06.11

René Simões

Equipe Ludopédio 13 de junho de 2012

Um dos principais treinadores do futebol brasileiro, René Simões é uma figura sui generis no universo futebolístico, pois tem a capacidade de personificar e pôr em prática termos tão abstratos como interdisciplinaridade e multilocalismo. Ainda nem havíamos iniciado a entrevista e o professor René começou a aula: “O futebol é uma bela fonte inesgotável, de pesquisas. Até porque, as pessoas que trabalharam, antigamente, viam na ciência um empecilho. Um empecilho ao esporte. Ainda bem que isso está mudando agora. Nem todos, mas a maioria está começando a entender que a ciência não veio para atrapalhar a criatividade, e a espontaneidade do jogador ao jogar futebol. Ao contrário, ela veio dar condições para que ele possa botar essa criatividade em ação”. 

Como exemplo dessa “ciência em ação”, René fez uma avaliação do primeiro jogo entre Barcelona e Chelsea pela Champions League 2012: “o que faltou ali foram dois brasileiros na frente. A melhor forma de você matar uma retranca é o drible, a criatividade. Então, se você mata uma linha, você desequilibrou as outras linhas. E o Barcelona faz muito bem isso, mas não trabalha. Só o Messi desequilibra. E o Thiago Alcântara, que é filho do Mazinho, também pode fazer isso. […] O Mazinho descia no treino. O treinador dizia ‘toca, toca, toca!’, e o Mazinho ‘segura, usa a criatividade, usa a criatividade’.”

Em 2012, iniciou um novo desafio: dirigir as categorias de base do São Paulo F. C. em Cotia, município próximo à cidade de São Paulo. Este e outros temas – como sua trajetória, as inúmeras experiências fora do Brasil, o trabalho com o futebol praticado por mulheres etc. – foram lembrados na entrevista abaixo. Boa leitura!

Foto: Max Filipe Nigro Rocha
Renê Simões, coleciona histórias e cargos no futebol. Foto: Max Filipe Nigro Rocha.

 

Primeira parte

 
Pegando um pouco a sua trajetória, de jovem jogador, que tentou a carreira de futebolista; passando pela formação universitária, quando fez graduação em Educação Física; preparador físico; técnico de categorias de base; treinador de seleções, masculina e feminina; consultor da FIFA; até assumiu cargos administrativos, superintendente, e hoje diretor da categoria de base do São Paulo F.C. Você acredita que a sua trajetória é peculiar, se comparada com de outros profissionais? E você acredita que essa é uma trajetória, num certo sentido, desbravadora? Ainda mais numa época em que nem se falava direito em globalização, nem se usava o termo…

Eu acho que eu tenho uma característica que o cientista tem: ele está sempre inquieto, incomodado. Sempre está querendo resolver algum problema ou, às vezes, criar um. Eu nasci em Cavalcante. Se morro tem pé, eu nasci no pé do morro. A minha era a quinta casa antes que começasse o morro, numa rua de paralelepípedo. Então eu nasci ali, pessoas que nascem ali são carimbadas pra darem errado. A sociedade diz assim “Fique aí. Satisfaça-se com o que você tem e não se mexa, não se mova. Porque o que tem aqui não é pra você”. A gente até brincava, que era para cá do túnel e depois do túnel. O túnel que levava a Copacabana, então era antes e depois do túnel de Copacabana. E eu morava muito, mas muito antes do túnel. Eu tinha que passar por Cascadura, Madureira, Méier, Tijuca, Grajaú, centro para chegar ao túnel, para chegar a Copacabana.

Imagine como eu estava longe! Todo mundo dizia assim “fique quietinho aí”. Então eu sempre fiquei incomodado com aquilo. Eu sempre dizia: “não aceito isso”. Não aceito isso. Não aceito que o sistema determine quem eu vou ser ou o que eu vou fazer. Eu fui jogador de futebol – embora por pouco tempo, mesmo jogando muito bem. Hoje eu jogo muito melhor do que eu jogava, porque hoje eu tenho um conhecimento muito maior do preciso fazer, e eu nunca recebi orientação do que eu tinha que fazer. Futebol na década de 60, de 70, era geração espontânea: o jogador nascia e jogava, jogava o jogo. Entendeu? Jogava o jogo. Você não pensava o jogo. E isso me incomodava muito; uma rotina ferrenha. Eu sabia o que eu ia fazer na segunda, na terça, na quarta, na quinta, na sexta, no sábado. Eu saía de casa de saco cheio, e o meu maior problema foi sempre com os treinadores. Em todos os lugares que eu tive problema, tive com os treinadores e os preparadores físicos. Era uma outra geração, era aquela geração que passava para escola de Educação Física através do exercício. Se você chegava lá, os testes eram todos físicos, não tinha um teste cognitivo, não tinha nenhum teste de capacidade. Você fazia só provas físicas. Não que alguns não tenham se tornados grandes profissionais depois, pela prática e busca constante de conhecimentos, mas foram bem poucos. Por coincidência, a minha turma foi a primeira turma do Fundão com pré-vestibular unificado. Eu tive que fazer, e passei. E se tivesse que fazer os testes físicos talvez eu não passasse, porque meu nado era zero. Fui aprender a nadar na Universidade. E essa foi uma característica que sempre me incomodava. Não fui um bom aluno na minha vida normal. Eu passei a ser bom aluno depois que eu saí da Faculdade. Eu caí no campo de trabalho, descobri que eu não sabia absolutamente nada, que não me foi ensinada a vida.

E isso é uma coisa que eu estou trazendo para cá [Dep. de Futebol do São Paulo F.C.]. Como levei sempre para todos os clubes em que trabalhei no futebol; Temos que preparar as pessoas para a vida, não só para uma determinada carreira. Isso me incomodava, entendeu? Minha geração não foi preparada para absolutamente nada. Nós temos que preparar o jogador para viver com a decepção que ele tem quando ele entra no São Paulo. O menino quando entra no centro de treinamento do São Paulo, três meses depois está decepcionado. Ele entra aqui para que? Para jogar bola. E aqui não é para jogar bola, aqui é um local de formação. Então, você vai formar o homem, você vai formar o jogador, você vai formar o craque, formamos o milionário e o que Não vai se tornar nem jogador profissional e muito menos milionário, precisamos ensinar tudo isso para ele. E eu não tive nada disso. Quando eu resolvi ser treinador, quando eu parei de jogar futebol, era para não voltar mais para o futebol. Como já estava na Universidade, fazendo Educação Física, e cinco meses depois eu comecei a sentir coceira, não teve jeito, era o futebol que estava faltando.

Em 1973, ainda fazendo faculdade, já estava trabalhando como treinador num clube amador do Rio de Janeiro. Isso aí, há quase 40 anos. E naquele incômodo. Eu vou ser o técnico que não tive e vou repassar para os meus jogadores o que eu não recebi. Tanto que tem uma frase que eu sempre gosto de usar quando eu palestro: ‘eu gosto de ensinar amando aquilo que eu aprendi apanhando’. Eu fui aprender apanhando, porque caí no mundo sem saber absolutamente nada. O que a faculdade te ensina? E eu acho que essa é a maior responsabilidade de vocês. Mostrarem nas pesquisas de vocês as deficiências que tem na formação dos profissionais. Na capacitacão e no aperfeiçoamento contínuo dos profissionais. Por isso que desde que cheguei aqui, toda quarta-feira, nós temos esse momento em que me reúno com os profissionais e passo alguma coisa de minha experiência ou trazemos alguém para faze-lo. Eles têm que ser aperfeiçoados, pois a responsabilidade de passar conhecimentos para os meninos é vital em todo o processo de formação do homem, como um belo profissional, como um craque, um milionário.

Entra tudo isso. Quando eu cheguei ao Bahia E.C. saiu a manchete de que o treinador é teórico, ‘chegou o treinador-teórico’. Tá bom, chegou um treinador teórico. Primeira semana, segunda semana, terceira semana, o cara na frente de todo mundo, numa conferência de imprensa, ele falou assim: “René, você que é um cara teórico…”. Eu disse: “Um momento. Eu aguentei por três semanas. Mais do que isso eu não posso aguentar, meu filho. E até porque, eu quero te ajudar, você é muito novo, e nós para fazermos qualquer afirmação, nós temos que saber o que é que estamos falando. Defina pra mim o que é um profissional teórico, por favor”.

– Ele não soube definir – “Então, eu vou te ajudar. Um profissional teórico, por exemplo: eu acabei de sair da faculdade, não fiz estágio em lugar nenhum, não tive nenhuma prática, e aí caí no campo de trabalho. Eu sou um profissional teórico, que vai aprender com a prática. Agora, depois de 40 anos você dizer que esse cara, um engenheiro, que está construindo pontes há 40 anos, ele é um engenheiro teórico, isso é de uma insanidade total, meu filho. Você não pode falar isso. Agora, se você disser que eu sou um cara didático, eu aceito. Um treinador didático, eu vou aceitar perfeitamente. Porque eu acho que tem toda uma forma de conduzir. Um treinador pedagógico, aceito também. Agora, teórico não. Com tanta prática que eu tenho, não é possível!”. Então eu me inquieto com todas essas coisas, entendeu? E ali a minha preocupação não era desabar em cima dele, mas também ajudá-lo, na formação dele, pois eles são muito mal formados também. Eles são jogados pra trabalhar com a imprensa do futebol sem nenhuma formação. E vão lá! E alguns não são nem formados, porque não é exigido um diploma deles. Então, isso tudo vem pela inquietação. Eu estou sempre inquieto.

Foto: Max Filipe Nigro Rocha
Após trabalhar com jogadores profissionais, Renê Simões, coordena as categorias de base do São Paulo. Foto: Max Filipe Nigro Rocha.


Como que todos esses aspectos culturais com os quais você teve contato; esses diferentes cenários sociais que você pôde acessar, diferentes países da América Central, os países árabes, europeus também; como esses diferentes aspectos culturais se convergem hoje para pensar a questão da formação? Como você lida com com esses diferentes aspectos culturais? Como você enfrentou?

Quando você sai do seu país, a primeira coisa que você tem que descobrir é a seguinte: você vai para introduzir ou ensinar a filosofia de jogar futebol brasileiro, não pra modificar a cultura deles. Porque você não tem esse direito, e nem esse poder. Agora, a forma de jogar, sim. Vou te dar alguns exemplos. Mundo árabe: quando você chega no mundo árabe, com qual realidade você se depara? Ninguém precisa se preocupar com absolutamente nada, o governo vai te dar tudo. Ele vai te dar saúde, educação, casa, ele vai te dar uma mesada… Enfim, absolutamente tudo. Você não precisa se preocupar. Como é que você pode ensinar alguém que não se preocupa com nada? Como é que você incomoda alguém que não se incomoda com nada? Porque o futebol, não vai ser o emprego dele. Basta ele entrar na escola e sair, ou fazer uma universidade ou não fazer, ele vai ter o emprego dele. E ele vai ter uma mesa como esta em que estou trabalhando agora, só difere pela campainha embaixo da mesa. O que eles fazem é tomar chá. Eles não trabalham, absolutamente, não trabalham. Eles ocupam posições e os estrangeiros trabalham para eles. Então, como é que você muda essa cultura? Você não muda essa cultura. Você tem que, dentro dessa cultura, pegar um grupo de jogadores e começar a estimulá-los.

Estimulá-los como? No Brasil você diz para o menino “Você não quer comprar uma casa? Você não quer comprar um carro? Você não quer ter dinheiro, você não quer ser famoso?”. Lá você não pode dizer isso. Lá você estimula a rivalidade que existe entre os grupos. Eles têm clubes rivais. Então você estimula na rivalidade, você o estimula a chegar a determinadas posições no futebol que vai dar status diferente para ele. Dentro daquele status ele pode ter um pouquinho mais. Mas é difícil você incomodá-lo. Você tem que ir lá dentro dele. É um trabalho extremamente difícil você ir lá dentro e descobrir como é que você vai tocar o gerador de energia que ele tem. Todos nós temos um gerador de energia dentro de nós e esse botão é tocado de diferentes formas.

Eu tinha um Sheik, Sheik Ahmed Al Thani, que jogava no meu time. Eu chegava ao clube em uma Mitsubishi , ele em um Rolls-Royce, em uma Mercedes e outro dia era em um Jaguar. E pior de tudo, às vezes ele sentava em cima do carro e botava os pés com a sandália em cima do capô e ficava vendo o treino, meu Deus do Céu, que absurdo isso, não tem o valor das coisas. Como motivá-lo? Descobri que ele gostava do Rivaldo. E ele não vinha fazendo o que eu queria que ele fizesse, e ele podia fazer. Um dia na preleção, quando tinha que dizer o que queria dele, eu nem falei no nome dele. Eu disse “Pô, tô lembrando de uma coisa aqui, que eu vi o Rivaldo fazendo…”. Quando eu falei ‘Rivaldo’, ele mudou de feição. “O Rivaldo faz isso, isso e isso”. Pronto. Eu quis fazer dele e o toquei seu botão interno de geração de energia pelo Rivaldo. Rapaz, o que esse cara jogou! Nós fomos campeões. Nós acabamos o primeiro turno em último lugar no campeonato. Isso no Al- Rayyan do Qatar, em 1989. E esse cara, ele fez muita diferença, esse sheikinho. Começou a jogar como o Rivaldo, entendeu? Ganhamos o campeonato porque ele se motivou.

Qual é a história na Jamaica? Na Jamaica era tudo muito estranho, o país tinha o críquete como o esporte número um. O futebol era esporte dos pobres e marginais. A Federação tinha regras em que os jogadores tinham que cortar o cabelo, totalmente contrário a cultura do país. Um dia eu fui assistir a seleção sub-23. vi que o Barnes, um meia-atacante de boa qualidade estava de fora do treino. Fui até ele e quiz saber o motivo de não estar treinando. “Porque eu não penteei o cabelo”. “Pô, não deixou um jamaicano jogar porque ele não penteou o cabelo? Não tem cabimento”. A primeira coisa que fiz, foi determinar que o cabelo seria uma opção de cada um, só não poderia atrapalhar a visão. Isso significou respeitar as tradições e a cultura.

Quando eu cheguei lá, eram 11 focas jogando futebol, cada um queria a bola só para si. Eu perguntava: “vocês já viram duas focas jogando juntas entre elas, dividindo uma bola? E eu comecei a querer entender por que, por que isso? Qual era a descendência deles? Eram todos escravos, e os escravos eram individuais, ou seja, não podiam se juntar, socializar, dividir, problemas, ideias, viviam sozinhos. Quando acabou a escravatura, o que o pessoal malandramente vez? Pegou o escravo mais forte, botou ele como capataz. Continuou tudo na mesma, porque o capataz continuava existindo, só náo era branco. Então isso é o que corre na veia deles, entendeu? O problema não era o egoísmo, o problema não era nada disso. Nós tinhamos que começar a trabalhar isso em cima deles, e falar abertamente. E no final do meu trabalhoa na Jamaica, seis anos depois, eu podia dar palestras dentro de grandes indústrias e ensinando como formar equipes trabalhando juntos. Na Jamaica, o jogador não tem o prato de comida dado pelo governo. O pobre não tem o prato de comida na mesa. Ele morre dentro de campo para ter a comida dele. Cada coisa dessa vai te ensinando a aprender a lidar com o local.

Agora, aqui no São Paulo, quando se entra [CT de Cotia], o local te remete ao que? A lazer, é tão bonito, que isso parece um resort. É preciso que você jamais se esqueça que aqui não é a ilha da fantasia, voce está para realizar teu trabalho. Portanto, estamos tentando aumentar a agressividade inteligente, ou seja, desenvolver uma mentalidade vencedora, onde eu quero e me entrego dando o máximo de mim mesmo, mas não se pode perder o fair play e a cultura do São Paulo Futebol Clube.

Totalmente diferente na Jamaica onde tive que frear agressividade deles no primeiro ano, sem perder a competitividade, pois jamais acabava um jogo sem um ou dois cartões vermelhos. No primeiro ano lá eu nunca consegui terminar o jogo com 11 jogadores. “Descarrega a agressividade em cima da bola, não no adversário, controla, calma”. Então você tem que ter esse entendimento, as coisas não são iguais. O ser humano pode ser igual, mas a cultura dele é diferente.

Renê Simões, desenvolve jovens talentos da base do São Paulo. Foto: Max Filipe Nigro Rocha.


Nesse trabalho processual, como no caso a Jamaica, por exemplo, você sentiu a diferença do que viu ao final da Copa do Mundo de 1998 e depois quando você voltou, 10 anos mais tarde, em 2008. Você sentiu a diferença nesse longo período?

Muita diferença, muita mesmo. Primeiro, os clubes não tinham estádios, só tinha o estádio nacional. Hoje, todos os clubes já tem o seu miniestádio, pequeno é verdade. A liga já é profissional, antes era semiprofissional. Não havia jogadores jogando no exterior, a não ser os filhos dos imigrantes que jogavam na Inglaterra, no Canadá ou nos Estados Unidos. Agora não, você tem espalhados jamaicanos que saem da Jamaica e vão jogar em clubes no exterior. E isso dificultou o trabalho da seleção. Porque eu tinha uma seleção permanente. Isso me deu um time, me deu um grupo. Hoje em dia eles não conseguem mais fazer isso. Eles têm que formar um time tal como faz o Brasil, que só joga na data FIFA. Jogando só na data FIFA, amigo, dificilmente você vai conseguir classificá-los. Foi essa mudança. Por um lado foi bom, bom pra eles, pelo aspecto social, e foi ruim em termos de seleção. Era o país do críquete, agora é o país do futebol.


E apesar do desafio de lidar com todas essas culturas você acredita que existe uma certa cultura futebolística quase universal?

No século XX acho que não. Naquela época podíamos dizer que existiam japoneses no campo, quando alguém não jogava bem. Hoje, basta apertar um botão e todos os sistemas, estilos, modelos de jogo estão a mão. Isto faz com que já exista uma linguagem muito parecida entre os países.

Renê Simões também treinou a seleção feminina de futebol. Foto: Max Filipe Nigro Rocha.


Confira a segunda parte da entrevista no dia 27/06/12.

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