40 Anos da Copa de 1978

Depoimentos de jogadores da Seleção

 

Nota Explicativa

Esta série é parte integrante do projeto “Futebol, Memória e Patrimônio”, desenvolvida entre os anos de 2011 e 2012, com o apoio da FAPESP.A pesquisa foi realizada em parceria pelo CPDOC, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), e pelo Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), equipamento público vinculado ao Museu do Futebol/Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. Nesta seção, serão apresentadas as edições de 10 entrevistas concedidas por atletas brasileiros que estiveram presentes na Copa do Mundo de 1978, na Argentina, a décima primeira edição do torneio organizado pela FIFA. São eles:Emerson Leão, Oscar, Edinho, Carlos, Waldir Peres, Reinaldo, Zico, Nelinho, Zico, Rivellino e Polozzi. O propósito dos depoimentos, com base em sua história de vida, método caro à História Oral, foi rememorar as lembranças dos futebolistas acerca de sua participação na competição, de modo a destacar os preparativos para o Mundial, os jogos e a volta ao Brasil. O depoimento a seguir foi concedido no dia 16 de agosto de 2012, na cidade de Belo Horizonte, nas dependências do Centro de Treinamento de propriedade do ex-jogador. Para assistir ao vídeo com a gravação completa, clique aqui.

Entrevistadores: Bernardo Buarque (FGV/CPDOC) e José Paulo Florenzano (PUC-SP/Museu do Futebol); Transcrição: Líris Ramos; Edição: Pedro Zanquetta

reinaldo
Reinaldo. Ilustração: Xico.

 

Reinaldo

 

José Reinaldo de Lima nasceu no dia onze de janeiro de 1957, em Ponte Nova, interior de Minas Gerais, onde passou boa parte de sua infância. Com treze anos, já jogava com os profissionais do Pontenovense e do time Primeiro de Maio. Em 1971, após uma partida do Atlético-MG em Ponte Nova, sob indicação do técnico Barbatana, foi convidado a treinar no Galo. Ao treinar com os profissionais, destacou-se ao lado de jogadores como Dadá, Humberto Ramos, Oldair e Vantuir, e assinou seu contrato logo em seguida. Em 1973, com dezesseis anos, foi promovido por Telê Santana ao time profissional do Atlético Mineiro Sua primeira partida foi contra o Valério, quando marcou dois gols. No ano seguinte, em um jogo contra o Ceará, torceu o joelho e teve de passar por sua primeira cirurgia. A partir daí, as lesões não cessaram e chegou a passar por nove intervenções cirúrgicas. No Atlético, fez ao todo 475 jogos e marcos 255 gols. Foi hexacampeão mineiro, campeão da Copa dos Campeões e duas vezes vice-campeão brasileiro. Em 1980, decidiu a final do campeonato brasileiro contra o Flamengo, considerado um dos jogos mais importantes de sua carreira. Em 1975, já fazia parte da Seleção Brasileira e foi terceiro colocado na Copa América. Durante a Copa do Mundo de 1978, atuou nas duas primeiras partidas da competição. Atleta com convicções políticas, desenvolveu o hábito de comemorar seus gols com o punho erguido e fechado, um gesto que sinalizava para sua sintonia com movimentos insurgentes internacionais, como o estadunidense black power. Em 1985, depois de catorze anos no Atlético, mudou-se para São Paulo e passou a jogar pelo Palmeiras. Antes de encerrar a carreira, atuou no Amazonas, no Cruzeiro e no futebol sueco. Pendurou as chuteiras em 1987. Foi eleito deputado estadual em 1990, pelo PT. Elegeu-se vereador em Belo Horizonte, no ano de 2004, e em 2012 iniciou um trabalho como técnico no Villa Nova –MG.

 

Depoimento 

Muito obrigado por acolher nosso convite e nos receber tão carinhosamente em Nova Lima, no seu próprio clube. Fale um pouco sobre as suas lembranças da infância, da família e do princípio no futebol.

Eu, José Reinaldo de Lima, sou mineiro de Ponte Nova, Zona da Mata. Quando aprendi a correr já jogava bola na rua. Meus irmãos mais velhos sempre praticaram futebol, um deles, inclusive, no Botafogo. Tínhamos uma ligação muito forte com o Rio de Janeiro, e desde pequeno sonhava me tornar um atleta de futebol. Joguei pelada a vida toda e tive a felicidade de estudar num colégio de padres salesianos – eles incentivavam muito o esporte. A minha cidade sempre teve muitos campos e, aos nove anos de idade, fui para o futebol de campo. O 1º de Maio foi meu primeiro clube e no campeonato me revelei artilheiro, um grande talento. Fiquei famoso na minha cidade. Todo mundo me conhecia como Zé Caboré. Don Miguel Trincham, era um espanhol da minha cidade. Logo cedo observou minhas qualidades e me preparou. No dia 7 de setembro de 1971 o Atlético fez uma partida em Ponte Nova e ele, o Biagio, um suíço, e o Renato Marinho me indicaram ao treinador do Atlético, o Barbatana[1]. Vim a Belo Horizonte – nem conhecia a nossa capital. O primeiro treino foi justamente contra o time campeão brasileiro daquele ano. Tinha 14 anos e já fui enfrentando os profissionais do Atlético, comandado na época pelo Telê Santana. Entrei no treinamento sem imaginar, sem responsabilidade nenhuma e fiz dribles e gols, despertando a atenção do Telê e do próprio Barbatana. Após o treinamento, imediatamente me contrataram. A partir daí fiz minha carreira, minha trajetória no Atlético, até 1986.

Fale um pouquinho da sua família, dos seus pais, o que achavam do futebol. E sua cidade?

Minha cidade, na Zona da Mata, interior de Minas, ainda fazia parte de um Brasil tropical, do chá-chá-chá, e um polo da usina de açúcar, com grandes festas e muito futebol. Um carnaval, grandioso e, no geral, uma cidade bastante alegre e bonita. Minha família era simples. Meu pai, ferroviário, e minha mãe, professora. Naquela época, por causa da profissão de meu pai, podíamos viajar de trem ao Rio de Janeiro em todas as férias. Conheci o mar antes de ir a Belo Horizonte. Meu irmão atuava no Botafogo e, ainda garoto, eu frequentava o General Severiano[2], onde tive a oportunidade de conhecer o Zagalo, o Jairzinho, Paulo César, Carlos Roberto, Roberto, Leônidas, todo aquele grande time do Botafogo de 1966 a 1968. Convivia em meio a eles e assistia aos treinos. Meu irmão pretendia me levar para fazer um teste lá, mas eu não tinha terminado a quarta série ainda e no final do ano iria ao Rio, de férias. O Atlético então veio, desviou a minha história e foi muito bom.

Quantos irmãos você tinha? Além do seu irmão, mais alguém praticava?

Somos oito irmãos. Quatro mulheres e quatro homens. Todos os irmãos jogavam bola, mas apenas este, o Mario, seguiu carreira no Botafogo, durante um bom tempo.

Seu pai chamava-se Mario Lima e sua a mãe Maria Coeli?

É, Maria Coeli. Meu pai foi um grande incentivador, porque desde o primeiro treino até falecer, sempre me acompanhou. Delirava com os meus gols e lances. Era também muito exigente. Às vezes eu marcava dois, três gols e ele pedia mais! [riso] Muito divertido, uma pessoa alegre.

Você estudou até qual série?

Em Ponte Nova fiz o primário e a quarta série. Depois, em Belo Horizonte, o científico. Terminei o segundo grau e parei. Mais tarde, aos 40 anos, voltei a estudar e me formei em jornalismo.

Fale sobre início no Atlético. Como foi iniciar a carreira num clube de grande expressão? A partir de qual momento você percebeu que seria um atleta, um ídolo, e esse seria o seu futuro?

Ah, foi maravilhoso, porque a minha projeção no futebol foi rápida. Cheguei em 7 de setembro, no dia 8 já treinei contra o profissional e fui contratado pelo Atlético. Só isso já era motivo de grande orgulho, uma honra. Eu ainda tinha 14 anos e fiz o teste no juvenil. Aí o técnico do infantil me convidou a disputar o campeonato e, por sorte, ele foi transmitido pela antiga TV Itacolomi, em várias cidades do estado, e os comentaristas eram o grande Roberto Dumont e o Kafunga, pessoas de grande expressão na imprensa mineira. Nesse primeiro campeonato no dente de leite, eu, que sempre atuei em meio a adultos, disputei com uns meninos de apartamento e me tornei artilheiro: Fiz 38 gols. O Dumont já me apelidou de Baby Craque e fiquei famoso. Ganhei prêmio de uma loja Mesbla, ganhei bicicleta… Ganhava tudo! De setembro até o final de 1971 foi só sucesso e fiquei famoso do dia para a noite. Em 1972 entrei no infanto-juvenil, disputei campeonato e fui artilheiro também: Fiz 32 gols. Veio a Taça Cidade de São Paulo, no final de 1972, e perdemos na primeira fase. Voltei a Ponte Nova nas férias e o Atlético me ligou: Haveria o Tornei do Povo e o time principal do Atlético disputaria contra o Flamengo a Taça Minas Gerais, numa partida mista profissional e juvenil. Fui convocado no início de 1973. O estádio cheio – naquela época 50, 60 mil pessoas lotavam o Mineirão. Fizemos a preliminar contra o Valério Doce e eu era completamente desconhecido da torcida do Galo, mas entrei no jogo e fiz um gol. A torcida e a imprensa imediatamente começaram a perguntar: – Quem é esse garoto? Despertei a atenção de todos! Continuei marcando gols e o Telê me requisitou no profissional – eu tinha 16 anos. Ainda existia a lei do passe e qualquer time poderia me pegar, por isso o Atlético me profissionalizou cedo. E então disputei o primeiro campeonato brasileiro, no qual tive a oportunidade de enfrentar o Pelé e outros grandes ídolos. Estive muito bem, mas logo sofri a minha primeira cirurgia no joelho, seguida, dois meses depois, pela segunda. A medicina era arcaica, a conduta dos médicos, muito antiga: Punção, muita infiltração… Isso me prejudicou mais tarde, trazendo consequências mais dolorosas. Desde o meu primeiro ano no profissional, nunca atuei nas minhas condições ideais, sempre tendo problemas no joelho. É uma articulação muito difícil, complicada e a medicina não tinha recursos. Nasci numa época difícil, os campos eram muito ruins, os beques davam muita porrada, os juízes eram ladrões e as condições práticas, precárias. Mesmo assim, me sinto muito feliz, realizado. E depois, apesar das dores, cirurgias e intervalos, sempre joguei.

Antes de se tornar atleta, você assistia aos jogos de Minas ou o Rio de Janeiro exercia uma atração maior? Como foi sua relação com o futebol mineiro? Você já torcia pelo Atlético?

A Zona da Mata sofria muita influência do Rio. O futebol, em garoto, era mais do Rio e de São Paulo. Minas começava, havia inaugurado o Mineirão e divulgava seus grandes times: o Atlético e o Cruzeiro. Sempre fui atleticano, porque lá em casa todos eram alvinegro, Botafogo, Santos, 1º de Maio – nosso time lá da rua – e Atlético. Mas quase não acompanhávamos o futebol mineiro. Lembro-me de uma partida, Atlético X Cruzeiro, na qual o Atlético ganhava de 3 X 0. Jogávamos bola na rua e todo mundo comemorava. Aí o Cruzeiro empatou e foi uma decepção. Essa é a minha lembrança do futebol mineiro quando eu ainda estava em Ponte Nova. Uma vez também vieram à minha cidade – no inicio do time, em 1964, 1965 ou 1966 – e ganhei um lápis do Atlético, coisa que cativa os meninos. Começaram a me conquistar com esse lápis e um caderno que trazia o escudo do Galo.

Vocês escutavam as partidas pelo rádio, ou já assistiam pela televisão?

Rádio e figurinha – fazia coleção delas, mas também tinha pouca coisa de Minas, era só Rio e São Paulo. Escutávamos muito radio e até boxe acompanhávamos, mas sempre pela imprensa carioca. Só tive contato com BH em 1971,1972, e morando lá. Agora sou BH.

Você chegou ao Atlético junto no momento no qual o time se tornou campeão.

Sim, o Atlético foi campeão. O Cruzeiro, até 1975, ainda tinha uma base boa. Mas eu havia feito as operações e nosso time do juvenil vinha crescendo: Eu, Cerezo, Marcelo, Danival, Marinho, Paulo Isidoro, João Leite… Da segunda vez que o Telê veio treinar o Atlético, promoveu mesmo a todos nós e acabamos com a hegemonia do Cruzeiro. Em 1976 fomos campeões mineiros. O Cruzeiro tinha um grande time. Foi campeão da Taça Libertadores, em 1976, mas, com todo o respeito, brincamos com o time deles nessa final. Em 1977 a decisão foi complicada, mas nosso time ainda era melhor. Depois, ganhamos de 1978 até 1986, quase uma década! Fomos campeões por nove vezes, se não me engano. O Atlético se firmou no cenário mundial, porque também fizemos muitas excursões. Nessa época, tínhamos muitos colegas na seleção e ganhamos um maior status dentro do futebol.

Você gostava de morar em Belo Horizonte? Conte um pouco sobre se tornar ídolo de uma torcida tal qual a do Atlético? Como era a vida dos esportistas em 1970?

Ah, Belo Horizonte é uma cidade gostosa demais. E eu peguei a época na qual a gente andava na rua. Eu saia a pé de Lourdes e ia ao centro da cidade. Quando estava na categoria de base, cheguei ao Atlético e tinha a seguinte rotina: treinava de manhã, almoçava, e depois ia andando de Lourdes até o centro, na Tamós, a Igreja Santo Antônio. Dom Serafim era quem comandava a igreja, um grande franciscano, arcebispo de Belo Horizonte, e ensinou vários jogadores a ler. Eu aprendi xadrez lá, com os padres – mando muito bem –, e também porque serviam um rango bom. Comíamos bem melhor lá, do que na concentração, e Dom Serafim sempre incentivava, tocava uma musiquinha, e ajudávamos na missa. Em alguns dias rezávamos três, quatro missas, vendíamos vela, sempre colaborando dentro da igreja. Tive uma adolescência legal. Depois, voltava andando pela rua, brincando pela cidade. Em 1971, Belo Horizonte ainda era uma cidade de jardim, fácil de morar. E o clima é muito agradável, o povo, fora ser uma cidade eminentemente atleticana. Logo passei a ser reconhecido na rua, ganhava muitos presentes e a cidade foi inflando meu ego. [risos]

O grito da torcida: “rei, rei, rei, Reinaldo é nosso rei”, nasceu nesse início ou foi mais tarde?

Isso. Surgiu em 1976 ou 1977. Fizemos uma campanha maravilhosa no campeonato brasileiro de 1977, fomos vice-campeões invictos, porque no último jogo contra o São Paulo a ditadura não me deixou participar – fui expulso na primeira fase do campeonato e o Serginho Chulapa na semifinal. Como ele já ia cumprir a suspensão automática, pegaram meu julgamento, o qual estava engavetado: – Vamos julgar agora. E me vetaram. Se jogasse, certamente seríamos vencedores. Não tenho falsa modéstia: Até hoje sou o maior artilheiro deste campeonato, com média de 1,56 gols por partida. Fiz 28 gols em 18 jogos. Não deixei de fazer em nenhum. Não seria justamente na final, no Mineirão, o momento do artilheiro aqui falhar! Mas não atuei e pegamos o segundo lugar, invictos, contando mais de dez pontos à frente do São Paulo. Mas a grande alegria, a confirmação do “rei, rei, rei, Reinaldo é nosso rei”, foi em 1980, quando o Papa João Paulo II, o polonês, veio ao Brasil pela primeira vez. Ele esteve aqui em Belo Horizonte, e lá de cima do altar, Dom Serafim – atleticano nato e hereditário–, começou a entoar para a multidão de fiéis e todos cantaram juntos: “rei, rei rei, o Papa é nosso rei”. Foi a consagração. Minha mãe se encheu de orgulho, muito religiosa, e foi melhor do que marcar um gol dedicado a ela.

Em 1974 o Brasil disputou a Copa da Alemanha. Você participou?

O problema foi ter uma carreira muito intercalada: Estava bem, mas me machucava. Jogava com o joelho inchadão, e vivia fazendo punção e infiltração. Só interrompi esse processo em 1975, quando o Dr. Nilo Osmar chegou ao Atlético: – Não vamos fazer infiltração e sim outro tipo de tratamento. Fizemos: Remédios via oral, uma operação, radioterapia – inibia o derrame –, e por isso tive a minha melhor fase em 1976, 1977.

Então você foi convocado pela seleção brasileira?

Sim, fui convocado pela primeira vez em 1975, seleção da Copa América – começou aqui em Minas e foi agregando outros atletas de São Paulo e do Rio. Disputamos no Peru. Depois fui convocado em 1976, 1977, 1978… Em 1979 eu não participei, fiquei me recuperando. Voltei em 1980, 1981 e em 1982 não fui a Copa, mas fiz as eliminatórias. Mais tarde também, em 1984, 1985 – sempre sem muita sequência, por causa da fragilidade física.

Muitos jogadores revelam essa dificuldade: o atleta espera, treina muito e, no momento crucial, o problema físico impede a participação.

É. Na realidade, não havia retaguarda da medicina. Muito precária, muito agressiva. Não existia essa preparação de hoje. Tiravam o menisco, infiltravam, usavam saquinho de abelha… Hoje existe tudo, tem academia, fisioterapeuta e tal. Na minha época era forno de Bier e toalha quente. Não tínhamos recursos.

Quando estava fora, você observava existirem métodos mais modernos?

Não. Não tínhamos mesmo tanto conhecimento da medicina. Tanto que, em 1978 me operaram em Nova York. Um grande médico – operou o Cassius Clay e o James Nicola. Ele fez uma toalete no meu joelho, porque já havia operado três vezes. Minha rótula era uma estrela do mar, toda cheia de pontas e a cabeça da tíbia e do fêmur tinham uma artrose bastante avançada. A membrana sinovial tinha uma inflamação crônica e, quando abriram, descobriram que o ligamento cruzado já tinha dançado – não existia ainda a técnica de operar o ligamento. Ele então descolou o músculo quadríceps, e o reinseriu mais abaixo, dando ao músculo maior estabilidade, mas fiquei de perna dura. Quando voltei, passei o dia inteiro dentro de uma banheira térmica, quente, o cara flexionando a minha perna tentando recuperar o movimento. Consegui 70% da flexão e joguei mais nove anos de perna dura, sem conseguir dobrar a articulação. Quer dizer, minhas condições físicas eram muito ruins. Os campos também eram piores e a regra não protegia os atacantes. Sempre fui habilidoso, mais de drible, e os caras davam porrada de mão e de tudo quanto é jeito… Por isso o Brasil não ganhava a Libertadores… Os caras, além do mais, usavam doping. Era muito difícil. Antigamente, para atuar, o atleta precisava, acima de tudo, ser corajoso. Se jogassem hoje, aqueles beques seriam expulsos em cinco minutos. [risos]. Então, foi isso aí. Mas mesmo com todos os problemas, tudo deu certo.

Esses problemas, desde o início em 1973, foram decorrentes do embate contra zagueiros brutais?

Isso mesmo. Numa partida contra o Ceará – na verdade eu era um adolescente enfrentando adultos – o beque já veio me atropelando. Minha perna ficou presa, fez a alavanca e lesionei o menisco. Hoje em dia, cirurgia de menisco é coisa simples, mas naquele tempo, primeiro, cortavam feitos açougueiros, depois engessavam do pé até a cintura, aguardavam a cicatrização e a perna atrofiava. Minhas pernas eram, uma fininha, a outra normal. Não existia musculação e eu fazia a recuperação com saquinhos de areia. Como você não tem mais musculatura, sobrecarrega o joelho e isso causa derrame. Começa então a necessitar de punção diariamente. O médico tirava o líquido, injetava droga, tirava o líquido, injetava droga… Fiquei nesse processo uns quatro anos, direto. Foi quando o Dr. Nilo chegou e mudou tudo. Aí sim, fiz radioterapia, uma dieta violenta, na qual tomava 200 mg de cortisona, 50 de Lasix, diariamente, até o final. Por isso parei de jogar cedo: Não aguentava mais e sabia da impossibilidade de melhorar. Lutei o quanto pude.

Você se diferenciou pelo posicionamento político na década de 1970, algo não tão comum entre os atletas de futebol. Existe alguma relação familiar ou é uma característica sua? Conte um pouco sobre isso.

A política foi assim: Meus pais e irmãos eram todos partidários do PSD e da UDN. Sempre participei das campanhas políticas – saía distribuindo santinhos lá em Ponte Nova. Na revolução cubana, tínhamos um vizinho, o Sr. Morete – trabalhava no Banco do Brasil. Era a época do chá-chá-chá, e todo sábado ele nos levava de jeep ao campo de aviação de Ponte Nova. Lá, lutávamos boxe, e ele ficava falando no rádio e isso foi muito importante, pois éramos apenas meninos. Quando aconteceu a revolução, meu pai fazia aniversário – no dia 30 de março –, e eu dormia em um quarto no qual abria a janela e estava na rua, então eu pulava da cama e ia jogar bola. Mas neste dia, pulei e lá fora havia dois soldados do tiro de guerra segurando fuzis – nunca havia me deparado com tal situação. Ninguém podia sair na rua e tomei um grande susto, logo de manhã. A gente nem imaginava o que seria o golpe militar. Eu tinha uns sete anos. Depois soubemos: O Sr. Morete era comunista e havia desaparecido… Além dele, outra pessoa de Ponte Nova também sumiu… Tinha aquela história: Comunista corta cabeça de criancinha! Esse fantasma da ditadura… Em casa era assim: Meus irmãos terminavam a quarta série e saíam de Ponte Nova. Uma irmã foi ao Rio, outro a São Paulo, outro ao Rio também, seguido por minha outra irmã, a Rosa – ela cursou o normal, pois as minhas irmãs se formaram professoras. Tinha ainda outra irmã e depois vinha eu, o sexto. Em 1967, 1968, quando começou aquele fantasma, minha mãe e todo o pessoal viviam preocupados com meus irmãos estudando fora, em cidades grandes, os movimentos políticos…  Ouvíamos um zum, zum, zum e as preocupações, mas nada demais. Nesse meio tempo, vim ao Atlético e quem abriu meus olhos foi o Frei Beto. Eu morava no São Pedro e ele foi vizinho – coincidentemente, a Dilma[3] também morava na mesma rua, todos no mesmo quarteirão. Foi assim: Fiquei muito amigo do Leonardo Cristo, irmão do Frei Beto, e no dia no qual ele sairia da prisão fomos, eu, o Leonardo, a mãe deles, dona Stela – uma grande cozinheira de receita –, o pai, Dr. Antônio Carlos Cristo – desembargador, escrevia muito bem –, todos para recebê-lo. Conheci-o e logo tivemos algumas conversas políticas. Também conheci o Lula em sua casa, em 1975. Ele morava em São Paulo, e vinha aqui apenas de vez em quando. Aí começaram vários movimentos, em muitos lugares. Como não existiam partidos, apenas o MDB e a Arena, não tinha sindicato, nem agremiação, ou qualquer forma de discussão, reunião… Mas surgiram aqueles movimentos: Um falava sobre a ditadura aqui, outro ali, essas coisas, e nós sempre acompanhando e esperando. Foi quando decretaram o AI5, aquela repressão do governo… Passei a ter contato com muita gente: Gonzaguinha, Fernando Brant, todos participantes desses movimentos mais revolucionários. Quando se iniciou um relaxamento, certa distensão política, no governo Geisel, dei uma entrevista no jornal Movimento – da imprensa alternativa, mas de circulação nacional –, e declarei meu posicionamento em relação a democratização, o retorno dos militares aos quartéis, a Anistia, a queda do AI5, e isso foi uma bomba. Eu não podia imaginar a extensão. A censura existia mesmo e ninguém esperava esse tipo de declaração de alguém do futebol – o mundo do futebol sempre foi tachado de alienado e reacionário, até eu dar essa entrevista. Como não havia uma esquerda organizada e a direita era poderosa, me descaracterizaram, foi uma pressão muito grande… Eu conhecia o ministro da agricultura da época, Paulo Neri, ele me levou a Brasília e alertou: – Não é bem por aí não, menino… Na despedida da Copa de 1978 estavam ele, o general Geisel e o Ney Braga – o conheci naquela época, ministro da educação – e ele quis me apresentar ao presidente. Geisel estava de farda verde oliva e quepe, bem general mesmo, e falou: – Ah, esse é o menino Reinaldo? Joga muito bem! Mas você vai jogar bola, não mexa em política, não fale de política. Nós resolvemos essas questões e vocês jogam bola. – Tá bom, sim, senhor. Depois a imprensa começou divulgar que eu não tinha condições físicas, era homossexual, gay – chamavam de bicha mesmo –, cachaceiro, maconheiro… Isso perturbou, principalmente dentro de casa. Minha mãe ficava muito assustada.

E no ambiente do futebol?

Não cabia essa discussão. Aliás, não existia nenhum ambiente para esse tipo de conversa, nem no futebol, nem nas escolas, nem em lugar algum. Ninguém falava o nome do presidente. Não se discutia política em bares, ruas ou estádios de futebol. O campo de futebol era a única válvula de escape, mas não discutindo política e sim soltando as neuras.

Na edição seguinte a sua entrevista no jornal Movimento, publicaram nota sobre a possibilidade de cortarem-no da seleção pelos seus posicionamentos. Qual foi o papel do Claudio Coutinho?

A comissão técnica da CBD e da seleção toda formada por militares: Coutinho, Chirol, Andre Richet, almirante Nunes… Mas o Coutinho era um gentleman. Foi quem garantiu e bancou minha ida a Copa – levou, inclusive, um aparelho para me recuperar. Um grande fã meu. Antes de dar essa entrevista, comecei a usar um gesto do socialismo, gesto revolucionário, este aqui[4]. Também tem um significado racial, pantera negra, porque tínhamos um pouco de receio. Mas na verdade, um gesto socialista. Comecei a fazer isso visando acelerar o processo democrático. Nada estava organizado, não havia sindicato, nem partido político. Não tínhamos a quem recorrer, então eu mesmo fui lá e decidi falar sobre isso de dentro do futebol. Então eu fazia esse gesto.

E o risco de ser cortado?

Ah, o risco de ser cortado! Fui para a seleção e fazia esse gesto. O coronel André Richet me aconselhou diversas vezes: – Não faça esse gesto, não faça! Na seleção, quase não fiz mesmo. Até chegar a Copa do Mundo. Quando fiz o primeiro gol, abri os braços e depois fiz o gesto. Fiz este primeiro contra a Suécia e fiz o gol. Depois, contra a Espanha, empate, não foi bom. No terceiro, o almirante Heleno Nunes, presidente da CBD, veio do Rio de Janeiro e tirou a mim, Zico e Cerezo. Foi quando entraram o Jorge Mendonça, o Chicão e o Roberto Dinamite. Mudanças feitas assim, na reunião com o presidente. Ele chegou e mudou tudo. Fiquei de fora e só voltei na última partida. O Coutinho nunca teve um posicionamento reacionário e ditatorial como esse. Essas foram as restrições vividas na seleção. Deveria, inclusive, reclamar agora nessa Comissão da Verdade pois, sem dúvida, fui prejudicado por forças ocultas. Tenho certeza de haver alguma ficha ou citação ao meu respeito nos arquivos do Dops.

E havia o agravante da Copa acontecer na Argentina, que também sofreu um golpe militar, com o Jorge Videla. Como estava a atmosfera?

Atmosfera de guerrilha mesmo e vimos bem de perto. Em Mendonça – ficamos num hotel ao pé da Cordilheira –, ouvíamos a noite inteira tiro de metralhadora e cachorros latindo durante todos os dias nos quais estivemos lá. No campo era possível ver as pessoas tristes. A ditadura é um negócio… O povo fica lerdo e triste, não é? De cabeça baixa mesmo… Melhorou um pouco na comemoração, quando a Argentina foi campeão. Decidi ir a 9 de Julho, aquela avenida grande, e o povo parecia estar num velório, numa procissão… Uma comemoração um pouco triste. Todas as ditadura são iguais, não é?

E o gesto de atletas como Cruijff, que se recusou a ir a Copa em protesto ao golpe militar. Vocês comentavam essa atitude?

Não. A discussão política não entrava na concentração, no meio dos jogadores… Até hoje ainda, no futebol, ninguém está muito preocupado. Nem sei se deveriam, quer dizer, é importante exercer sua cidadania fora dali, mas levar essa discussão à concentração também não é conveniente.

Então, em sua percepção, o país estava vivendo sob forte tensão?

Sim, era muito triste. A ditadura traz esse fantasma: A pessoa não relaxa, pensa estar sendo traída, imagina alguém alcaguetando – a famosa expressão dedo duro. Uma época muito tensa. Mesmo não tendo conhecimento, não sabendo de nada, não há como não perceber. Está estampado na cara das pessoas: O clima é difícil, muito pesado. O país fica assim até nas roupas, no jeito de se vestirem. Quando começaram a discutir e surgiu o movimento das Diretas Já foi uma alegria. O Brasil voltou a respirar. Infelizmente, o povo extrapola, e a democracia hoje está contaminada por algumas doenças do consumismo.

Existia essa ideia da vitória ser um apoio simbólico ao regime militar – como, de certa forma, foi em 1970 –, ou isso não passava pela cabeça de vocês?

Não passava, não. Já estava numa época um pouco mais aberta e não havia essa motivação. Mas também não existia ainda espaço para nenhum movimento político.

Voltando à questão do almirante Heleno Nunes. Houve mesmo uma intervenção direta?

Direta. Ele chegou e, na reunião, mudou o time. Claro, nós empatamos contra a Espanha e corríamos o risco de não nos classificarmos mas, de qualquer maneira, um presidente fazer essas indicações…

Ele então passou por cima do Claudio Coutinho?

É. Aí existe a hierarquia. Ele não era apenas almirante, mas sim, presidente. Passou por cima mesmo. O Coutinho sempre foi um cara mais flexível e não iria bater de frente, ainda mais naquele clima após o empate – poderíamos ter perdido. E o almirante Heleno Nunes foi bem direto na reunião.

Você estava presente?

Claro, todo mundo estava presente.

Qual avaliação você faz do desempenho da seleção brasileira nas duas partidas nas quais participou? O que faltou para o time engrenar e apresentar um bom desempenho?

A primeira coisa foi o seguinte: O gramado de Mar del Plata era muito ruim, porque as placas estavam soltas e encharcadas. A partida estava muito pesada. Outra coisa foi o grupo da seleção. Tínhamos alguns atletas muito experientes e outros muito novos, e existia certo conflito com o Claudio Coutinho impondo uma maneira de jogar. Ele sofreu muita pressão. Encontramos dificuldades da própria partida. Nessa época o futebol estava sofrendo uma transformação, o uso de mais força física. Enfrentamos adversários europeus muito bem preparados fisicamente. Pegamos a Suécia, a Espanha e a Áustria, todos times pesados. A seleção não atuou um futebol bonito pelas dificuldades enfrentadas, tanto táticas quanto pelo estado do campo, mas ficou invicta em terceiro lugar. Não foi brilhante, nem exuberante, mas também não foi medíocre.

O Brasil veio de uma época de conquistas, chegando ao ápice em 1970. Na Copa de 1974 houve a surpresa do carrossel holandês. Em 1978 havia o desejo de reconquistar essa supremacia? Como era o ambiente dentro do grupo?

Pois é, foi um grande dilema… O Claudio Coutinho trouxe uma transformação no futebol, com overlap, ponto futuro e tal. Eu era novo e aceitava tudo, mas para o Rivelino, o Luiz Pereira ou o Leão, parecia querer inventar moda no futebol. Nós realmente não conseguimos compreender aquele método que ele queria aplicar, uma importação do sistema europeu. Não sabíamos fazer. Até os treinamentos eram difíceis de entender ou fazer. Se tivéssemos ficado no nosso joguinho mesmo, talvez… Mas o Coutinho queria impor essa nova maneira de atuar o futebol… O Toninho, um lateral jogando feito ponta direita… A escola europeia usa a marcação individual, não marcar a zona, mas sim acompanhar o homem. Foi difícil. Quando comecei a receber marcação individual, a coisa ficou até patética. Depois atuei no futebol holandês e aquela saída, o carrossel, é muito simples. Lá fazem isso porque confiam no bandeirinha, na arbitragem. Por que, até hoje, não fazem isso no Brasil? Ninguém confia no bandeirinha, no juiz. Principalmente fora de casa, fazer essa linha de impedimento é dar mole. Então esse método sistemático europeu, importado, até hoje ainda não foi compreendido aqui. Eles atuam assim desde o dente de leite. O Brasil tem um jogo de homens, se apoia mais no imprevisível, na capacidade técnica do atleta criar uma jogada. Alguns posicionamentos eram bem tradicionais, como voltar até o meio de campo, mas, acho que, se tivéssemos nos mantido na escola brasileira mesmo, talvez o entendimento, o entrosamento fosse melhor. O Coutinho também tinha um vocabulário bem refinado e era difícil entendermos suas falas. Na aplicação mesmo, dentro do campo, tivemos essa dificuldade. Fora isso, pegamos uma equipe muito bem treinada, inclusive emocionalmente. O europeu tem uma preparação emocional melhor. Naquela ocasião, mais ainda. Hoje, o atleta brasileiro joga na Europa e tal, naquela época não. Tomamos uma lição em 1974, não apenas da Holanda, mas também da Polônia.

No terceiro jogo, contra a Áustria, o Roberto Dinamite entrou em seu lugar. Foi muito frustrante sair? Houve uma disputa?

Dentro do grupo é tranquilo. Respeitamos os colegas. Tudo é uma questão de oportunidade. Eu também não estava em minhas melhores condições. Você pode reparar: Eu só treinava de calça. Aqui no Atlético eu tinha privilégios: Não treinava, ficava com o joelho enfaixado, tomando medicações. Tinha uma dieta e só treinava um pouquinho. Na seleção eu mascarei isso. Então, enfaixava o joelho e treinava só de calça cumprida. Quando o Coutinho percebeu, trouxe a máquina para ajudar na minha recuperação e no ganho de musculatura, mas eu não estava bem… A Copa do Mundo terminou em julho e no dia 2 de agosto fui direto à Nova York me operar. Meu joelho já era… No período de 1975 até o início de 1978, no Atlético, ainda estava bem por causa do tratamento de radioterapia – até perdi os cabelos da perna, mas inibia o derrame, as células de inflamação. Além disso, tomava remédio e vivia comprimindo o joelho – isso ajudava –, e não treinava. Na seleção precisei treinar e meu joelho inchou. Se eu chegasse perto do Lídio Toledo[5], me cortavam na hora, então enrolei, mascarei a coisa até chegar lá.

Na segunda fase, o Brasil engrenou, mas viveu a frustração de ser eliminado daquela forma, e até hoje existe a polêmica sobre uma eventual interferência no resultado. Como foi para o grupo encarar a vitória da Argentina, que antes parecia tão pouco provável?

Quando ganhamos da Polônia de 3 X 1, sabíamos ser muito difícil chegarmos a final, porque além da Argentina ter um grande time, muito bem preparado, o goleiro era argentino, pô. [risos]. Quer dizer, no futebol não existem santos, não, então, estávamos mais ou menos esperando. Torcíamos, mas foi muito difícil. Tomamos um gol da Polônia e fazíamos um saldo muito elástico – o esportista tem essa maldade. E o Peru tinha uma boa seleção – das últimas que eles tiveram. A Argentina precisava desse título. O general Videla ia ao vestiário deles em todos os jogos! Devia ir ao vestiário do juiz também, não é? [risos].

Como foi voltar ao Brasil sem a vitória?

Invicto, não é? O Coutinho chamou muito a responsabilidade para ele, assumiu mesmo. Sempre teve um grande caráter. E criou aquela frase histórica: – Nós somos campeões morais.

Quando você saiu do time, ficou clara a impossibilidade de atuar no restante da Copa ou ainda alimentava esperanças?

Não, eu já sabia. O Coutinho conhecia o meu estado físico. Tanto que só me colocou no último jogo contra a Itália. Ele passou a me acompanhar mais e eu me abri mais com ele.

Você estava no banco de reservas contra a Argentina?

Não, não fiquei nem no banco. Só joguei contra a Itália no final, no segundo tempo.

Reinaldo, uma informação que gostaríamos de checar: Durante a Copa você recebeu um envelope anônimo, remetido da Venezuela, trazendo informações sobre a operação Condor?

É. Foi o seguinte: Estávamos em Mar del Plata, num hotel tipo um convento, e esse envelope chegou endereçado a mim, no meu quarto. Abri o envelope estava tudo em espanhol e comecei a ler. Tinha alguma coisa sobre esse acordo, falando da explosão do Letelier[6] e comparando ao acidente do Juscelino[7]. O texto era grande. Li apenas o início e guardei debaixo da cama. Não mexi nele durante a Copa. Depois, quando voltei, constatei: Mostrava uns códigos e tal, mas estava em espanhol, língua a qual não domino o suficiente para ler. No início, achei ser algo ligado ao terrorismo… Receber um negócio desses na concentração? Achei que visavam me desestabilizar e nem quis mexer.

Talvez por essa sua associação à política?

Talvez… Acredito ser isso mesmo, mas mais como uma provocação, na esperança de eu falar alguma coisa, criar um clima.

Você mostrou esse envelope a alguém?

Passei ao Gonzaguinha[8]. Ainda sentindo muito medo…

Ele fez alguma coisa?

Não fez nada, não. Não tinha o que fazer.

Fale um pouco mais sobre a sua participação nos movimentos políticos. 

O frei Beto levou uma delegação ao segundo encontro de intelectuais da América Latina. Quer dizer, o Brasil nem mantinha relações diplomáticas com Cuba, mas nós fomos, uma delegação brasileira, formada por intelectuais: Antônio Callado, Tarso Castro, Pelegrino, Antônio Candido, Chico Caruso, Paulo Caruso, Chico Buarque, Adélia Prado, uma plêiade de feras mesmo, e eu fui junto. Eles enviaram um avião da companhia cubana e buscaram os comunistas do Uruguai, Paraguai, Argentina, Bolívia, Caribe, Colômbia… Encheram o avião de comunistas [risos] e fomos. Lá conhecemos o Comandante Fidel Castro sempre, um grande ícone. Estivemos junto a ele no Palácio da Revolução e no teatro Karl Marx, onde ocorreu o encontro. Ficamos no hotel Riviera, na piscina. [risos] O Chico e o Paulo Caruso acabavam com a revolução cubana, porque era muito diferente. Conhecemos o Gabriel Garcia Marques, no Hotel Nacional… Foram aventuras políticas revolucionárias das quais participamos.

Quando a Copa de 1978 terminou, Carlos Coutinho foi treinar o Flamengo, e você continuou no Atlético, times que, nesse início dos anos 1980 tiveram uma grande rivalidade. Como foi? Conte um pouquinho das suas lembranças.

Sempre adorei o Maracanã. Sonhava em jogar lá desde pequeno, quando assisti a despedida do Pelé. Eu sempre gostei de ficar por lá e tive a felicidade de fazer gols neste grande estádio. Sobretudo, contra o Flamengo. Fiz muitos gols contra essa equipe. E a final de 1980 foi marcante, histórica, porque eles tinham um grande time, espetacular, comandado pelo Coutinho, com o Zico, o Junior. O Leandro, o Raul… Um timaço! O Flamengo nunca ganhara um título nacional. O Rio de Janeiro parou! Fazia um calor violento de 50º, o público de 154 mil pagantes. Naquela época tinha carteirada de todo o lado, ou seja, na realidade deviam ser umas 200 mil pessoas. Feito dizia o saudoso dramaturgo, Nelson Rodrigues: – Tinha gente pendurada no lustre! Era possível ouvir o barulho da torcida de longe, de tão quente o clima, um espetáculo. Quando chegamos, nosso ônibus parou e veio a torcida do Flamengo balançando o ônibus. [risos]. Mas também tínhamos um time experiente, muito bom. Começamos aqui no Mineirão: Ganhamos de 1 X 0 – eu fiz o gol –, uma goleada, o juiz foi o Romoaldo Arppi Filho – muito bom o juiz em termos técnicos, mas especialista em coluna do meio. Tinha até esse apelido: Coluna do Meio, pois empatava qualquer partida. Aqui, num lance, consegui marcar o gol. Foi um dos grandes jogos. Sempre digo: Gostaria de empatar essa partida. O Flamengo fez 1 X 0, na saída… A torcida explodiu. A bola saiu e empatei. Provoquei um silêncio profundo. Eles fizeram 2 X 1 – tocava uma música, burubumbum, um samba de carnaval. O Maracanã até tremia. Me lançaram uma bola, corri e tive uma distensão… Sofri um massacre da multidão. Começaram a gritar: bichado, bichado, bichado… Eu estava bichado mesmo, distendido. Quando uma multidão te trucida assim, você quer entrar debaixo da grama, correr ao túnel… Perdi o chão: – Nossa Senhora, não mereço um massacre desses, não! A multidão é violenta. É como ser lançado na arena de um leão. Fiquei lá fazendo número, porque não havia substituição… Quando a bola chegava a mim, o Junior tomava-a facilmente e até falava: – Sai, não tem condição. Não tinha mesmo. Foi uma distensão, a qual nunca tive, na parte posterior. Fiz número, sofrendo e vendo a aquela alegria. De repente, percebi um lance: – Ah, agora eu vou com tudo, vou arrebentar! Fui e fiz o gol do empate. Fez-se um silêncio ensurdecedor do Maracanã. Para mim, um delírio. Conseguir o gol do empate, que nos dava o título, foi uma sensação maravilhosa!

Calar o Maracanã.

Calar uma multidão daquelas e ainda comemorar o título… Mas logo depois houve a intervenção de má fé do juiz Aramengo, do Aragão. Ele me expulsou covardemente: Passei na frente da bola, ele me deu cartão amarelo e voltou com o vermelho, quer dizer, estava mal intencionado esse juiz. E o Flamengo então fez o terceiro gol. Não vamos tirar o mérito deles, era um grande time, mas tudo conspirava… Se o Nunes não fizesse, o Raul faria, ou o goleiro! Tudo conspirava para o Flamengo ser campeão, eles não iam perder a oportunidade de, pela primeira vez, ganhar a final dentro do Maracanã, tendo um time daqueles. Seria uma tragédia rubro-negra, caso o Flamengo perdesse o título.

Encerrando a carreira muito cedo, por culpa das condições físicas, você se tornou treinador. Conte um pouco sobre esse percurso.

Pois é, sempre quis ser treinador. Hoje eu estou treinando em Vila Nova, onde estabeleci o meu clube. Voltei da Europa alimentando a ideia de fundar um clube, e consegui: o BH Futebol e Cultura. Eu já tinha participado da campanha de 1980, da formação do PT, aquele negócio todo, sempre apoiando o candidato do PT e quando cheguei ao Brasil: – Ah, o Lula é candidato, então vamos à campanha dele! Resolvi entrar na política. Entrei na chapa, fui eleito deputado e tive essa experiência parlamentar. Fiquei na politica muito tempo, mas mesmo sendo deputado, decidi: – Vou fundar o clube. Armei então o BH Futebol e Cultura e começamos a construir o estádio. A política exige prioridade, tal como o futebol. Sai candidato em outras eleições, participei de governo e tal, mas encerrei, pendurei minha chuteira na política. Voltei ao futebol, de onde nunca deveria ter saído.

Essa ideia do clube, Futebol e Cultura, surgiu da concepção de criar algo diferente dos clubes tradicionais? Qual era a proposta?

Não. Quando surgiu esse mercado dos atletas irem a Europa e tal, nossa ideia de cultura era ensinar um idioma, outra língua a eles. O cara amanhã vai à Europa falando inglês ou francês. A ideia foi essa. O atleta treina e depois faz uma aulinha para conhecer as culturas, sem nenhuma outra pretensão.

Qual foi o treinador que o inspirou ao longo de sua carreira? 

Foi o Barbatana, um treinador estrategista, do jogo sistemático, repetitivo, disciplinado. Ele me marcou. Outro muito importante também foi o Telê Santana, pois ele deixa o atleta em forma. Não usa tanta estratégia, mas apura todos os fundamentos: O chute, o cabeceio, o domínio, a visão da partida. Tecnicamente, ele me ajudou a melhorar em tudo. Pequeno como sou, tinha um bom cabeceio. Também chutava facilmente com as duas pernas, tinha bom domínio e tudo isso foi proporcionado pelo Telê. Por que ele armou grandes times? Porque todos os jogadores estavam na sua melhor forma técnica. Ele é insuperável tecnicamente. O Minelli também foi um treinador interessante, o próprio Claudio Coutinho ampliou o panorama buscando outras maneiras de atuar. O Procópio também consegue armar um grupo bem fechado. Cada técnico têm suas qualidades, seu jeito de trabalhar e é possível aproveitar um pouco de cada um.

Como foi conviver junto a craques feito o Sócrates e o Zico?

Ah, maravilhoso. Eu era fã dos caras. Sempre admirei o Zico, a facilidade em bater e enfiar a bola, a forma de coordenar o jogo. Depois, quando atuei com ele, vendo de perto, pude observar sua responsabilidade profissional, a dedicação integral. Isso me impressionou e entendi o desenvolvimento do cara. Fiquei fascinado. O Sócrates, apesar de não ter essa mesma dedicação, foi genial. Tinha visão, uma leveza, e uns toques impressionantes. Até me assustava com as bolas que ele me passava! Não posso deixar de fora o Rivelino – sou fã demais, um maioral. Igual ao Riva, só o Maradona. Dizemos isso porque não corria tanto. Caso corresse, seria bem melhor! Quando o conheci, perguntei: – Como você dá esse elástico? Me ensina esse trem aí? – É assim, ó… Reinaldo, é o seguinte: é possível dar o elástico no ar também. Pega a bola aí. Eu jogava e ele fazia. É uma virtude, uma qualidade genial! E, além de tudo, ele me deu uma enorme alegria, em 1970. Comemorei a Copa do Mundo em cima de um caminhão, em Ponte Nova: – Brasil, pra frente Brasil! Salve a seleção, pra frente Brasil! Esse era o slogan: Ame-o ou deixe-o, salve a seleção!

Bom, Reinaldo, chegamos ao final desse depoimento. O Museu do Futebol e a Fundação Getúlio Vargas te agradecem imensamente. Essa entrevista fará parte de um acervo para as novas gerações conhecerem a sua trajetória, a partir das suas lembranças. Muito obrigado por essa tarde memorável!

Sou eu quem agradece. Fico muito feliz em contribuir com a história do nosso futebol pentacampeão, que só me trouxe reconhecimento, o carinho do povo brasileiro, me abriu todas as portas e oportunidades. Tenho boas lembranças de ter escrito o meu nome nas páginas do futebol e fazer parte do imaginário do povo. Tudo isso me enche de alegria e fico muito honrado. Parabéns pela iniciativa de guardar essa lembrança ao povo brasileiro, a memória do futebol. Nosso futebol merece ser bem guardado, pois é a paixão do povo brasileiro.

 


[1] João Lacerda Filho.

[2] Estádio de General Severiano, pertencente ao clube Botafogo de Futebol e Regatas.

[3] Dilma Rousseff.

[4] Levantar o braço direito, com o punho fechado.

[5] Médico da Seleção Brasileira.

[6] Orlando Letelier: Ex-embaixador do presidente deposto, Salvador Allende, lutava politicamente contra o ditador chileno Pinochet. Em 1976, em Washington, EUA, seu carro explodiu e a causa foi atribuída a um atentado político.

[7] Juscelino Kubitzschek.

[8] Luiz Gonzaga do Nascimento Junior, cantor e compositor da MPB, ativista político contrário à ditadura militar.

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Bernardo Borges Buarque de Hollanda

Professor-pesquisador da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV).

Daniela Alfonsi

Antropóloga, Diretora Técnica do Museu do Futebol e doutoranda pela USP. Trabalha com e pesquisa sobre os museus esportivos.
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