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Marcelo Weishaupt Proni

Marcelo Weishaupt Proni é professor livre docente da Universidade Estadual de Campinas e ex-diretor associado do Instituto de Economia. Tem experiência de ensino e pesquisa nas seguintes disciplinas: desenvolvimento econômico, mercado de trabalho, políticas públicas. Realiza estudos sobre economia do esporte, marketing esportivo e futebol-empresa. É autor do livro A Metamorfose do Futebol.

Marcelo Proni
Marcelo Proni. Foto: Sérgio Settani Giglio.

Primeira parte

Proni, quais são suas lembranças dos primeiros contatos com futebol?

Eu sou de Ribeirão Preto. Minhas primeiras memórias são de ir ao campo com meu pai para ver o Botafogo jogar. Também me lembro de assistir com meu pai os videotaipes que passavam na televisão. Naquela época, os jogos não eram transmitidos ao vivo. Estamos falando do começo dos anos 70. No domingo à tarde tinha um jogo do Botafogo no estádio, ou ouvíamos o jogo pelo rádio. E à noite passava um jogo de um time grande de São Paulo. São minhas recordações de como me tornei torcedor. Claro, também jogava bola com meus amigos, quase todos os dias, na escola, no clube e nos campinhos de futebol que a gente improvisava em terrenos baldios.

Nesse momento inicial, de relação com o clube local, como a seleção brasileira aparecia nesse cenário?

Eu sou de 1964. Minha primeira memória da seleção brasileira é de 1970, mas eu era muito pequeno, tinha seis anos quando a seleção foi tricampeã. Eu ainda era novo para entender o que estava acontecendo. Em 1974, com 10 anos, já entendia um pouco mais como funcionava. Naquela época havia muita rivalidade entre São Paulo e Rio de Janeiro, isso era muito importante para os torcedores e para a mídia especializada. Naquela época o Pelé estava parando de jogar. A minha avó, com quem eu tinha uma ligação muito forte, torcia pelo Santos. Ela e a minha tia eram apaixonadas pelo Pelé. Eu cheguei a ver o Pelé jogando uma vez quando o Santos foi jogar contra o Botafogo em Ribeirão Preto, mas ele já estava próximo de parar. Nessa época vimos o final de um ciclo da seleção brasileira. Eu lembro bem da derrota para a Holanda em 74, algo que pegou de surpresa a imprensa esportiva. Aqui no Brasil não tínhamos muita notícia do que acontecia na Europa, ninguém transmitia as partidas. A seleção da Holanda encantou o mundo em 74 e para nós foi uma surpresa. Havia uma grande diferença no modo como a seleção brasileira jogava e o modo de jogar da Alemanha e da Holanda, principalmente os holandeses, que foram a sensação da Copa.

Quais foram os episódios que mais te marcaram?

Bem, eu passei por vários episódios. Na derrota da Copa de 1982 eu tinha 18 anos. Em relação à seleção, acho que foi o jogo mais marcante. Mas, minhas lembranças mais marcantes são como torcedor do meu time do coração. Em 1977, vim com o meu pai, que era da diretoria do clube, para Campinas acompanhar o Botafogo. O time havia ganho o primeiro turno do Campeonato Paulista, tinha a melhor campanha, e quando chegou na terceira fase veio jogar em Campinas. Estávamos ganhando de 1×0, gol do Zé Mário (um ponta-direita muito bom, que chegou a ir para a seleção brasileira), e a diretoria da Ponte-Preta cortou a luz do estádio, desligou os refletores. O jogo foi suspenso. Na saída do estádio, lembro-me das pedras da torcida da Ponte quebrando as janelas do ônibus no qual eu estava. Nessa época, eu vivia o futebol como torcedor vendo os jogos no estádio. Depois fui me distanciando um pouco disso, vim para Campinas, minha vida seguiu outra trajetória, passei a acompanhar o futebol pela televisão.

E como o futebol, posteriormente, se tornou um tema de pesquisa?

Para mim, o futebol se tornou objeto de estudo só no doutorado. Foi um processo tardio. Fiz a graduação e mestrado em Economia. Achei que precisava mudar de área no doutorado, queria algo que me desse mais prazer. Tive sorte de reencontrar o Ademir Gebara, que veio a se tornar meu orientador no doutorado. O Ademir é historiador e tinha um grupo de orientados no Departamento de Estudos do Lazer da Faculdade de Educação Física da Unicamp. Isso foi em 1994. Posteriormente, fui convidado para participar de uma pesquisa sobre economia do esporte. Então, comecei estudando a história do esporte com ênfase na mercantilização do esporte, depois coloquei o foco no futebol, na emergência do futebol-empresa. A coroação desse processo veio com o meu livro, A Metamorfose do Futebol, publicado em 2000. Enfim, durante o doutorado minha formação acadêmica ganhou um sentido novo. Eu consegui conciliar minha formação de economista com aquele aprendizado novo nas áreas de História e de Sociologia. O futebol não era apenas um tema de pesquisa, era um campo de estudo multidisciplinar que me permitia entrar em contato com diferentes abordagens teóricas.

Quando você defendeu sua tese “Esporte-espetáculo e futebol-empresa”, em 1998, a Lei Pelé tinha acabado de ser aprovada, gerando grandes expectativas, principalmente no que se refere à Lei do Passe. Como você analisa hoje os impactos dessa lei?

Naquela época, segunda metade dos anos 90, o país estava passando por um processo de intensas mudanças e predomínio do discurso neoliberal. Em relação ao futebol, especificamente, havia uma situação ambígua. Por um lado, as forças progressistas queriam moralizar o futebol, combater os desmandos dos dirigentes, acabar com a Lei do Passe, tida como uma lei que escravizava os atletas, e ainda modernizar a gestão dos clubes. Todas essas mudanças citadas eram vistas pela imprensa esportiva como benéficas e necessárias. Mas a maneira como isso estava sendo conduzido, desde a Lei Zico, e que depois se aprofunda com a Lei Pelé, apontava para uma mudança na relação do clube com os torcedores, da penetração dessa lógica do mercado nas relações sociais e no âmbito da cultura. Havia essa preocupação, da minha parte, tanto do ponto de vista político e social, em entender o que representava esse processo de modernização. Acho que os desdobramentos posteriores acabaram confirmando minha interpretação.

A minha tese de doutorado tem dois movimentos. Num primeiro momento, a tese procura tratar do esporte-espetáculo e mostra como isso é um movimento mais geral. Um movimento de mercantilização e espetacularização que acontecia em todas as modalidades esportivas. Novas formas que inclusive alteravam as próprias regras do jogo. Essa penetração de interesses econômicos no esporte foi responsável por uma transformação que vai acontecendo ao longo do século XX e se intensificou na tal da era da globalização. Feita essa compreensão de um nível de determinação mais geral, podemos olhar processos históricos específicos. Do ponto de vista do surgimento do futebol-empresa no Brasil, era importante distinguir os determinantes externos e internos, assim como entender como o campo esportivo se relacionava com as conjunturas econômica e política. Observei, de um lado, as relações de concorrência que havia entre os clubes brasileiros e os clubes europeus. Como esse processo havia avançado na Europa, o Brasil precisava responder, assim como acontecera na época da profissionalização dos atletas nos anos 30. A profissionalização era uma pressão provocada de fora para dentro, mas a maneira como as resistências foram superadas refletem a correlação de forças internas. Aconteceu um processo análogo nos anos 90. Havia um ambiente econômico que deixava o futebol brasileiro muito vulnerável à concorrência externa e o descompasso em relação ao futebol-empresa na Europa tornava a modernização uma necessidade. Havia uma pressão externa para que ocorresse uma profissionalização da gestão e para reduzir a dependência em relação ao Estado. Por outro lado, era preciso entender os determinantes internos, como o jogo político e as relações de poder condicionavam esse processo em âmbito nacional. A minha tese foi para mostrar esses diferentes níveis de determinação, combinando as transformações estruturais, mais gerais, com a análise dos interesses em disputa, numa conjuntura específica, explicitando quais eram os principais atores, o que eles defendiam. É fácil constatar que em cada país esse processo se revelou de uma maneira particular, alcançando resultados distintos, assim como constatar que as mudanças produzem vencedores e perdedores. Essa era a concepção geral da tese. Mostrar que havia diferentes níveis de determinação para compreender essa metamorfose que estava acontecendo, ora tida como “revolução”, ora como “modernização conservadora”.

E qual era a base desse projeto neoliberal em curso na década de 90 no futebol brasileiro? Como essas relações econômicas e esportivas se desenvolveram?

Uma dos principais argumentos do meu livro se baseia na análise dos editoriais do jornalista Matinas Suzuki, na Folha de São Paulo, que defendia vigorosamente essa modernização. Se você observa o discurso, o que era proposto? Um choque de capitalismo. O futebol brasileiro precisava copiar o modelo europeu. Havia relações muito arcaicas e essas relações precisavam ser modernizadas em diversos espaços, principalmente na gestão dos clubes e federações. O problema é que eu, como economista formado na Unicamp, via com desconfiança essa apologia ao capitalismo desregulado e era reticente em relação à ideia de que a solução viria pelo mercado. Falar em “choque de capitalismo” me parecia uma coisa muito perigosa. Esse projeto neoliberal, na época, era baseado na ideia da liberalização econômica, tanto comercial como financeira. Liberalização no sentido de dar mais autonomia ao setor privado para alavancar o futebol como negócio. No caso do esporte, isso começou com a Lei Zico e o fim do CND, visto como entulho autoritário de regimes anteriores, herança do Getúlio Vargas. Havia uma tradição de presença muito forte do Estado disciplinando os clubes, regulando as competições esportivas em geral. A partir de 1988, com a nova Constituição, uma das providências foi acabar com essa herança do regime militar, levando à extinção do CND. Na sequência, aumentou a pressão pela liberalização das regras no campo esportivo, que se concretiza com a Lei Pelé. E a Lei Pelé espelha uma nova relação do Estado com a sociedade, do Estado com o esporte, do Estado com o futebol profissional. É curioso como o discurso inverte o sentido das coisas. Do ponto de vista econômico, a intervenção dos governos no esporte foi no sentido de garantir as condições de reprodução do futebol profissional: construindo estádios, assegurando a lei do passe, criando uma fonte de recursos com a loteria esportiva. A Lei Pelé, em sintonia com aquele projeto neoliberal, propunha um novo papel para o Estado em relação ao futebol, dando maior independência para a confederação, federações e clubes se auto-organizarem. A ironia é que, sempre que surge uma crise ou dificuldade, pede-se ajuda ao Estado. O futebol tem sido gerido como negócio, os grandes clubes são administrados como empresas, atletas e empresários estão ganhando muito dinheiro, mas os problemas continuam: corrupção, endividamento, violência, calendário… Para realizar a Copa do Mundo, foi preciso dinheiro público para reformar ou construir novas arenas, necessárias para acompanhar o modelo europeu. Inclusive agora, com a discussão da medida provisória para equacionar as dívidas dos clubes, mais uma vez a gente vê que a modernização conservou o uso político do futebol.

O que estava em jogo lá atrás era a liberalização para a penetração de grupos empresariais na condução dos clubes e aquisição de ativos esportivos. De fato, aconteceu. A ideia era que os investidores, principalmente estrangeiros, iriam colocar dinheiro e os clubes iriam se tornar independentes financeiramente. Esse era o discurso na época. Só que isso trazia contradições, pois colocava em questão o entendimento de que o futebol era uma espécie de patrimônio público, que os times pertenciam à “nação corintiana”, à “nação rubro-negra” e assim por diante. Ou seja, a relação entre torcedor e clube era muito diferente da ideia de “cliente” ou “sócio-torcedor” como é hoje. Naquela época se falava muito em democratização do futebol. Mas, numa modernização via mercado não há espaço para uma democracia substantiva, o que aconteceu foi a transferência do poder para as mãos de outros “donos”, enquanto os atletas continuaram sem voz e alguns torcedores ficaram sem time (pela possibilidade de mudar de cidade). Essa era a minha desconfiança na época em relação ao sentido dessa modernização, desse projeto que queria a retirada do Estado, mas que introduzia um modelo que ampliava as desigualdades econômicas e sociais. Eu, como torcedor do Botafogo de Ribeirão Preto, tinha muito receio que esse processo significasse uma ampliação da distância entre o time grande e o time pequeno, uma exclusão daqueles que não conseguiam concorrer na nova ordem criada, marcada pela concentração de riqueza nas mãos de poucos clubes, levando assim ao fim dos campeonatos estaduais. Não dava para saber o que exatamente iria acontecer, mas as tendências eram claras.

Como você observa atualmente os impactos da modernização e da globalização nas identidades regionais, tendo em vista um pouco do que já se anunciava na tese?

Na minha época era muito raro encontrar uma criança ou um jovem que torcesse por um clube da Europa. Não existia essa facilidade para ver as partidas. Isso começou a mudar, lentamente, na década de 80, com a transmissão de jogos ao vivo. É difícil avaliar, mas talvez, do ponto de vista do torcedor, o importante seja se identificar com um clube. Aos poucos, os jovens passaram a torcer pelo Real Madrid do Ronaldo, pelo Barcelona do Ronaldinho, pelo Milan do Kaká. Não sei avaliar o impacto, do ponto de vista da cultura futebolística, qual a diferença entre uma criança que cresce torcendo por um clube campeão da Champions League em vez de torcer para o clube da sua cidade. É uma outra relação. A experiência de ir ao campo, de crescer indo ao campo vendo seu time jogar é diferente da experiência de ver os jogos pela televisão. Eu não sei avaliar esse impacto. É uma questão cultural, subjetiva. Na minha época de criança e adolescente não havia tantas opções de entretenimento. E todo mundo falava de futebol, de alguma maneira torcia para um clube. Hoje em dia muitos jovens não se interessam por futebol, preferem outras modalidades esportivas, descobrem e curtem outras coisas. Há 40 anos as coisas eram diferentes, não necessariamente melhores. Essa dimensão regional tinha um significado importante, as rivalidades clubísticas eram muito fortes. Em Ribeirão Preto, havia o Come-Fogo, era algo que agitava a cidade inteira. Hoje em dia, quando acontece esse clássico, não tem mais o mesmo impacto. Por outro lado, nas principais capitais do País continua havendo uma rivalidade muito grande entre torcidas, só que a violência agora é muito maior, ganhou uma dimensão social bem mais grave. É um bom exemplo de como um processo social mais amplo se manifesta no futebol. Antigamente, as torcidas uniformizadas brigavam no estádio, mas era algo sem maiores consequências. Com o passar do tempo, as torcidas organizadas se tornaram tropas de combate. Esse fenômeno dos hooligans tem raízes que extrapolam o campo esportivo, se manifesta em diferentes países ou regiões, mas é perpassado pela questão das identidades regionais e tem relação com as rivalidades locais.

Com a globalização os clubes grandes se esforçam para disputar a Libertadores e ganhar prestígio internacional. Se o clube não participa da Libertadores parece que o calendário fica um tanto vazio. Antigamente não havia essa disparidade enorme na capacidade de receita dos clubes. A receita vinha mais das bilheterias. Alguns de fato tinham mais público que outros, mas isso não gerava um desequilíbrio muito grande. Havia sim uma distância entre um time da capital e um time do interior, assim como havia um poder financeiro um pouco maior dos clubes grandes de SP e RJ frente aos das outras capitais. Hoje existe uma tendência de desequilíbrio crescente na capacidade de gerar receita dos clubes, que provoca um descompasso muito acentuado entre as equipes. Isso me preocupa. Existem diferentes modelos de organização de ligas. Em alguns países a gente percebe uma distribuição das receitas mais justa. No caso do Brasil, especialmente após a extinção do Clube dos 13, essa repartição é muito desigual, poucos clubes concentram a maior parte das receitas dos direitos de transmissão. No caso de patrocínio, observamos grandes diferenças, principalmente envolvendo os clubes que conseguem ir para a Libertadores e conseguem um pouco mais de visibilidade na televisão. Alguns especialistas chegam a falar em risco de “espanholização” do futebol brasileiro.

Ainda pensando em tempos de globalização, como ficam os estilos nacionais nessa configuração?

A ideia de que cada país tem um estilo próprio de jogar futebol está ultrapassada. Claro, existem diferenças entre seleções nacionais tanto no plano tático como no plano técnico, mas isso tem pouca relação com a existência de “escolas” distintas. A oposição entre futebol-força e futebol-arte também não faz mais sentido. Acontece que, de tempos em tempos, aparece uma seleção que encanta o mundo pelo jeito de jogar, como foi a Hungria em 1954, o Brasil em 1970, a Holanda em 1974, o Brasil em 1982, a Espanha em 2010. Muitos tentam copiar o esquema tático ou os métodos de treinamento, mas poucos conseguem a mesma eficiência e criatividade. Só que eu gostaria de falar de outra questão: a ideia de que o futebol-empresa impõe um modo único de organização das ligas e de gestão dos clubes.

A globalização não apaga as diferenças nacionais. É um determinante mais geral, que se sobrepõe às estruturas e instituições locais. Todos os clubes, federações, ligas que fazem parte desta ordem esportiva internacional são afetados, precisam responder à expansão desses mercados globalizados de futebol. Mas as diferenças nacionais permanecem. Do ponto de vista da estrutura de propriedade dos times e da organização das ligas, Espanha é muito diferente de Inglaterra, que é diferente de Itália ou da Alemanha, por exemplo. É claro que existem alguns princípios comuns do “futebol-empresa”. Mas em alguns países os clubes permanecem como associações sem fins lucrativos, em outros foram transformados em sociedades anônimas. No Brasil, é difícil para o Corinthians ou o Flamengo adotar o modelo do Manchester United. É difícil transformar esses clubes em empresas com capital aberto na bolsa de valores. Recentemente, orientei uma monografia de um aluno que estudou este tema. O que é preciso para que um time de futebol seja aceito numa bolsa de valores? Algo que deu certo em poucos países, mas não se generalizou. Segundo o estudo, o cenário brasileiro está muito distante desse modelo. Em alguns países existem clubes que são propriedade de grandes empresas. Aqui no Brasil isso não vingou, por enquanto. Então, as diferenças nacionais persistem. Existe uma tendência, pelo menos no plano discursivo, de dizer que precisamos copiar e transplantar esses modelos europeus, mas na prática não é isso que estamos vendo, há muitas resistências, inclusive políticas. A CBF não quer a criação de uma liga, a Rede Globo também não tem interesse. A globalização traz a concorrência entre as empresas, entre os clubes, para outro nível. É outro padrão de concorrência. Hoje em dia, para um clube de futebol ser competitivo, ele tem que ser capaz de alcançar mercados em outros países. Não é à toa que vários clubes grandes da Europa estão, intencionalmente, indo para a Ásia e EUA em busca de mercados. Essa é uma condição essencial para poder concorrer nessa nova ordem. Isso é uma determinação mais geral. As configurações, normas e formas de organização podem mudar muito de um lugar para o outro.

Poderíamos falar de um processo de imperialismo nascente no futebol mundial?

O imperialismo, no seu sentido clássico, implica dominação numa dimensão política e numa dimensão econômica. Uma junção de políticas externas de Estados nacionais alinhadas com os interesses de grandes corporações. Como desdobramento, pode-se falar em “imperialismo cultural”. Nas últimas décadas, surgiu uma nova forma de imperialismo em razão da globalização. Foi intensificada essa penetração da lógica mercantil nas esferas de sociabilidade, na cultura de forma geral, e isso aconteceu em todos os países. Mas, no caso do futebol é difícil falar em imperialismo, uma vez que a potência hegemônica, os EUA, não tem protagonismo no cenário internacional, enquanto o Brasil e a Argentina aparecem como players mundiais.

Em vez de falar em imperialismo, prefiro falar que a globalização ajudou a ampliar o “sistema centro-periferia” do futebol mundial. Há uma concorrência acirrada entre as principais equipes europeias, que importam os principais jogadores de países da periferia (em especial, América do Sul, África, Europa Oriental) e exportam o espetáculo para todos os continentes (inclusive América do Norte e Ásia). É o chamado “desenvolvimento desigual e combinado”, isto é, o desenvolvimento capitalista nas áreas mais avançadas está articulado com a integração subordinada das áreas mais atrasadas. Penso que a FIFA desempenhou um papel essencial na consolidação desse sistema centro-periferia e na difusão de um modelo europeu de organização clubística e federativa. Embora as principais ligas de futebol da Europa tenham adotado estratégias agressivas para conquistar mercados e amplificar receitas, as regras impostas pela FIFA ainda limitam o domínio dos times mais ricos. Nas últimas décadas, a FIFA se transformou numa grande corporação transnacional e flexibilizou suas regras para atender interesses econômicos. Mas, acho que esses vetores “imperialistas” ainda encontram limites de várias ordens. E, agora, com a chegada da China, tudo indica que a relação de forças vai se alterar na próxima década.

Voltando ao tema das cotas de TV. O modelo inglês é tido como um case de sucesso. É possível pensar em algo semelhante para o Brasil?

Sim, é possível. Mais do que isso, é desejável. Vários clubes, que se veem prejudicados, querem isso. Mas não é tão simples. O que acontece no futebol profissional é muito parecido com o que acontece em outras áreas econômicas. O futebol é um espelho da sociedade, da economia brasileira. Existem relações de poder, com interesses econômicos muito evidentes. O princípio que justifica a formação de uma Liga é justamente a ideia de que existe uma interdependência entre os clubes. No esporte profissional americano a ideia é sempre valorizar as franquias. Para valorizar a liga, todos os clubes têm de ter condições mínimas de competição. O rateio das cotas de televisão, por exemplo, é mais equilibrado. O modelo europeu de organização esportiva é diferente do norte-americano. Não é uma liga com franquias. Na Europa prevalece o modelo federativo, com acesso e descenso. Esse modelo está baseado em uma maior desigualdade entre as equipes. Essa desigualdade se manifesta numa hierarquia: primeira divisão, segunda, terceira. O que foi feito na Inglaterra? Criou-se uma Liga separada da Federação para poder organizar a competição, o torneio, fazer a relação comercial, representar os interesses das equipes. No caso do Brasil, buscou-se isso com o Clube dos 13. Mantinha-se a organização do Campeonato Brasileiro nas mãos da CBF, mas os contratos comerciais eram feitos pelo Clube dos 13. Isso foi implodido em 2009. O Clube dos 13 já tinha uma distribuição de cotas diferenciada entre os clubes, mas a diferença não era tão grande. Agora, para adotar o modelo inglês seria preciso criar uma Liga independente da CBF, uma Liga que contemplasse os interesses de todos os membros e adotasse uma regra mais justa na distribuição do dinheiro pago pelos direitos de transmissão. É esse ponto que está em questão agora. Por que a CBF não queria aceitar a criação da Primeira Liga? Existe uma resistência à criação de uma Liga que pode ser o embrião de uma Liga nacional. Imagino que nos bastidores seja essa a discussão. Quem negocia os contratos? Flamengo, Corinthians e Rede Globo preferem que os contratos sejam individualizados, um modelo parecido com o da Espanha.

Aconteceu recentemente a mobilização #OcupaCBF, contra a administração da entidade e os escândalos envolvendo seus dirigentes. Como você analisa esse movimento? Será que existe uma mudança efetiva ou é uma mudança somente de peças que já fazem parte do jogo político da entidade?

Eu vejo na Europa, em relação à UEFA e à FIFA, um movimento de tentativa de alteração da atual estrutura de poder. Não é uma coisa que está acontecendo só no Brasil e na CBF. Novamente, como falei, existem momentos em que a pressão por uma mudança vem de fora, de instâncias superiores e encontra uma reação positiva no âmbito interno. Estamos vivendo um momento em que as grandes estruturas de poder do futebol estão ruindo, apresentam rachaduras. Não sei qual será o desdobramento disso. Não sei até onde o Blatter consegue se segurar, se ele vai conseguir fazer seu sucessor, em que medida o que está acontecendo vai representar uma mudança de fato ou só uma troca de atores. É uma questão importante. Se houver uma mudança mais substantiva na FIFA, isso pode gerar uma reação em dominó, que acaba chegando às pontas. Se for possível mudar a maneira como a política é feita dentro da FIFA – esquema de troca de favores criada na era do Havelange –, pode-se pensar em mudanças no Brasil, mas isso também depende de até aonde vai o interesse dos atores nacionais em uma mudança do status quo. O ambiente no país hoje é de muita revolta contra qualquer forma de corrupção. A sociedade brasileira clama por transparência e conduta responsável das autoridades públicas. A CBF e o futebol são entendidos, pela sociedade, como algo público, embora a entidade seja privada. Não temos capacidade de impor uma mudança, ou fazer uma intervenção tal como se fazia no regime militar, quando o Governo Federal intervinha, mudava o dirigente. Agora não é mais assim. Mas eu acho que existe uma expectativa da sociedade de quebrar com essas relações viciadas de poder. Vi uma entrevista do ex-jogador Raí falando sobre isso. Existe um ambiente político nacional favorável a isso. Essa perda de legitimidade da CBF reflete esses dois movimentos: a crise política na cúpula da FIFA, que atingiu o presidente da CBF; e a insatisfação de dirigentes de clubes, jogadores, jornalistas e até patrocinadores, que vai minando as bases de sustentação do quadro atual. Hoje a escolha do presidente da CBF depende dos votos das federações estaduais e dos clubes das séries A e B. Aumentou o número de atores envolvidos. A questão é saber em que medida esses presidentes de federações e clubes representam, para além dos seus próprios interesses, essa ansiedade da sociedade, essa mobilização contra a manutenção do status quo. Esses presidentes serão pressionados a legitimar sua escolha perante a opinião pública? Se para valorizar o produto e atrair investimentos não pode haver escândalos e incertezas, é possível que os interesses econômicos em jogo exerçam pressão para a adoção de uma gestão mais idônea e transparente. Contudo, não vejo sinais de uma mudança significativa no curto prazo, pois o futebol-empresa no Brasil tem convivido sem grandes tensões com uma estrutura política autoritária e com um estilo de gestão personalista e pragmático.

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Vitor dos Santos Canale

Licenciado em História pela Universidade Estadual de Campinas, Mestre em Educação Física pela Unicamp. Principais interesses: Torcidas Organizadas, Torcedores, Museus Esportivos e Crônica Esportiva.

Gustavo Higa

Estudante de educação física. Apaixonado pelo esporte e todas as histórias por trás dele.

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