06.6

Margarete Maria Pioresan – Meg (parte 2)

Margarete Maria Pioresan, a Meg, foi uma pioneira. Goleira de handebol e futebol, atuou pelas seleções brasileiras das duas modalidades, tornando-se uma referência dentro do universo esportivo brasileiro. Essa entrevista faz parte da pesquisa Memórias Olímpicas por Atletas Olímpicos desenvolvida pelo Grupo de Estudos Olímpicos da USP sob a coordenação da professora Drª Katia Rubio. Essa pesquisa conta com apoio financeiro da FAPESP. 

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Margarete Maria Pioresan no gol da seleção brasileira. Foto: Arquivo pessoal.

 

Segunda parte 

Como foram suas relações com os técnicos?

Foram ótimas, muito boas. Tinha o técnico da seleção, o técnico geral, de campo, que gerencia o grupo; e tinha o técnico de goleira. Eu tive um grande treinador de goleira, o Renato Fonseca, que me acompanhou no Vasco durante vários anos, viajou comigo para a Suécia em 1995. Depois mudou a comissão técnica, veio o Zé Duarte, com a comissão técnica dele de São Paulo. O meu técnico foi o Sérgio, que foi goleiro do Juventus/SP. Foi um grande goleiro e um grande técnico. Em 1991, na China, eu também tive um técnico que foi goleiro em campo. Minha relação sempre foi boa com todos os técnicos, toda a comissão, ou quase toda. Mas isso não vem ao caso. O que importa é que fechamos o ciclo.


Você falou dos momentos anteriores e da chegada a Atlanta. Vocês participaram da abertura?

Não, porque estávamos em Washington. Na verdade, o futebol masculino e feminino não foi em Atlanta na primeira fase. Algumas modalidades começam antes, outras depois, mas vários foram para Atlanta, ficaram na vila olímpica, jogavam nos estádios, pistas. Em Atlanta, o parque aquático era dentro da vila. Mas o futebol não foi. As sedes eram em Birmingham, Washington DC. Nosso primeiro jogo, contra a Noruega, foi em Washington, num estádio que foi adaptado para o futebol de campo, mas é um estádio de beisebol, antigo. Nós jogamos ali a primeira partida, contra a Noruega.

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Meg com uniforme de goleira para foto oficial antes da partida. Foto: Arquivo Pessoal.


O que você lembra desse jogo?

Eu lembro o seguinte: poxa, vamos entrar e jogar contra a Noruega, que tinha uma puta seleção, que tinha ido para a final contra a Alemanha um ano antes, num grande jogo. Nós não assistimos porque não passamos da primeira fase e não passava na televisão aqui. Mas foi para a final, tinha nomes grandiosos, eram as tops. Pensava: “nós vamos ter que correr, não sei o que vai acontecer, mas nós vamos encarar”. Empatamos 2×2, fizemos um grande jogo. Mas era só bombardeio. O que nós tínhamos? Grandes jogadoras. Mas ainda nos faltava traquejo internacional, jogos amistosos antes de ir para uma grande competição. Nós ficamos treinando aqui no Brasil contra equipes daqui, contra equipes sub-15 de homens. Ficávamos na Granja Comary e ia para lá o sub-15 do Vasco da Gama, o sub-17 do Bonsucesso. Se jogássemos contra meninas não iríamos ter muito aproveitamento. Claro, treinamos, mas não conseguíamos segurar por muito tempo a parte tática. Aquela segurança, a mexida de bola aqui e ali, a aproximação. Éramos mais tacados do que atacávamos. Quando pegávamos a bola, não conseguíamos sair organizados. Perdíamos muito a bola, então tinha que correr e cansava. Essa partida foi assim. Saímos com 2×2 e para nós foi uma vitória. Nessa partida eu machuquei um dedo na trave. Foi no segundo tempo. Mas eu fiquei no jogo. Depois do jogo meu dedo ficou enorme. Uma lembrança ruim. Eu fui dali mesmo para um hospital de Washington, com um dirigente e o médico. Fiz uma fissura. Fiquei de fora do segundo jogo, que foi em outra cidade. Acho que foi em Birmingham. Viajamos de ônibus. Fiquei de fora no jogo contra o Japão. O técnico me chamou e perguntou se eu tinha condições de jogar. Eu falei: “eu não vou jogar, se você me permitir, para não prejudicar a equipe. Porque meu dedo ainda não está fechando e preciso da minha mão em condições”. Fizemos uma reunião com o médico e foi aprovado assim. Mas quando chegou no terceiro jogo, em Birmigham, precisávamos empatar. No jogo contra o Japão ganhamos de 2×1. Contra a Alemanha precisávamos empatar. O treinador me chamou e disse: “eu quero te pôr jogo. Você tem condições?”. Eu disse: “eu tenho”. Depois de 15 dias, o dedo já não estava mais inchado, fiz uma tala, o médico liberou. Estava com dor, mas a dor para o atleta nessa hora não conta. Você não pode deixar de fazer os movimentos que você precisa. Olha só o dilema: nós precisávamos de um empate contra a Alemanha, que tinha sido campeã mundial no ano anterior. E tinha uma grande goleira, tinha a Birgit Prinz, centroavante que disputou algumas competições contra a Marta e que estava começando, uma grande atleta. A Alemanha era poderosa. Nós tínhamos perdido da Alemanha de 6×1 no ano anterior. Não vimos a cor da bola. Era uma missão ingrata. Mas eu falava: “é o meu sonho, tenho que ir para Atlanta, tenho que ir para a Olimpíada. Eu estou na Olimpíada, mas eu não estou”. O jogo foi bem difícil, mas conseguimos empatar 1×1. Sinceramente, são tantas emoções, que não lembro quem fez o primeiro gol, nós ou elas. Acho que fizemos o primeiro e elas empataram. Só sei que eu tinha um cordão que eu usava, que o meu falecido pai me deu, com um crucifixo e uma santinha. Sabe coisa de amuleto? O jogo não acabava, as alemãs vinham para cima da gente, a Prinz tinha 16 anos e jogava, só pensava que o jogo tinha que acabar. O estádio cheio, a gente não escutava ninguém, nem o que o técnico falava. Ninguém escuta nada. Eu pegava aquele cordão: “Meu Deus do céu, se o senhor existe, abaixa suas asas aqui, acaba esse jogo”. E a emoção não podia tomar conta, pois não podíamos perder a razão. Nós não podíamos perder a razão. Só sei quando apitou o final do jogo… Eu tenho até hoje uma foto, não sei quem bateu… Eu caí, caí. Beijei aquele amuleto. Só pensava: ‘nós vamos para Atlanta, nós vamos para Atlanta’. Aí a emoção tomou conta… Nós fomos para Atlanta, foi muito emocionante: arrumar as coisas para irmos, chegarmos na Vila Olímpica, com todo aquele aparato de Vila Olímpica. Ninguém tinha ido, era a primeira vez do futebol feminino. Parecia um sonho: atletas, carrinhos, primeira alimentação, onde estava nosso centro do COB, os horários de sair para treinar, tudo certinho, tinha ônibus para levar aos treinos. Chegava no treino, tudo era Atlanta, marketing para cá, bebida isotônica para lá, presente para cá. Nos levavam de ônibus num lugar que tinha presentes. Isso era Atlanta.


Essa nova estrutura interferiu em alguma coisa para vocês, do ponto de vista da competição, do desempenho atlético etc.? A Vila tinha uma dinâmica diferente da que vocês tinham tido até então…

Não, nós tínhamos boa alimentação, horários para treinos. A dinâmica diferente foi mais visual. Os atletas estavam todos ali. Nós tínhamos que focar. Não saíamos juntos para tomar café. O horário do café era de tanto a tanto. Tínhamos que estar ali em determinado horário. Quando estávamos fora de Atlanta, saíamos todas juntas para o treino, para o café. Mas ali não. Nós podíamos bater foto. Imagina quem eu encontrei em Atlanta? Essa foto é eterna, tenho em casa até hoje. Eu encontrei o Muhammad Ali, o Cassius Clay. Foi ele quem acendeu a pira olímpica. Ele estava passeando ali, um monte de gente atrás dele. Eu estava com a minha máquina, precisava bater uma foto com aquele cara. Ele foi o melhor boxeador do mundo. Tentei, mas ninguém me deixava chegar perto. Ele tinha que me ver. Acenei. Ele já estava com Parkinson. Aí ele me chamou. Aquilo foi de arrepiar. Os seguranças saíram e eu bati uma foto com ele. Tenho a foto até hoje. São essas coisinhas que foram acontecendo. Tudo acontece ali.

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A trajetória de Margarete Maria Pioresan no esporte. Foto: Arquivo Pessoal.

E vocês estavam na fase final do futebol…

Sim, estávamos Brasil, Noruega, China e Estados Unidos. A Alemanha ficou no nosso hotel. Empatamos e elas super patrocinadas pela Mercedes-Benz. Quando voltamos para o nosso hotel em Birmigham, elas estavam desoladas. Nós, que tínhamos levado de seis delas um ano antes, íamos para Atlanta. Deu pena, pois era uma grande equipe. A Silvia Neid jogava. Joguei com várias atletas que hoje são técnicas. A Silvia é técnica da Alemanha. E eu lembro até hoje que quando chegamos ela me cumprimentou. Eu disse: “sorry”. São várias histórias. Então, foi Brasil, Noruega, China e Estados Unidos. Pegamos a China e estávamos ganhando de 2×1, faltando sete minutos, caindo pelas tabelas, cansadas, já numa fase de falta de preparo físico, com talento e raça. E aquele estádio cheio, pensei: “Meu Deus, vamos para a final, está acabando o jogo”. Ninguém escutava nada no estádio. O técnico botou duas chinesas sangue novo no final do jogo, elas viram o jogo para 3×2. Nós não tínhamos mais forças. A China ganhou do Brasil e as americanas ganharam da Noruega. Na final, Estados Unidos e China. Os EUA foram campeões. E nós fomos de novo jogar contra a Noruega, para decidir o terceiro lugar. Foi um baita jogo. Elas vi9eram para cima, mordidas. Fizemos um grande jogo, mas perdemos de 2×0. Mas a medalha escapou no jogo contra a China, pois se ganhássemos dela iríamos para a final contra as americanas. E eu teria uma medalha (risos). Imagina, numa primeira olimpíada, mesmo com a falta de preparo, conseguir trazer uma medalha de prata? Bom, se chegasse à final, talvez não fosse tão difícil ganhar a medalha de ouro, pois você iria dar tudo, iria morrer ali dentro. Mas não foi assim que aconteceu. Ficamos em quarto, fizemos uma grande campanha, muito boa mesmo, e eu encerrei minha carreira no futebol na seleção com a cabeça erguida, com muita honra. A nossa geração dedicou-se ao máximo, todo mundo treinava, desbravamos, abrimos caminhos, sempre tem que ter. Não me arrependo de nada, não cobro nada de ninguém, era uma época diferente, era sofrida mesmo.


Parar de jogar, deixar de ser atleta, foi difícil? No handebol, futebol…

Eu joguei mais três ou quatro anos no Vasco, me mantive em forma ainda. Mas como já tinha encerrado minha carreira nas seleções de futebol e handebol, e conseguindo meu sonho, eu não tinha mais nada para conseguir. Bem, não é que eu não tinha mais nada. Algo de grandioso eu já não tinha. Eu já estava parando desde Atlanta. Não foi difícil. Se você somar as duas seleções, são 14 anos como goleira, disputando sul-americano, pan-americano, mundial de handebol, mundial de futebol e olimpíada. Daqueles papéis que eu assinei lá, aconteceu uma coisa que não deveria ter acontecido. Chegaram algumas cobranças em casa. Porque não pegaram a carteira. Agora, por que não pegaram a carteira? Eu não sei. Até sei. Mas aí é uma coisa particular. Acho até que foi uma retaliação. Chegaram a minha casa pilhas de papéis cobrando, e eu não consegui resolver com as pessoas que deveriam resolver. Uma pessoa especificamente. Mas eu tive que resolver no COB, levei os papéis, expliquei. “Mas como aconteceu isso? Vocês tinham toda nossa proteção de saúde?”. Infelizmente, eu saí do estádio com a roupa que eu tinha, fomos direto ao hospital e ninguém foi pegar a minha carteira. Eram sabedores de que isso provavelmente iria acontecer. Alguém tinha que resolver. As faturas chegaram e já vinham com carimbos. O COB pagou, tinha que pagar. Até depois, quando voltei, tive que resolver coisas. Mas isso faz parte. Por isso que eu digo. Você está numa equipe de autonível: só quem vai sabe de todas as dificuldades. É muito difícil equacionar todos os seus problemas.

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Margarete Maria Pioresan entrando em campo com a seleção brasileira feminina de futebol. Foto: Arquivo pessoal.
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Lembranças da seleção brasileira. Foto: Arquivo pessoal.
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Pôster da seleção brasileira feminina. Foto: Arquivo pessoal.


Você sofreu ou presenciou algum tipo de preconceito?

Durante a minha fase de atleta?


Sim…

No handebol, não. Algumas coisas, mas não muito. Porque quando a mulher praticava esporte, isso em 1975, já era difícil. Tinha algumas modalidades que já tinham passado esse estágio de aceitação da sociedade. O vôlei, a natação, o basquete já tinham passado pelo o que lemos na história. O basquete passou por muito preconceito também, até maia do que o vôlei. No handebol teve, mas não foi muito. Imagine no futebol feminino? Foi muito preconceito. Mas não fora do país. Como íamos jogar na Europa, fazer jogos amistosos ou treinar, as pessoas aplaudiam de pé, até quando alguém se machucava, quando alguém saía. No Brasil não. E eu, que ficava no gol e pouco se deslocava, escutava cobras e lagartos. Tinha lugares que nós íamos jogar, mais para o interior, que até pedrinha e arei jogavam na gente. E falavam um monte. Mas nós sabíamos que isso iria acontecer. Então, a minha geração não foi só precursora do esporte aqui no Brasil – como também não deve ter sido a primeira, pois devia ter antes atletas jogando, mas não de forma organizada -, mas a minha geração sofreu também muito preconceito. Nós tínhamos que quebrar essa barreira da mulher jogando bola. A mulher só podia jogar com a bola nas mãos, bola nos pés é coisa de homem. Eu não vejo diferença nenhuma de jogar com a mão ou com o pé. É um talento, você vai desenvolver o esporte. Imagine se com todas as mulheres do mundo nenhuma vai ter talento para jogar com o pé? Isso não existe. É como dizer: ‘mulheres, em lugar nenhum do mundo vocês podem jogar futebol, porque futebol se joga com o pé e é uma coisa para homem. Em se tratando de América Latina, talvez você tenha que fazer um paralelo com outros estudos para entender porque tem tanto preconceito. Não foi só no futebol. Isso vem lá de trás. Vários preconceitos foram quebrados e nós no futebol tivemos que quebrar esse.


O preconceito que você falou está ligado à questão de gênero, homem e mulher. E o que vem acoplado a isso é uma questão preconceituosa, que você deve ter escutado: ‘essa aí joga melhor que muito homem’, ‘essa aí poderia ser zagueira do meu time’. É um tipo de preconceito colocado de forma mais explicita e que revela outras relações quanto à opção sexual da pessoa. A questão homossexual aparece ou é colocada dessa forma nesse cenário. Esse tipo de preconceito aparecia?

Claro que aparece. A homossexualidade existe em qualquer área e em qualquer patamar do mundo. No futebol, no vôlei, no basquete, no trabalho de banco, qualquer ofício. Esse é um conceito que vem com humanidade. O continente americano é mais preconceituoso que a Europa e o Velho Mundo, que já são mais adiantados. Nós temos muitos preconceitos em relação à mulher. No futebol, então, imagine, isso aí veio forte. E você sabe que não é assim. Existem mulheres jogando, como existem em todas as áreas. É claro que o foco sempre era esse: ‘isso é coisa de homem’, ‘parece homem’…


Isso afetava vocês?

Claro que afetava. Até porque as pessoas estão entrando num conceito que diz respeito à pessoa. Você não pode atrelar um conceito a um ofício, senão as pessoas vão nascer mortas: ‘você só vai poder fazer isso e você aquilo’. Eu sou professora de Educação Física e trabalho com pessoas portadoras de deficiências há 20 anos aqui na Prefeitura, me aposentei pela Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência. Tem muito preconceito com deficiente: surdo, cego, mudo, paralisado cerebral, deficiente mental, Síndrome de Down, qualquer um. E quem diz? As pessoas custam a aceitar o diferente. Tem muito preconceito contra prostituto, negro, japonês, chinês, tudo tem preconceito. As pessoas não querem ter preconceito, querem que todos sejam seu espelho, igual a ela. No entanto, ninguém sabe o que cada um é. Então, isso aí foi como sangrar. Você ter que praticar uma modalidade que tem tanto preconceito. Na realidade, nossa geração, e ainda existe (mas não que nem antes), teve que sangrar, ficar em carne viva e ir para frente. Você não podia deixar um sonho porque as pessoas acham que você não pode fazer.

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Meg e colegas de equipe durante treinamento. Foto: Arquivo pessoal.
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Margarete Maria Pioresan com sua equipe na condecoração de medalha. Foto: Arquivo pessoal.

 
Isso é uma característica do futebol? No handebol já era diferente?

Existia também. Quando íamos fazer determinados jogos em alguns locais onde o handebol é mais concentrado e você joga em ginásios lotados, então você também ouvia cobras e lagartos. Tinha também preconceito, escutava muita coisa. Não é um jogo mais bruto. O handebol é um jogo de contato, tal como o basquete. É um jogo que tem faltas, as atletas caem, se chocam, se machucam, tem que lançar a bola com força. Então, seriam coisas muito pesadas para uma mulher. Existia também preconceito. No futebol, além de ser de choque, tinha que correr atrás de uma bola e jogar com o pé. Mas muita coisa mudou. Hoje em dia tem escolinhas em São Paulo e no Rio de Janeiro, e as meninas vão, jogam e gostam. Estão mais soltas para ir. Os pais já não têm mais o preconceito que tinham antes. Os próprios pais não queriam que as meninas jogassem. Tinham medo que elas sofressem. E iria realmente sofrer. Como te falei, sangrava na carne, e tinha que aguentar, mas nem todo mundo aguentava. Mas hoje em dia tem televisão, tem a Marta cinco vezes melhor do mundo, ganhando muito bem. Uma das maiores estrelas do Brasil no esporte feminino hoje é a Marta, se não a maior. Em termos de visibilidade, competência, reconhecimento financeiro. Tem o prêmio de melhor do mundo para a mulher, antes não tinha. Então, tudo isso é bonito, brilho, vestido longo, sapato de salto. A Marta está tão linda. Ela é uma mulher bonita. Sabe falar, joga bola, está recebendo um prêmio. Todo mundo gosta. Acho que esse sangramento está diminuindo, as cicatrizes estão fechando, e as mulheres vão quebrando as barreiras do preconceito na América Latina, como tem que ser. Ninguém tem que ser melhor ou maior. Mulher joga tênis, futebol, basquete. É tudo feminino e masculino. Até o atletismo, como o salto triplo, que era só masculino, foi quebrado.


Nessas comparações, se não falha a minha memória, você era comparada ao Taffarel, por uma série de fatores. Como isso aparecia para você?

Era porque o Taffarel estava seleção, porque ele era gaúcho, eu sou lá do Sul, ele é loiro. Eles iam me comparar com quem? Era o Taffarel. Tinha muito disso. Quando eu dava bastantes entrevistas, eu desmistificava isso: “pode comparar, mas vamos começar a fazer uma história da modalidade?”. A Marta é a Marta, a Roseli é a Roseli, a Pretinha é a Pretinha. Tinha que bater nessa tecla. A zagueira parece com não sei quem… esse meio de campo é clássico como não sei quem… era tudo assim.

Meg e Ricardo Teixeira.
Meg e Ricardo Teixeira. Foto: Arquivo pessoal.



Isso geralmente a imprensa brasileira?

A imprensa e a torcida, quem assistia. Mas tudo bem. Estavam aprendendo. Faz parte. Hoje em dia quase não tem mais essas comparações. Fala-se até “é clássico como fulano de tal…”. A Sissi era uma meia de campo, 10, meia esquerda, a melhor que já vi jogar até hoje. Está no EUA e é embaixatriz da FIFA para toda a América do Sul. Comparavam a Sissi com não sei quem. Mas a Sissi, se bobear, se sai melhor do que muitos que muitos que passaram pela seleção masculina. Tinham que comparar eles com ela. Você está entendendo? Muitos homens têm que ser comparados com grandes atletas que passaram e que estão aqui. A Marta não tem que ser comparada com não sei quem, mas sim alguém tem que ser comparada a ela, porque ela é cinco vezes melhor do mundo. A Marta tem uma técnica tão apurada e sabe fazer tantas coisas, muito mais do que muitos craques que ganham fortunas. Estou fazendo uma comparação técnica. Deveria ser o contrário. Ainda vai chegar o dia. Hoje continuo dentro do esporte. Começou a aparecer oportunidades em 2008 para fazer comentários sobre futebol feminino em uma emissora de canal fechado. Primeiro, foi fazer a final do Campeonato Mundial de 2007 em Pequim, Brasil x Alemanha, que nós perdemos de 2×1. Fui fazer o comentário junto com a bandeirinha Ana Paula. De lá para cá, falaram que em 2008 começariam a colocar comentaristas mulheres de futebol feminino. Falei: “poxa, que legal!”. Mais uma barreira que vai ser quebrada. Agradeci pela oportunidade. Em 2008 teve o primeiro Campeonato Mundial na Nova Zelândia Sub-17 e me chamaram. Foi bem difícil, tive que aprender. Jogar, ver em casa e falar é uma coisa; num estúdio, com narrador, estudar o campeonato, saber tudo, e comentar, é outra coisa. Mas foi indo. Não parei mais. Fiz vários: sub-17, sub-20, mundial da Alemanha. É uma nova quebra de tabu. Então eu me desliguei do esporte em termos. A gente nunca para, a gente tem que ir passando. Aqueles momentos quando ninguém queria dar entrevistas depois dos jogos ajudaram em alguma coisa, você vem construindo também. É uma missão. Não vou te dizer que é difícil, mas também não é fácil. É um compromisso. Você está numa emissora. Você não pode dar informação errada. Tudo é pesquisa na internet. O conhecimento que você passou não tem preço. Eles podem qualquer homem comentarista, que ele vai fazer com o pé nas costas. Mas eles fazem o masculino, 50 jogos por ano. A gente só faz a cada dois anos. Mas não tem preço. Então é uma missão. Conforma tu vai fazendo, tu vai ganhando experiência. Você vai aprendendo, mas onde vai chegar eu não sei. Mas eu fico bem feliz por ter tido essa oportunidade, de estar fazendo isso, como ex-atleta de futebol feminino, fazendo jogos de futebol feminino, especificamente de seleção brasileira, campeonatos mundiais, sub-17, sub-20, Olimpíada, Libertadores etc. E estar preparando a área – não como jornalista, pois tem comentaristas e pessoas ligados ao jornalismo em emissoras, tem a Juliana Cabral, que foi zagueira, adoro o programa dela, acho que acrescenta muito. Cada um tem que fazer sua parte. Eu não vou fugir dessa área. Nem pude fugir. E nem quero mais fugir.


Meg, como você lidou com a dor na sua trajetória?

Eu sofri muita dor. Como goleira de handebol eu sofri muita dor porque eu mexia muito com a bacia, era muitas quedas. Enquanto eu jogava no handebol, e também no futebol, minha coluna sempre estava bombada. Tinha dias que só conseguia dormir como numa posição fetal, abraça mesmo, me latejava. Eu sempre tive joelhos e tornozelos fortes, nunca quebrei. Quebrei dedos. O mindinho eu quebrei num mundial, inclusive com uma pessoa que foi eleita melhor do mundo agora, Homare Sawa. Os dedos quebraram e cicatrizaram. Mas a coluna… Chegava às épocas de início de treinamento, com aquele pique de treino diário, que eu chegava a tomar injeção para dor. Eu sempre tive muitas dores na coluna, lordose desde adolescente, com 15 anos, ela me incomoda. Isso eu carreguei. É superação. A dor muscular vai e passa. Eu nunca rompi músculo, de distensão, de ficar parada. Teve uma vez que fiquei 15 dias, por causa do tendão, treinamento para a Olimpíada. Mas cicatrizou rápido. Sempre cicatrizei rápido minhas contusões. Mas minha coluna eu tinha que conviver. Tanto que é que eu vim a fazer agora em 2007 uma prótese total do quadril. Já na fase final de treinos no Vasco eu tinha muitas dores, já jogava com dor. Depois que eu parei, em 2004, andei um ou dois anos de muleta, ia trabalhar mesmo de bengala. Articulação toda deteriorada. Tive que fazer uma artroplastia para poder andar. Esse foi um legado. Provavelmente, segundo o próprio especialista que me operou, oriundo de fator genético – minha mãe tem a mesma prótese no mesmo lugar – e/ou uma lesão durante esses anos todos de treino.

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Meg em ação pela seleção brasileira. Foto: Arquivo pessoal.
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Meg antes de um partida. Foto: Arquivo pessoal.



Alguma dor que não seja física?

A dor emocional, a dor da alma, a dor do sangrar, de quebrar esses tabus. Mas essa dor fica na lembrança. Ela fez parte de um caminhar, que ele só podia ser caminhado com isso. Ou você caminhava com isso ou você não caminhava. E seu eu não caminhasse, eu não iria conseguir chegar ao meu objetivo. Então, eu tive que levar. Não só eu, como outras atletas da minha geração. No geral, o senso comum, de não entender e o preconceito, isso passa, faz parte da história, é o crescimento da humanidade. Mas algumas coisas pontuais, de uma pessoa aqui, outra ali, um caso que aconteceu em Atlanta, e outras coisas, também passa. Mas foi mais judiado, porque é uma coisa mais pontual. Porém, a mim não afetou, pois consegui todos os meus objetivos. E não foi comprado, foi lutado, e foi vencido. Então, eu sou uma pessoa uma pessoa vitoriosa, por esses motivos todos, e o bem venceu o mal também. O bem sempre vence o mel.


Você tem acompanhado a organização do Brasil para os dois grandes eventos, a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos?

Tenho acompanhado sim algumas coias, programas feitos por grupos institucionais que estão nos eventos de frente. Tenho acompanhado comentários e críticas de pessoas políticas ligadas ao esporte ou que foram. Gosto muito da visão do Romário. É uma grata surpresa. É uma pessoa que sabe se posicionar. Gosto muito de como ele está deixando as antenas ligadas para a questão dos estádios, dos gastos, do porque uns lá e outros não, se ali vai virar um elefante branco, do que vai ser feito. Essa questão não pode ser esquecida. O Brasil (e o Rio de Janeiro) está no topo do mundo, é a bola da vez. É muito bom ter Copa do Mundo e Olimpíada aqui, apesar de que ninguém verá. Eu mesmo não sei se conseguirei assistir um jogo sequer. Mas, o progresso da cidade, as benfeitorias têm que ser feitas a custo de um mundial? É sempre a mesma pergunta. Por que elas não são feitas antes? Por que elas não são feitas com recursos das receitas? As pessoas têm que sofrer tanto. Tem que chegar mundial e Olimpíada para fazer novas estradas, novas creches, novos viadutos, novos túneis, aumentar as moradias, fazer novos prédios para hotéis, melhorar a cultura. Mas de qualquer maneira está vindo. Acho que, como educadora, falta muita coisa na educação aqui no Brasil. Os números mostram. Muitas pessoas analfabetas ainda, muitas fora da escola. Quem quer um ensino melhor tem que gastar muito dinheiro para pagar e não tem. Eu trabalho em comunidade de Vila Isabel, em frente à comunidade carente, no Morro dos Macacos, há 20 anos que vejo a dificuldade dessas pessoas. Nós que estamos ali vemos a dificuldade do pobre que não tem oportunidade, de ter que descer e estudar numa escola pública que é muito boa, obrigado, o professor está aí para ensinar. Não tem as mesmas condições de caderno e de lápis. Tem que focar mais na educação no Brasil. E não é por causa de um Mundial ou de uma Olimpíada que vai melhorar. Vai melhorar estrada, vai melhorar a Zona Sul, os viadutos, a Barra, para quem tem carro, para quem tem dinheiro, isso tudo vai ficar bacana. Mas se não melhorar a educação… Temos exemplos lá fora, do Chile, da Coréia do Sul. São duas coisas diferentes. Tem que fazer a Olimpíada e o Mundial? Vão gastar mundos e fundos de dinheiro? Virá empresa privada? Mas vai ser gasto dinheiro daqui também. E ai que vem: poxa, e os serviços básicos?; e a população que precisa de hospital, de ser bem atendido na fila? Educação, saúde, moradia e emprego. E aí? Virá com o Mundial e a Olimpíada? É a pergunta que todos nós queremos resposta.


Meg, se você tivesse a chance de refazer a sua trajetória, faria alguma coisa diferente?

Primeira coisa, seria goleira novamente. Mesmo sabendo que iria quebrar todos os dedos da mão novamente, inclusive do pé. Seria goleira, pois foi uma profissão apaixonante, de desafios, de aprendizado, aquele ovo que foi sendo chocado e nascendo nunca época de adversidades. Eu seria goleira para continuar a progredir. Só não sei se seria das duas. Eu queria ser goleira de futebol. Porque achei apaixonante. O desafio do goleiro de futebol é maior do que o do goleiro do handebol, você não tem tempo de recuperação, você não pode errar, você tem que ser mais certo. Treina mais, treina mais. Eu adorava jogar no gol de futebol. Para mim, jogar em jogo difícil, com bola cruzada, não era a maior dificuldade. Eu sabia que na hora h eu não podia falhar, mas aquilo aí me instigava. Eu seria goleira para progredir, para aprender mais, e chegar numa final de Olimpíada, ser campeã e ganhar uma medalha olímpica. Ganhar uma medalha de Mundial seria muito importante, mas ganhar uma medalha olímpica seria muito mais. Se eu pudesse ter uma outra chance, numa outra vida – até faço um pedido agora -, quero vir, ser goleira de futebol, disputar uma final de Olimpíada e ser campeã.


Meg, estamos devendo uma explicação do seu dedinho…

Meg
Meg durante entrevista . Foto: Sérgio Settani Giglio.

O meu dedinho é o seguinte. O segundo Mundial da Suécia foi emocionante, porque foi na Suécia, contra a Suécia, que tinha toda a torcida da casa, e nós ganhamos de 1×0. O segundo jogo foi contra o Japão. Viajamos a noite inteira de trem. A Suécia tinha um fuso horário absurdo. Quando nós chegamos à outra cidade, nós estávamos lesadas pelo fuso horário, era uma coisa louca. Bom, jogamos contra o Japão. Pênalti contra nós. Quem foi cobrar? Homare Sawa. Era a japonesa número 10 que estava começando a jogar na seleção. Já era um nome. E eu fui lá e peguei o pênalti dela. Quebrei dele. Entre a minha posição no meio do gol e a trave direita, tinha um espaço a percorrer. E ela bateu no cantinho. Eu tinha que pular. Antes de chegar na bola meu dedinho ficou no chão. Joguei o jogo inteiro com o dedo quebrado; doendo, doendo, doendo. Só que naquela época não tinha hospital. Eu botava gelo, me cuidava lá sozinha. Tinha o médico. Joguei contra a Alemanha no 6×1 com o dedo assim também. Só foi descobrir no avião voltando para casa, quando fui para Toledo, tirei raios-X, os ossos estavam um em cima do outro. Ficou tudo torto. Pois bem, estava agora no Mundial, fazendo Estados Unidos x Japão, a final, e tem um menino que manda mensagem no Facebook, meu fã, que disse: “Meg, você lembra quem quebrou teu dedo no Mundial da Suécia?”. Disse que não lembrava; só lembrava que tinha defendido. Pesquisei na internet e: Homare Sawa. Fiquei pensando: ‘nossa, esse mundo é pequeno’. Na final, pedi para contar uma historinha. Ainda não tinha feito jogo do Japão, mas apareceu a oportunidade. Contei a história. “Você tem que falar isso”. Aí eu falei, foi muito bacana. Ela foi artilheira do Campeonato Mundial, campeã mundial com o Japão em cima dos Estados Unidos e eleita melhor do mundo.


Meg, tem alguma coisa que não perguntamos que você gostaria de falar…

Primeiro, gostaria de me desculpar, pois eu falei muito. Acho que até falei demais.


Não, adoramos quando as pessoas falam bastante.

Você me perguntou da minha família. Eu gostaria de dizer a família, para mim, meu falecido pai, minha mãe, meus irmãos, foram meus maiores incentivadores. Deixar o registro da importância dos meus pais e meus irmãos para a minha vida de atleta. Um amor incondicional. Naqueles tempos de ir, ficar em ginásios, dormir em colchonete no chão, se alimentar mal, sempre me deram apoio, e sempre pude chorar nos ombros deles. Nas voltas, nas dificuldades, nas derrotas, nas judiações, nas carnes vivas, uma metáfora, eles botavam uma coisinha para curar as minhas dores. Todos os meus técnicos foram muito importantes, mas aqueles que me viu e olhou lá atrás na faculdade que eu tinha talento e agilidade para eu ir no gol foi o professor João Marim Mechia. Acho que ele foi como um pai para mim, foi meu criador. E foi uma história tão legal que na decisão do terceiro lugar, lá em Atlanta, nós paramos, fomos para o vestiário, tomamos banho e fomos assistir a final da Olimpíada. Estou lá sentada. Ele me chamava de Margarete. Meu apelido Meg me foi dado aqui no Rio de Janeiro. Começo a escutar: “Margarete, Margarete”. Naquele estádio lotado. Olho para trás. Quem era? Ele, professor João Marim Mechia. Ele foi para a Olimpíada e foi assistir a decisão para me ver. Ele fez questão de assistir. Não acreditei: “Você?”. Foi muito emocionante. Fazia bastante tempo que não o via. Formei-me em 1977. Entre 77 e 1996 talvez o tenha visto uma vez. Ele fez doutorado, depois se aposentou. Encontrei-o lá. Ficamos batendo papo, peguei um boné da seleção, fiz uma dedicatória para ele. Ele também foi bem importante para mim. Foi quem iniciou tudo.


Meg, muito obrigado pela atenção e disponibilidade. Agradeço pela participação no nosso projeto. Obrigado em nome de todos.

Eu que agradeço. Parabéns a vocês. Vocês estão fazendo com que a história olímpica – e cada um tem a sua história, não só a olímpica – não morra e seja perpetuada. O futebol feminino precisa de história escrita, documentada. Alguém tem que começar a fazer, outros farão e ai virá uma história. Tem que ser contada por quem passou. Senão, ela pode ser escrita errada. E aí não é legal.

Meg
Meg em partida pela seleção brasileira. Foto: Arquivo pessoal
Meg
Meg na seleção brasileira. Foto: Arquivo pessoal.

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