esconder relações de poder, a mistura e usurpação do público e do privado. Isso não quer dizer que o brasileiro não gosta mais de futebol e não quer a Copa. Ou que o Brasil não seja capaz de gerar jogadores bons e seleções boas. Se essa história chegou ao final, se o Brasil deixou mesmo de ser o país do futebol, se esse ciclo venceu mesmo, isso só vamos saber na Copa do Mundo. Temos um cenário composto do que acontece no plano esportivo e do que acontece na sociedade. As duas coisas estão imbricadas: o que vai acontecer com a seleção e o que vai acontecer com as manifestações, com a maneira como o Brasil vai se engajar nisso. Tem uma tensão no ar, estou muito curioso para ver o que vai acontecer, como o Brasil vai se engajar nessa Copa do Mundo. Já começou um bombardeio publicitário enorme, mas imagino que poderia ter sido maior. Deve ter ocorrido um relativo recuo do capital no investimento que fizeram na Copa do Mundo. Acho que tem até uma espécie de timidez de quem quer defender a Copa. As pessoas não assumem publicamente. Outro dia o Abílio Diniz escreveu na Folha de S. Paulo. O primeiro que vi, fora do aparelho estatal, a falar: “vamos parar com essa bagunça e fazer a Copa”. Existe um tipo de interesse a sustentar essa posição. O que os intelectuais estão falando sobre isso? Todos estão vendo a ambiguidade, mas ninguém está falando “vamos parar e fazer a Copa”. Porque tem uma contradição nesse processo. Muitos devem estar pensando que é melhor fazer a Copa, que o recado já foi dado, mas poucos estão defendendo isso publicamente. Eu acho que esse modelo interpretativo que gerou esses dois ciclos precisa se renovar. Ele vai se deslocando… Vamos olhar para esse momento e interpretar de alguma maneira. Se o Brasil ganhar, pode ser que a interpretação seja uma repetição: “Ah, estamos de volta, o Brasil ainda é o país do futebol”. Pode ser que sim e pode ser que não. É um jogo que será jogado ainda. E de alguma maneira nós vamos interpretar e narrar essa história.

No que diz respeito ao encerramento do ciclo do Brasil como país do futebol, você acredita que o papel clássico dos cronistas sofre uma redução por causa do desgaste do mito ou não está relacionado a isso? O jornalismo esportivo hoje é pautado por um viés mais técnico e tático, e a informação preza por uma suposta objetividade…

Acho que isso é um pouco ambíguo também. Eu tenho trabalho nos últimos anos com a história do futebol em Belo Horizonte. Pode-se notar um movimento. Ok, a imprensa se modernizou, o jornal definiu melhor suas rubricas, seu papel, o próprio jornalismo passa por esse processo de profissionalização. Essas premissas indicam que o jornalismo se tornou mais objetivo. No entanto, às vésperas de um Atlético x Cruzeiro, o jornal faz a manchete: “Galo enfrenta a Raposa”. Essas nomeações, Galo e Raposa, foram inventadas por um artista plástico modernista, Fernando Pieruccetti, em 1945. O Galo encarna um determinado mito do Atlético, a Raposa um determinado mito do Cruzeiro. O Galo é raça e paixão, bom de briga; o Cruzeiro é trabalho e astúcia, a esperteza da raposa. Nós incorporamos essas imagens dos clubes de tal maneira que nem notamos que estamos reproduzindo uma criação artística, uma ficção inventada na década de 1940. Os limites entre a objetividade jornalística e a ficção jornalística às vezes são mais tênues dos que podemos imaginar. Será que existe informação sem opinião? Existe algum discurso que não tenha interesses cruzados; que não tenha algum sujeito falando de um determinado ponto de vista, que não incorpora interesses e ideologias?

A própria objetividade é uma ideologia…

Claro, a objetividade é um truque para esconder o sujeito e a linguagem. Roland Barthes chama isso de “ilusão referencial”. A objetividade é uma espécie de truque para esconder quem está falando, para esconder a mediação. Para fingir que o leitor está diante das coisas e não somente de alguém falando sobre as coisas, de uma versão das coisas. Acho que a maior parte do jornalismo está fazendo esse tipo de cobertura objetiva. Mas ele sempre está fazendo alguma leitura do que está acontecendo, de um jeito ou de outro. E existem espaços com maior liberdade na interpretação. Já tem um tempo que não acompanho tão de perto a imprensa esportiva, a cobertura sobre futebol, mas observo um pouco mais a imprensa de Belo Horizonte. A cidade tem um programa esportivo que, dependendo dos convidados, em certos momentos está ruim, outras vezes melhor, mas acho que o conceito dele é bem interessante. Estou falando do Alterosa Esporte. Em vez de ter um jornalista supostamente neutro na bancada esportiva, tem um torcedor do Atlético, um torcedor do Cruzeiro e um torcedor do América. E cada um oferece sua interpretação. O que é a verdade? É a fragmentação dos olhares daqueles jornalistas. Existem coisas no jornalismo que se assumem como interpretação e leitura. Não temos mais um Nelson Rodrigues, mas existem pessoas que escrevem bem sobre futebol. Não sei se o José Roberto Torero ainda está escrevendo, mas eu gostava muito do que ele escrevia. Ele assumia a ficção e a interpretação.

Confira a terceira parte da entrevista no dia 28 de janeiro.

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