Visões do Bi

Depoimentos de jogadores da Seleção no Mundial de 1962

Imagem1
Mengálvio durante a entrevista no Museu do Futebol.

Nota Explicativa

Esta série é parte integrante do projeto “Futebol, Memória e Patrimônio”, desenvolvida entre os anos de 2011 e 2012, com o apoio da FAPESP. A pesquisa foi realizada em parceria pelo CPDOC, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), e pelo Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), equipamento público vinculado ao Museu do Futebol/Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. Nesta seção, serão apresentadas as edições de 6 entrevistas concedidas por atletas brasileiros que estiveram presentes na Copa do Mundo de 1962, no Chile, a sétima primeira edição do torneio organizado pela FIFA. São eles: Mengálvio, Jair da Costa, Coutinho, Amarildo, Jair Marinho e Altair. O propósito dos depoimentos, com base em sua história de vida, método caro à História Oral, foi rememorar as lembranças dos futebolistas acerca de sua participação na competição, de modo a destacar os preparativos para o Mundial, os jogos e a volta ao Brasil. O depoimento a seguir foi concedido no dia 23 de setembro de 2011, no auditório Armando Nogueira, situado nas dependências do Museu do Futebol, em São Paulo.

Entrevistadores: Fernando Herculiani (FGV/CPDOC) e José Carlos Asbeg (Cineasta/Museu do Futebol); Transcrição: Soraya de Oliveira; Edição: Pedro Zanquetta

mengalvio
Mengálvio. Ilustração: Xico.

 

Mengálvio

Mengálvio Pedro Figueiró nasceu em 17 de dezembro de 1939, na cidade de Laguna, interior de Santa Catarina. A carreira de jogador profissional teve início no clube do Aimoré, de São Leopoldo (RS), em 1957. Permaneceu no clube até 1960, quando foi contratado pelo Santos. Neste clube, atuou por sete anos e angariou diversos títulos.  Foi bicampeão mundial interclubes, 1962-1963, na sequência da vitória da Taça Libertadores da América. Ganhou seis campeonatos paulistas e, por cinco vezes, a Taça Brasil. Após a saída do Santos, teve passagens pelo Grêmio e pelo Millonários, da Colômbia, onde encerrou a carreira, em 1969. Pela Seleção, marcou 14 gols e fez parte da equipe que conquistou o bicampeonato mundial em 1962.

 

Depoimento

Onde você nasceu e desde quando joga bola?

Meu nome é Mengalvio Figueiró. Na certidão de batismo sou Mengalvio Pedro Figueiró, agora, na certidão oficial não tem o Pedro, nome do meu avô. Nasci no dia 17 de outubro de 1938, em Laguna, Santa Catarina – a cidade de uma grande guerreira, Anita Garibaldi. Vocês devem conhecer, não é? Existe outro erro na minha certidão: Em vez de outubro, consta o mês de dezembro, porque meu pai era muito devagar, feito eu. Os filhos nasciam e ele só ia registrar [risos] dois, três meses depois. Minha família é grande: 11 filhos – sete mulheres e quatro homens. Todos os homens seguiram a carreira futebolística. Engraçado, meu pai foi músico, maestro da banda da cidade e não se ligava em futebol. Sou o mais novo. A nossa cidade participava de campeonatos nas redondezas, junto aos times de Tubarão, Criciúma e Ibituba. Em Laguna existia o Barriga Verde. Eu e meus irmãos seguimos carreira nesse time.  O meu irmão mais velho chegou à Seleção Catarinense, um grande atleta. Depois veio o Figueiró. Atuou no Grêmio Porto Alegrense, fez carreira e se consagrou lá, e depois veio jogar no Santos, quase no final da carreira. O terceiro, também grande atleta: teve um problema no joelho e precisou encerrar logo a carreira. Desses meus três irmãos, todos com uma técnica bastante elevada – parece mentira: Eu fui o mais maneiro, não foi? [risos] É como eu digo: Em toda profissão você precisa ter qualidade. Outro fator muito importante é a estrela, a sorte da pessoa. E, graças a Deus, tive essa grande sorte, Deus me ajudou muito. Meus antepassados me ajudaram e me encaminharam. Comecei no Barriga Verde, no semiprofissional. Depois fui para Porto Alegre servir ao Exército brasileiro – meu irmão Figueiró estava no Grêmio. Minha estrela brilhou lá. O meu irmão já possuía um nome e certo prestígio. O tricolor gaúcho, de Aírton, Ênio Rodrigues e Sérgio era uma potência no futebol.

Você e seus irmãos iam à escola, trabalhavam? E sua mãe?

Meu pai também era funcionário público. A minha mãe, doméstica, de casa, não é? Eu e as minhas irmãs estudávamos. A vida complicou quando meu pai faleceu. Eu tinha 8 anos de idade e o meu irmão mais velho, 15. Tivemos muita responsabilidade, ficou difícil. Perdermos nosso pai de repente e tínhamos pouca idade. Meu irmão assumiu o cargo do meu pai no trabalho, pois precisávamos tocar a família. A partir dali, uma luta: Meu irmão trabalhando na prefeitura, outro irmão estudando… A maioria largou o colégio e precisou trabalhar. Então, quando meu irmão mais velho foi servir ao Exército brasileiro, esse outro irmão assumiu o lugar na prefeitura, e assim foi, numa escadinha, um sucedendo ao outro. Uma espécie de emprego da família – naquela época existia isso. Quando o Figueiró largou a prefeitura pelo Exército, assumi o lugar dele. Na minha vez de servir o Exército, fiquei pensando: – Pô, duas coisas que eu gostaria de ser na vida: jogador de futebol ou marinheiro. [risos] Marítimo, não é? Naquela época chamávamos de marinheiro ou marítimo. Eu queria viajar! Aos 17 anos atuava no time da cidade, mas não havia a pretensão de chegar aonde eu cheguei. Então decidi não servir em Florianópolis, e sim numa grande capital.  Trabalhava na prefeitura um tenente do serviço militar, o Pamplona, e contei do meu desejo de arrumar uma vaga no Rio de Janeiro. Ele até tentou. Havia lotado: – Oh, Galvio, no Rio não tem condição. – E Porto Alegre, não dá? Aí ele conseguiu uma vaga. Cheguei ao quartel general no último dia do alistamento, um o soldado me atendeu e reclamou – estava quase na hora de encerrar. Eu disse: – Cheguei dentro da hora. Não quero nem saber. – Aguarde um minutinho aí. Demorou uns cinco, dez minutos, aí veio um sargento. [risos] Olhou o documento: – Seu nome, qual é? – Meu nome está aí. Mengalvio Figueiró. – Você é irmão do Figueiró, do Grêmio? – Sou. – E você joga futebol? – Até jogo. Agora, se eu sou bom ou não… [risos] – Oh, aqui não existe vaga, só para os filhinhos de papai, acontece que sou responsável por formar um time e disputar o campeonato interno. Vou te arrumar uma vaga. – O senhor é quem sabe. [risos] Novamente, a minha estrela brilhou, não é? Disputei na equipe do quartel e, graças a Deus, me destaquei. Quando um tenente me viu atuando, chamou: – Ô, Mengalvio, você quer fazer um teste no Aymoré de São Leopoldo? O Aymoré disputava o campeonato na primeira divisão. – Faço, sem problemas. Eu nunca esqueço: ele arrumou o exame e me botou numa perua bonita, rapaz, dele mesmo. Parece mentira: Fiz um lance e fui contratado: puxei a bola atrás, o ponta de lança fez o mesmo e eu saí jogando bonitinho. Assinei contrato com o Aymoré de São Leopoldo.

E a carreira de marítimo?

Foi para o espaço, não é? Meu primeiro contrato profissional aconteceu no ano de 1958.

Até então você estava no Barriga Verde, em Laguna. Qual era o seu time do coração?

Ah, naquela época, o futebol carioca imperava. Não sei qual o motivo, mas só pegava estação de rádio do Rio de Janeiro – Rádio Nacional, Rádio Mairink Veiga, Rádio Tupi. Então, eu torcia pelo Botafogo, um irmão, vascaíno e outros dois flamenguistas. Admirava o Botafogo Futebol Clube. Em São Paulo, gostava do Palmeiras.

Você atuava em qual posição?

No meio de campo. Chamávamos de meia, não é? Um irmão, meia também e os mais velhos eram, um zagueiro central e o outro lateral direito. Quando cheguei, o Aymoré havia armado um time forte e dois meios de campo muito bons, o Quim e o Mugica. Servia ao Exército e só treinava uma ou duas vezes por semana. Viajei junto ao time do Aymoré, na reserva, mas a partir do momento no qual saí do Exército, entrei mais firme. Eu jogava na posição que pertencia ao Quim, um volante, muito bom atleta. Então, a diretoria do clube vendeu o Quim ao Internacional e fiquei com a vaga dele. O Mugica, era veterano e logo parou, dando lugar ao Fernando, um meia esquerda. Então ficamos eu e ele no meio de campo do time. O treinador também mudara: Carlos Froner – treinou o Flamengo do Rio de Janeiro e o Luiz Felipe Scolari também, um grande treinador. Fomos à decisão do campeonato gaúcho contra o Grêmio e o empate favorecia a eles. Adivinha quem fez um gol de falta? Eu, Mengalvio. [risos] 1 X 0. Infelizmente, faltando três ou quatro minutos do final da partida, o Airton, um grande zagueirão do Grêmio, cobrou um escanteio contra nós e empurrou o goleiro, a bola e tudo dentro do gol… Empatamos e nos tornamos vice-campeões.

Você disputou alguma vez contra o seu irmão?

Não. O Figueiró já estava saindo do Grêmio e indo para o Santos. Depois, fizemos juntos apenas um jogo, em Taubaté.

Como foi o convite do Santos?

Terminado o campeonato gaúcho, fui convocado pela seleção pan-americana. No outro ano, encontrava-me sentado na varanda da minha casa, pensando justamente nos telegramas recebidos do Palmeiras e do Corinthians, informando o contato futuro de um emissário. De repente, um táxi encostou na frente da casa e um cara desceu perguntando: – Aqui mora o Mengalvio? [risos] – É o próprio. – Quero falar contigo. Ele se chamava Arnaldo Figueiredo, empresário. – Olha, eu vim levar você ao Santos Futebol Clube. Quis então saber da minha situação no Aymoré – das cláusulas e tal – e fomos a São Leopoldo resolver a questão. [risos] Chegamos lá na sede e ele mandou convocar os diretores: – Vou levar o Mengalvio ao Santos. Os diretores se espantaram: – Ah, o Mengalvio não está à venda. Eles mostraram o contrato deles e diferia do meu – haviam mudado na porcentagem… Um negócio esquisito. [risos] O empresário olhou: – Oh, isso aqui está errado, hein? Isso é crime penal! Leu o artigo e tal. Eles então acertaram tudo direitinho e eu vim para o Santos, no mesmo dia!  O Arnaldo me explicou: – Oh, a base lá é isso e aquilo. Titular ganha tanto e coisa e tal. Ele acertou comigo todas as condições e fomos. Quando chegamos lá, os diretores tinham se afastado e havia uma nova diretoria. Tudo muito indefinido e a diretoria atual não sabia se me contratava ou não. Fiquei uma semana em Santos e eles naquela lengalenga. Chegaram ao ponto de me pedir um teste. – Negativo. – respondi – Acredito em mim. Agora, e se eu quebrar a perna ou algo der errado? Não faço coisa nenhuma. Resolvam logo ou então me deem a passagem de volta. Quero ir embora. Aí chamaram o diretor. [risos]. O valor oferecido dava menos da metade daquele combinado, ordenado de juvenil. O Arnaldo Figueiredo estava lá no clube e eu não aguentei: – Arnaldo, faz um favor? Pede a minha passagem, eu quero ir embora. – Mas, o que houve amigão? Mostrei a ele a proposta. Um cara decidido ele, inteligente, com muito acesso ao futebol paulista. Disse então a eles – Oh, eu busquei o Mengalvio, como vocês queriam, mas pelo jeito vocês não querem mais. Agora, tem uma coisa: Ele não vai voltar a Porto Alegre! – O Arnaldo sabia do interesse do Palmeiras em mim. – Depois, não reclamem. Mengalvio, vamos embora! Pegou-me no braço e abriu a porta. Então eles gritaram: – Não! Vem aqui. Vem aqui. [risos] Daí finalmente acertaram o contrato. Poxa vida, ser do Santos Futebol Clube, muito legal! Apesar de não acompanhar muito o campeonato paulista, o Santos era o Santos. Quando olhei no plantel, vi o nome: Jair da Rosa Pinto, na posição de meia [risos] Fiquei pensando: – Bom… Onde eu vou atuar? [risos] Novamente a minha sorte falou mais alto, a minha estrela: O Jair não queria mais treinar, nem nada: O lugar ficou vago. Se o Jair quisesse continuar, eu não iria jogar nunca!

Conte um pouco sobre a sua rotina? Você morava numa pensão? Treinava?

Não existia treinamento pesado feito hoje, não é? Só treinávamos, ou de manhã ou à tarde. Não existia esse negócio de treinar de manhã, à tarde e à noite. Tinha um atleta que até hoje considero um sábio e me orientou muito, um grande amigo. Seu nome é Dalmo Gaspar, lateral, e foi quem me levou à pensão no Gonzaga, lugar onde ele mesmo morava – ele havia me levado na pensão da Dona Jorgina, onde morava o Pelé, o Coutinho, o Teobaldo, o Batista, toda a crioulada. Mas lá, depois do almoço: bateria, batucada de tudo quanto é lado… – Nesse negócio aqui não vou dormir nunca depois do almoço! [risos] E acabei ficando na pensão do Dalmo, no sossego, na tranquilidade. Naquela época, ninguém possuía carro e ainda existia o bonde no canal dois. Eu e ele saíamos da pensão e íamos ao clube – ele era mão de vaca, não queria gastar: – Dalmo, estamos atrasados, vamos pegar um táxi! – Ô, negão, deixa de ser bobo, andamos até o canal e pegamos o bonde. [risos] Andávamos umas quatro quadras mais ou menos. Eu, malandro, não queria caminhar muito… E de fato, nós íamos até o canal dois, pegávamos o bonde e saíamos lá na frente, na Vila Belmiro. São coisas inesquecíveis.

Em 1962 vocês foram novamente campeões paulistas?

Olha, filho, foram tantos títulos que nem sei quantos são [risos] Títulos e mais títulos, torneios fora: Itália, Espanha…

Ainda em 1962, o Aymoré Moreira[1] assumiu a Seleção Brasileira. Você teve expectativa de ser convocado?

Honestamente, apesar de estar num time famoso daqueles, não esperava ser convocado. Na época, tinham muitos bons meias: O Didi, o Benê… O Gerson iniciava e já era estrela no Flamengo, mas teve azar e quebrou a perna, bem próximo à convocação. Então, alguns dias antes, fomos disputar contra o Botafogo no Maracanã. O Santos perdera um amistoso contra eles de 3 X 1 e íamos nos enfrentar novamente. Meu treinador chegou e falou: – Você vai jogar. – Tudo bem. Fiz muito naquela partida. Ganhamos de 5 X 1. E na convocação: Mengalvio. [Riso]

Como foi a emoção de ser convocado para a Copa de 1962?

Fiquei feliz, contente e tudo mais, mas se tivesse a expectativa de ser isso ou aquilo não teria conseguido. Eu não me entregava assim fácil, não me emocionava muito. Era muito frio. Então, aconteceram todos esses lances comigo, e eu fiquei normal. Hoje consigo concluir que realmente devia ter vibrado por chegar aonde cheguei. Agora fico mais feliz e emotivo. Na época, ainda garoto, não ligava muito.

Em sua posição existiam jogadores extraordinários: Zizinho, Didi, Jair, Gerson… Como definiria o seu estilo em relação a eles?

O Walter Marciano, o Gonçalo… Cada um tem o seu. Didi: o maestro em meio de campo. Didi e Jair da Rosa Pinto se colocavam num setor do campo de onde manipulavam o time. Depois veio o Gerson. Eram todos meias com a característica de ficarem quase fixos naquele setor – um setor muito importante. Outros meias corriam mais, feito o Zizinho – ia lá embaixo, pegava a bola e vinha costurando. O Antônio Fernandes – Toninho Fernandes –, nunca o vi jogar, mas falavam: atuava igual ao Zizinho e praticamente carregava o time. Cada um possuía o seu jeito, não é? Eu tenho aquele estilo mais fixo no meio de campo. Preservávamos muito o posicionamento. Naquela época costumava ser 4, 2, 2, às vezes 4, 3, 3. Não existia essa aglomeração no meio de campo que existe hoje. Então, eu podia, tal qual o Zito, sair correndo feito doido – doido, quando digo, é a característica da corrida, entendeu? [risos] Eu precisava segurar o piano enquanto o Zito corria. Eu não fui um craque e sim uma pessoa útil, importante, pois vibrava e dava ritmo ao time. Podem inventar o que for, mas hoje ainda é necessário um atleta de meio de campo criativo. Essa é a minha opinião.

Discordo: Você era um craque, sim. Magistral! Agora, é mais fácil ou mais difícil estar num time cheio de craques como aquele do Santos?

Fácil não era, porque precisava ter um QI elevado, senão não acompanhava os outros atletas. Seria chamado de burro e idiota a toda hora. [risos] Tem aqueles impossíveis de acompanhar. Por exemplo: O Pelé e o Coutinho. Este tinha um QI fora de série dentro de uma partida. O Pagão também – diferente dele. Descia, vinha pegar a bola e distribuía jogo. Uma capacidade elevada, entendeu? Não dá certo esse negócio de dizer: – Ah, fulano é melhor do que o outro e tal. Em minha opinião, cada um é cada um, mas eu não sou o dono da verdade.

E o período da preparação?

Ah, é um caso sério. Você precisa ter paciência e espírito para se manter na Seleção. Quando fui convocado tinham mais três ou quatro atletas de alto nível justamente na minha posição. Convocaram trinta, quarenta homens, e depois decidiam quem ficaria ou não. Já pensou? Só na minha posição existia o Benê, o Chinezinho… O Zequinha – também volante. Muitos outros ficaram de fora e eram bons. Existia gente muito boa naquela época e precisávamos estar preparados.

O Brasil conquistou a Copa de 1958. Existia a responsabilidade de ganhar a Copa de 1962?

Tínhamos a obrigação de ganhar, não é? Mas, em minha opinião, a melhor Copa do Mundo para o Brasil foi a de 1958. Porque perdemos em 1950 no Maracanã. Éramos os favoritos e perdemos do Uruguai. Aí, o mesmo em 1954, na Europa. Em 1958, na Suécia, o Brasil não era o favorito na cotação. Descartavam a possibilidade de vencer. O time saiu daqui desacreditado. Qualquer um da minha idade sabe muito bem disso. Mas o Brasil, aos pouquinhos, ganhou a Copa.

O Zito afirmou que 1958 marcou o futebol brasileiro, pois até então, os jogadores eram tratados quase amadoristicamente e, nessa Copa, houve uma preocupação muito grande com o preparo físico, ou seja, a preparação ficou mais responsável.

Naquela época, quando um time brasileiro chegava à Europa, não o aceitavam em qualquer hotel. Éramos malvistos, pois o time carregava tamborim, cavaquinho, chegava ao hotel e fazia samba. No avião, a mesma coisa. [risos] Em 1958, mudou completamente. A CBD[2] deu uma cartilha para obedecermos e tudo ficou diferente.

Em 1962 organização foi a mesma?

A mesma. O mesmo pessoal de 1958, o médico, o Aymoré Moreira – antes, o Feola[3]. A comissão técnica, em si, a mesma e também a maioria dos atletas.

De quem se fala muito nesse preparo é do Dr. Paulo Machado de Carvalho. Ele conversava com vocês?

Conversava, conversava, sim. Nós o chamávamos de Cabeça de Manga – com todo o respeito. [risos] O braço direito do Paulo Machado de Carvalho, e também do João Havelange, era o gerente Carlos Nascimento – hoje chamamos de gerente, não é? Esse era, realmente, o homem que levava o negócio… Ia ver, ele já estava atrás de você. O homem parecia um fantasma. Aliás, um dos meus maiores admiradores, gostava muito de mim. Nunca me esqueço dele. Fluminense roxo.

Você jogou na preparação?

Participei de amistosos. Teve até um fato gozado, pitoresco: naquele tempo já existia muito bairrismo, cariocas x paulistas. E a comissão técnica gostava de testar psicologicamente os atletas. Então, eles colocavam os de São Paulo para jogar no Rio e vive versa, observando a nossa reação. Dito e feito: Quando a Seleção Brasileira disputou contra o País de Gales, no Maracanã, o ataque era todo do Santos – só o Garrincha na ponta direita. Aí os torcedores tinham cartazes grandes: Aymoré Moreira, cadê o Amarildo? Cadê o Didi? E eu justamente no lugar do dele. [risos] Mas entramos e demos um show de bola!

Você teve esperança de participar de outras partidas da Copa?

Como eu disse, já tive o privilégio de ser convocado, joguei alguns amistosos, ganhamos… Mas eu não ia desbancar o Didi. Não corria ao jornal gritando: – Sou melhor do que o Didi! Não, ficava na minha. Acontecia a mesma coisa com o Vavá, o Amarildo e o Pelé, o Pepe e o Zagalo. Tínhamos a noção: na hora do vamos ver, eram eles os titulares. Não tinha cabimento eu desbancar o campeão do mundo. O homem foi maestro!

E viver ao lado do Garrincha?

Falar do Garrincha é o mesmo que falar do Pelé, não é? O homem era danado.

Em 1962, depois da preparação no Rio, vocês desembarcam no Chile. A expectativa do time, o clima, eram bons?

Eram. Arrumaram uma cidade afastada de Santiago, chamada Viña Del Mar, e nos alojamos nessa cidade. Fizemos todo o treinamento lá.

Você se recorda desses jogos da primeira fase?

Eu me lembro. Na memória está a partida contra a Espanha. 2 x 1, não foi? Foi essa a partida na qual o Amarildo se machucou?

O Pelé se machucou na partida contra a Tchecoslováquia e aí entrou o Amarildo.

Uma senhora responsabilidade. Procuramos de toda forma apoiá-lo. No princípio ele ficou bastante nervoso. Personalidade e força são necessárias. O Zito gritava… Ele gritava com o Pelé, por que não gritaria com o Amarildo? Ele deu um berro, o Amarildo levantou a cabeça e melhorou.

Quando o Pelé se machucou, vocês ficaram com medo de perder a Copa?

Tivemos receio, não é? Eu vi a distensão, até hoje não me esqueço. Os nervos pareciam querer saltar da coxa, sabe? Eu olhei e pensei: – Hum, esse não vai atuar mais nessa Copa. Pelé, caramba! Vamos ver no que vai dar. Poxa vida, aí baixou um santo no Garrincha: O homem fez gol até de cabeça! Seu Mané. [risos]

A Espanha possuía um grande time?

É. Um time inimigo do Brasil, que tem gana de ganhar. Ainda mais por que o Didi jogou no Real Madrid e não se bicava muito com o Estefano. [risos] Sei lá o ocorrido entre os dois… Então, ficou um clima estranho. Mas, no fim, ganhamos a partida.

E o pênalti do Nilton Santos, no qual ele deu um passinho fora da área? [risos]

É. Fora da área. Tudo é manha.

E a polêmica expulsão do Garrincha, na semifinal contra o Chile?

É. Uma confusão! Expulsaram o Garrincha. Ele fez de tudo, viu? [risos] Feito aconteceu com o Almir, no Santos X Milan no Maracanã. Estávamos no Campeonato Mundial Interclubes em 1963. Precisávamos de uma vantagem de dois gols e o Pelé se machucou. O Pelé, o Calvé, o Zito. O Almir entrou e se tornou o pivô da vitória do Santos. Ele armou mesmo: Um grande jogador e temperamental. Perturbou os italianos. Até hoje, o Maldini não quer ver o Almir na frente de jeito nenhum… [riso]

No time da Espanha, só o Mazola estava no ataque?

É. Do Brasil, o Amarildo e da Espanha o Mazola. Amarildo na ponta esquerda e o Mazola, centro avante. No segundo jogo, o treinador botou um peruano, Benitez, no lugar do Rivera, porque era mais técnico e essa partida seria mais pesada. E foi mesmo: Ganhamos de 1 x 0 – gol do Dalmo de pênalti. O Pelé não participou, nem o Zito. Sem o Pelé…

Na final, o Brasil enfrentou a Tchecoslováquia, resultado de 3 x 1. Você se recorda desse momento? Da festa, da alegria do Brasil ser o campeão do mundo?

Foi na capital do Chile, num hotel no centro de Santiago. Nunca vamos esquecer. Mas não existia essa grande demanda de torcedores de hoje. Você vai a outro país e está cheio de brasileiros. Fui convidado a assistir ao Santos x Peñarol, no Uruguai. Pô, o que havia de brasileiros lá! A torcida brasileira quase tomava conta da torcida do Uruguai.

Os chilenos apoiavam o Brasil ou a Tchecoslováquia?

Nem imagino! Nós não éramos bem-vistos, não.

O que significou ser campeão do mundo?

Tudo. É um título que fica para o resto da vida. É sempre lembrado. Campeão do mundo pela Seleção e campeão interclubes. Isso marca muito a vida de qualquer um. O atleta, atualmente, precisa se esforçar. Se for convocado, precisa dar de tudo e servir ao seu país da melhor forma possível, pois isso fica marcado.

Fale um pouco sobre a volta ao Brasil: O calor popular, encontrar o presidente, a emoção.

É o mesmo que acontece atualmente, mas hoje é mais agitado. Naquele tempo o povo brasileiro também apoiava… Realmente, eu não me tocava muito. Um dia, bem depois, assisti o Internacional ser campeão mundial interclube, e quando o time chegou, vi pela televisão aquele estádio lotado, o povo em festa… Fiquei olhando e pensei: – Caramba, eu fui campeão também! [risos] Eu tive esse título, rapaz! Aí caiu a minha ficha. Pô, preciso valorizar, não é!?

O Pepe contou uma passagem interessante sobre a chegada do time: Sua conversa com o presidente João Goulart. Como foi?

É. [risos] O Pepe sempre inventa umas histórias… Algumas são verdadeiras. Foi assim: Minha mãe pediu: – Filho, você vai encontrar o homem mais poderoso do Brasil. Os teus dois irmãos prestaram concurso federal, passaram, mas até agora não foram chamados. Veja o que tu podes fazer! [risos] Eu só pensava: – Caramba, vamos visitar o presidente da República! Daí, quando o João Goulart estendeu a mão para mim, eu levara um bilhete no qual tinha anotado o nome dos meus dois irmãos. Porto Alegre, concurso tal, pá, pá… E botei o papel na mão dele. [risos] Ele até se assustou. – Ô, presidente, me desculpe: Veja se o senhor pode fazer alguma coisa. Ele leu o bilhete e chamou o assessor: – Pega aí o pedido do Mengálvio. [risos] Isso aconteceu mesmo.

E deu certo?

Deu certo. Meus irmãos foram funcionários públicos. Eu não pedi para passar ninguém. Eles já tinham sido aprovados. O problema era não chamarem e não assumirem o cargo. E qual o mal havia em pedir? Nunca mais falei com ele sobre isso… Mas esse lance aconteceu.

Ainda em 1962, houve também os jogos do Santos contra o Benfica, não é?

O primeiro foi difícil, no Maracanã. Estávamos ganhando de 2 x 0 e eles empataram. Depois ganhamos de 3 x 2. Eu me curava de uma contusão no tornozelo – um problema que sempre acontecia. Eu não estava bem fisicamente, mesmo assim ganhamos. Aí, no segundo, em Portugal, o Benfica ficou cheio de máscara. O Eusébio, o Coluna, o Costa Pereira… Eles achavam que iam ganhar. Eu não me sentia muito legal, então o treinador me tirou e colocou o Lima no meio do campo. O Santos deu um show, o Pelé arrebentou!

A partida contra o Peñarol é muito lembrada pela confusão.

Ah, teve de tudo lá na Vila Belmiro: Expulsão, perversão do resultado, uma confusão… Depois nem jogamos no Uruguai, fomos a Buenos Aires, e ganhamos de 3 x 0.

Como era essa rivalidade? Muito pesada?

Até hoje existe isso aí. Eles não querem perder do Brasil. No outro dia o Carlos Alberto falou uma coisa e eu concordo: Os argentinos ainda tentam praticar futebol. São duros, mas jogam. E se perderem, perderam. O Uruguai não. Eles apelam. Tem alguns querendo futebol, agora, a maioria… Pô, o Santos padeceu e eles não tinham um time comparável ao nosso. Eles atuam pesado, não é? Nem é pesado o nome: Querem dar, bater mesmo. Nada fácil. Não deixavam ninguém atuar. O que faziam conosco… O escanteio nem olhava a bola e já se pendurava no ombro do Pelé, segurando ele. O gozado eram os juízes, vendo aquelas barbaridades… Às vezes isso acontece ainda hoje. Não apitam, não marcam nada… Se for para perder, que seja na bola, pô. Vamos jogar com a bola no pé!

Após 1962, o seu time – o Santos – continuou ganhando tudo. Você teve expectativa de ser novamente convocado?

Depois de 1962, não sentíamos muito aquela euforia.  Tanto é que nem eu ou o Coutinho, fomos convocados em 1966.

Foram muitos jogos, muitos títulos, muitas goleadas – até de 11 x 0! Sua vida pessoal mudou? Em qual momento você se casou e teve filhos?

Ah, isso é normal. Quando, depois de se profissionalizar, o atleta passa a ter certa condição financeira e é normal o cara formar família. Foi o que aconteceu. Eu me casei e constituí família: Minha esposa, Claudina de Moraes Figueiró, e minhas filhas.

Quando você saiu do clube?

Só saí no fim da carreira. Tive um problema no joelho e então saí. Aliás, em 1969 fiquei um ano na Colômbia. Mas tive o problema no joelho e encerrei.

Qual o seu último jogo na Seleção, Mengalvio?

Não me lembro, rapaz. Teve uma excursão em 1963, se eu não me engano.

Uma excursão a Europa, não foi? Enfrentaram Bélgica, Holanda, Alemanha, Inglaterra.

Uma excursão muito conturbada. Já estávamos há trinta dias com o Santos. Aí veio a Seleção e mais trinta dias. Puxado, tivemos muitos problemas físicos. Joguei algumas partidas e me lembro: quando confrontei a Alemanha, ganhamos de 2 X 1. Não sei ao certo se atuei contra a Bélgica, perdemos. Contra a Inglaterra, se não me engano, ganhamos.

Mas você ainda sonhava com a Seleção?

Não, não. É complicada a Seleção, principalmente no Brasil, por causa da quantidade de bons jogadores… Para treinar a Seleção Brasileira é necessário um equilíbrio muito grande, porque envolve muitas coisas, não é? Às vezes querem convocar um fulano gaúcho, outro mineiro, um pernambucano… Entendeu? Existe essa cobrança. Na Europa é fácil montar uma Seleção, aqui é mais difícil.

O Santos deixava de participar de alguns torneios nacionais e dava mais importância às excursões. Por quê?

Faturava mais nas excursões. O Santos cobrava uma taxa muito boa, então interessava excursionar. Esses campeonatos e torneios não rendiam muito ao clube. Então, não interessava financeiramente.

Vocês gostavam das excursões?

Claro. Faturávamos e o time só ganhava, pô. Nós nem nos lembrávamos de receber o pagamento.

Você jogou no Grêmio, não foi?

Três meses no Grêmio. Fomos campeões. O técnico Carlos Froner queria o título, mas estava difícil, por isso me sondou e perguntou se eu queria ficar três meses lá e tal. Eu fui. Levei a minha esposa e a minha filha comigo, a Fabiana – ainda pequena. Fiquei três meses lá e fomos campeões. Hexacampeões, se não me engano. Daí voltei ao Santos, fiquei um pouco, e depois fui a Colômbia.

Você foi para o Grêmio sentindo que o seu ciclo no Santos havia terminado?

Mais ou menos. Chegava ao auge, não tinha mais tanto a dar. Isso é normal. Eles tinham contratado vários atletas e tudo, e até a diretoria mudara.

Você encerrou a carreira na Colômbia? Levou a família?

Sim. Levei a patroa e as filhas. Fiquei um ano lá.

E o futebol colombiano naquele momento? Estava num nível muito diferente? Fale sobre a sua adaptação?

O futebol colombiano sempre teve afinidade com o brasileiro. Os jogadores eram habilidosos. Fui atuar no Millonarios, em Bogotá. Me parece que foram vice-campeões naquela época. Lá eu conheci o goleiro argentino Carrizo.

Também no final da carreira.

Também. Ele jogou no River Plate.

E a decisão de encerrar a carreira? Você era jovem, tinha apenas 30 anos.

Como eu disse, tive o problema no joelho.

Você queria parar?

Ninguém quer isso: Somos obrigados. Eu admiro muito quando vejo um jogador aos 35 jogando ainda atuando. Admiro mesmo.

Você teria continuado se pudesse?

Ah, claro!

O que achou dos times posteriores da Seleção?

Houve uma mudança muito grande no futebol. Na minha época, procurávamos o seguinte: com dois ou três toques, já estávamos lá, tentando o gol. Houve uma mudança tática, não é? Você pega a bola dali, daqui; dali e tal, até chegar lá. Na minha época, não havia nada disso. O Pelé dificilmente atrasava uma bola, ou dava de lado, ou isso ou aquilo. Tentava arrumar um esquema para ir em frente… Noto essa diferença no futebol de hoje. E o preparo físico também. Tínhamos a mentalidade de fazer a bola correr. Hoje, o atleta corre mais do que a bola. Dá mais carrinho… Era difícil darmos carrinho. Tem gente boa, as quais eu gosto de assistir. Mas o estilo mudou muito.

Você continua acompanhando o futebol?

Acompanho. Embora esse esporte tenha mudado muito. vejo equipes apresentando um bom futebol. O atleta corre feito se estivesse na São Silvestre. Precisa de velocidade? É claro. Mas hoje tentam correr mais do que a bola…

Qual a melhor Seleção: A de 1958 ou de 1970?

Não tem comparação. Não dá para dizer se o Didi foi melhor do que o Gerson, ou vice e versa. Enfim… Não tem como comparar.

Mas, sem pensar individualmente, e no conjunto?

Em 1970, acho, existia um maior número de atletas tecnicamente melhores. Isso é a minha opinião. Agora, eu não posso dizer: Ah, fulano era melhor do que ciclano. Não, são estilos diferentes. Rivelino tinha o seu, diferente do Didi. Um jogador veloz, rápido no drible… Certo?

Aquele ataque do Santos: Dorval, Mengalvio, Coutinho, Pelé e Pepe fez 2.092 gols juntos. Você considera o melhor ataque do mundo?

[risos] Você vem perguntar isso para mim? [risos] Eu precisava ser muito mascarado dizendo ser o melhor do mundo. Não posso dizer isso.

Por que não?

Só pode dizer isso quem nos assistiu. Não sou eu quem vai dizer que eu, Dorval ou Coutinho fomos os melhores. Em minha opinião: Um ataque do qual não nos esqueceremos, nunca.

O Brasil sediou uma Copa em 1950 e vai sediar outra em 2014. Qual a sua expectativa em relação a essa copa?

Muitos criticam… 1950 era outra época. Não fazer uma Copa aqui no Brasil, por causa disso ou daquilo é ridículo. O Brasil precisa fazer essa Copa. Afinal, fizemos em 1950, não foi? É necessário organizar e fazer tudo da melhor forma possível, para não darmos vexame. Mesmo assim, é muito válido sediarmos uma Copa do Mundo aqui no Brasil.

Você acredita que conseguiremos formar uma boa Seleção?

Está difícil. Sabe por quê? Muita cobrança, ninguém tem paciência. O treinador quer formar um time, mas todos querem resultado imediato. Querem ganhar, querem isso, querem aquilo. Isso dificulta muito. Em minha opinião, armar uma Seleção ideal, como desejamos, está complicado. Não estão conseguindo organizar nada. [risos] Não entendo nada do que vai ser formado ali. O Menezes está tentando, da melhor forma possível, criar uma Seleção e realmente chegar lá, não é? Uma coisa é certa: O atleta precisa ter espírito de Seleção. Se não tiver esse espírito, vai ser jogo duro.

Agradecemos muito a entrevista, Mengálvio.

De nada. Sou eu quem fica agradecido. Quando precisarem, é só ligar para a minha assessoria.


[1] Aymore Moreira

[2] Confederação Brasileira de Desportos.

[3] Vicente Feola.

Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Bernardo Borges Buarque de Hollanda

Professor-pesquisador da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV).

Daniela Alfonsi

Antropóloga, Diretora Técnica do Museu do Futebol e doutoranda pela USP. Trabalha com e pesquisa sobre os museus esportivos.
Leia também: