10.2

Rinaldo José Martorelli (parte 2)

Equipe Ludopédio 22 de janeiro de 2014

Em tempos de Copa do Mundo no Brasil e Bom Senso FC, o Ludopédio traz uma entrevista com o ex-jogador Rinaldo José Martorelli, atual presidente do Sindicato dos Atletas Profissionais de São Paulo. Goleiro titular do Palmeiras entre 1985 e 1987, atuou também no Náutico, Goiás, Paysandu, Taubaté e São Caetano. Antes de encerrar a carreira, aos 35 anos, já exercia o cargo de presidente do Sindicato. Ao longo dos anos procurou se especializar na área de Direito Esportivo, abordando a Lei do Passe, a questão contratual dos jogadores, a relação com os clubes e a legislação esportiva. 

Boa leitura!

Martorelli
Martorelli exerce o cargo de Presidente do Sindicato dos Atletas Profissionais de São Paulo. Foto: Max Rocha.

 

Segunda parte 

 

Pensando um pouco nessa trajetória aqui dentro. O Toninho Cecílio te trouxe, mas em algum momento ele voltou?

Não. Até chamei de volta. Chamei o Toninho, chamei o Velloso, o Zetti, o Casagrande, Raí quando ele voltou a jogar aqui. Quando eu assumi o Raí foi meu vice-presidente. Chamei o Raí. Chamei todo mundo.

Quem é o atual vice-presidente?

É o Pinella, que jogou no Corinthians. Chamei todo mundo de volta. Tentei um monte de gente. Agora não tento mais. Essa discussão eu fiz com o Paulo André: “eu cansei de chamar e ninguém nunca quis. Agora vocês aparecem na paralela, e aí?”. Eu fiz um Conselho Consultivo. Na primeira reunião vieram sete atletas. A segunda zero, a terceira zero e a quarta zero. Não é que a gente não chama. O movimento Bom Senso deu uma visibilidade para algumas coisas e automaticamente nos colocou na clandestinidade, na inoperância, que é mentira. Nós nunca tivemos uma comunicação no sentido de falar: “olha, isso nós fizemos”. A gente faz e fala para o atleta. A nossa comunicação é muito ruim. Chega o Bom Senso com uma baita comunicação porque todo mundo deu espaço para o Bom Senso e parecia que a gente era ruim, é tudo bandido, tudo inoperante, tudo vagabundo. Ficou essa cara. Mas enfim, a gente está voltando, está reconstruindo umas coisas, inclusive estratégia de comunicação.

Havia discordâncias e diferenças do Bom Senso, sobretudo pela liderança do Paulo André, com a proposta que o Sindicato também tinha. Você disse que alguns ajustes foram feitos e aparentemente tem um alinhamento. Como é que se deu esse processo? Quais foram os pontos chaves para um entendimento?

Aparentemente não. Está alinhado. Eu sentei com ele. Teve um momento em que começaram a se manifestar. Entra com faixa, com isso, com aquilo e aí começou a virar carne de vaca. Todo jogo manifestação. Mas e a atitude definitiva? Eu cobrei isso deles. E a atitude definitiva? E aí começou a ficar complicado. Não dava para ter a atitude definitiva deles e eu falei, sentei com ele, porque tem uma questão – e falei isso publicamente – uma questão política. Os clubes se retraíram e deixaram os jogadores baterem na CBF. Quando a coisa chegar no ponto de confrontar com o clube eu quero ver. E chegou no ponto que não tinha mais para onde andar. Aí sou eu quem tem que brigar. Aí o Paulo entendeu isso. Você não pode dar mais um passo porque senão você se mata. Agora a briga é minha. A gente ainda está ajustando algumas propostas, mas eu de negociar e de tentar eu sei as propostas que podem ser executadas. Vou sentar com o Paulo na primeira semana de janeiro pra voltar a conversar.


Isso foi antes, durante ou depois do Simpósio promovido pelo Sindicato?

Três dias antes.

Nós ficamos curiosos com uma coisa. Como em uma mesa desse Simpósio, que tinha Marco Aurélio Cunha, vereador que trabalha com esporte, tinha o Paulo André, e numa outra ponta o Eurico Miranda. Como se explica a figura do Eurico Miranda nesse evento?

É muito fácil explicar. Porque aquilo não é evento para defender atleta, é um evento para debater o futebol. E quando você quer um evento para debater o futebol você precisa de todas as cabeças. Nós convidamos a Federação Paulista, a CBF e a Federação Carioca. O Eurico acabou vindo representando a Federação Carioca. Mas é isso mesmo, eu acho que o debate, inclusive para as pessoas que não estão acostumadas com isso tentem entender como que é esse debate. Entender o que a gente faz, desde o tempo em que eu discutia com o Eurico. Eu já quase saí na porrada com o Eurico, não agora que ele tá velho, lá trás no fim do passe e ele como Deputado. Ele com aquela truculência como Deputado e eu na bancada discutindo o fim do passe, mais de uma vez. Então, tranquilo. Eu discuto com qualquer um e foi isso que a gente quis mostrar, as várias nuances e todo tipo de gente que tá aí. O que a gente quer? Nós queremos melhorar o futebol. Bota na outra mesa o Eurico. Ele quer que o futebol se ferre. Ele quer saber do Vasco. Isso a gente encontra toda hora porque um fala: “eu quero saber do Vasco, outro fala quero saber do São Paulo, quero saber do Corinthians” e a gente não consegue encaixar nada. A Globo confirmou e não veio. O Marcelo me ligou e disse: “apareceu uma reunião com o presidente da Bandeirantes e não vai dar para ir”. Tentei trazer o Telmo Zanini e muito em cima da hora, no domingo, ele me ligou e não deu para ele vir. Eu quero todo mundo para debater. Quais são as questões. Porque uma coisa é clara para quem quer ver, você não consegue fazer calendário se a Globo não assinar embaixo. Você não consegue. Não tem jeito! Porque ela paga esse negócio. Só que eu fui lá devagarzinho desde 2012, tô trabalhando e consegui aumentar um mês de pré-temporada. Isso não é pouco. A gente não tem comunicação. A gente é zero de comunicação. Mas nesse debate deu para ver que a coisa já estava adiantada. Quem quer ver viu. Outros não. Quem quer ver viu.

Mas nesse Simpósio houve uma questão política muito clara. A presença do Paulo André e outras figuras.

Mas o Paulo não tinha certeza se ia.

Martorelli
Martorelli, presidente do Sindicato de Atletas. Foto: Max Rocha.

Mas em todo caso, a figura do Eurico tem um sentido político porque a Federação Carioca poderia ter mandado outra figura. E o Eurico é uma pessoa que está um pouco afastada da cena política e tem um desgaste muito grande. Ele é uma cabeça pensante necessária para se discutir o futebol?

Ele é a realidade do futebol. Se ele é a cabeça pensante… Mas ele é a realidade e no futebol está cheio dessa realidade. O Paulo teve comigo em Brasília discutindo Pro- Forte, pergunta a sensação dele. A gente tinha 10 minutos pro discurso inicial. O Paulo falou três minutos, entendeu? É diferente. Quando você está aqui e os repórteres deixando falar, “fala o que você pensa”. “Isso aqui é legal, vamos melhorar aqui, vamos jogar menos aqui”. Mas quando você vai e tem um outro povo de lá e vem para cima de você, muda tudo. É isso que eu queria que ele entendesse. Inclusive você vai conversar com o Aldo, o ministro, você vai sentar com ele e ele é o cara mais maravilhoso do mundo. Vê se ele encaminha? É que, felizmente, nisso tudo, e a gente já vinha negociando, aparece a CBF que fez uma proposta interessante dessa Comissão de Clubes e a gente está negociando com ela, sendo que tem o apoio do Marco Polo e do Marin para essas mudanças. Porque os caras também estão de saco cheio com clubes que devem porque é uma sacanagem com o futebol. Está muito solto. Mas quem tinha que por a mão é o governo. O governo não põe a mão ou nem sabe o que é isso. Não sei se a paixão [do Aldo Rebelo] pelo Palmeiras fala mais alto. Mas não sabe. É lógico que tem uma questão política, político-partidário, mas falta gente que possa fazer uma intermediação mais equilibrada e fale isso aqui dá para fazer, isso não dá, isso dá. Tô na Colômbia e o governo baixou uma norma, faz dois anos – os clubes gritando pra caramba e na Colômbia os donos dos clubes são narcotraficantes -, que dizia o seguinte: “time que não pagar por três meses perde a licença pra jogar”. Acabou! Quem que dá licença para jogar aqui? Federação. Foi também com essa argumentação que eu consegui que eles botassem no regulamento do campeonato inibição de inadimplemento que o Paulo diz: “isso expõe o atleta”. E aí como é que faz? Eu sou jurista e você faz a reclamação e eu tenho que dar prazo para ele se manifestar, prazo de defesa. Tudo bem, tem uma forma de fazer? Tem, mas ela pode se contestada. A gente vai apertar os clubes. O que nós já ajustamos? Nós vamos fazer o que eles querem. A gente só fazia o que achava que era o correto porque eles não vinham. Pensava que era o correto. Vocês querem que a gente mande pintar tudo de cor-de-rosa? É melhor? Assina aqui. É, bota cor-de-rosa. A vontade não é minha. Eu tenho um pouco de experiência, um pouco de vivência, conheço um pouco de direito. A vontade é do atleta, não é minha.

Imagino que você tenha tomado conhecimento da carta que foi publicada terça-feira pelo Bom Senso. Você assinaria essa carta?

Não.

Por que não? O que você descarta dessa carta?

Por que o momento não é esse. Como eu falei agora há pouco, quando você está negociando, você precisa adquirir confiança. É o seguinte, eu posso falar para você aqui na negociação, eu não preciso estar falando daqui para fora. E se a gente está querendo iniciar uma nova fase de negociação, não é a hora. Não foi diretor do Bom Senso que colocou aquilo porque eu estava falando com o Paulo naquele momento. O Paulo estava incomunicável. Eu estava tratando dos negócios do Corinthians com ele por WhatsApp. Não foi o Paulo. O negócio do Bom Senso não é só de atleta, não tem só atleta aí.

Tem quem então?

Tem o pessoal da imprensa.

Mas aquela carta é falsa?

Não, o Bom Senso tem o grupo de atletas e o pessoal de apoio. Imprensa e marketing. Isso é claro para todo mundo. Atleta não foi. O Paulo estava fora de circulação, essa carta não foi do Paulo.

Mas isso deslegitimaria a manifestação na sua opinião ?

Não. Não tiraria a legitimidade, mas é questionável. Eu não sei é a vontade dos atletas. Tem muita coisa que o Bom Senso fez, falou ou publicou que não era a vontade dos atletas. O Paulo falou que todo mundo que participa do grupo entra para escrever, que é uma coisa meio doida para mim. Tem que ter um responsável. Quem é o responsável? Você? Tá, então vamos sentar para conversar. Com base nisso, eu acho que é a hora errada, mesmo porque essa questão do STJD, a CBF não deu o prazo. Se você não for inteligente para saber que a gente está tentando… A gente pegou uma herança maldita do Ricardo Teixeira, isso é inegável. Esse pessoal que está aí, bem ou mal, estão negociando, estão falando, estão aceitando ouvir e a gente está conseguindo evoluir. Chegou o Bom Senso e atropelou tudo. Vamos acelerar, mas vamos em frente. Mas agora não pode soltar uma carta batendo nos caras porque não deu prazo para isso.

Você acha então que há uma diferença estratégica entre o que você enxerga do momento do futebol e o que o Bom Senso está fazendo?

Eu só negocio na base da confiança. O que eu falo para você aqui eu posso falar lá fora. O que eu não falo aqui eu não posso falar la fora. Só negocio com confiança, não tem jeito, porque você não resolve tudo de uma sentada. Se teu opositor ou interlocutor não acreditar no que você está falando, você nunca vai fechar uma negociação. Então, não era hora. Mas enfim, fez.

Você visualiza a possibilidade de uma paralisação?

Eu tratei um pouco disso agora, mas preciso voltar a tratar. Qual o exemplo de tentativa mais recente de paralisação fora do Brasil? Saiu agora pouco na Argentina por causa do Colón que não pagou. E foi com base na nota que o sindicato argentino soltou que o Paulo falou: “Vamos fazer?” Eu disse: “Paulo, vamos fazer! Você me garante o que?”. Por que é o seguinte, vamos discutir e brigar pela falta e pagamento de salário. Só que você sai do Brasileiro e vai para os estaduais. Você vai chegar em São Paulo, dos vinte, tem quatro só. No Rio tem quatro. No outro tem dois. Você vai chegar lá no Linense e diz, “escuta, vamos fazer greve?” E ele responde: “Fazer greve para quê? Meu salário não está atrasado!” E outra, o cara do Linense está louco para jogar. Sendo que na Argentina tem o Apertura e o Clausura, todos os caras que participam do primeiro participam do segundo. Parou aqui e parou ali, tranquilo. Entendeu? Vai jogar Palmeiras e Linense na abertura do Campeonato Paulista, o Palmeiras diz que não vai jogar, o Linense vem e ganha os pontos. Por que agora nós estamos falando de interesses diferentes, mas se os vinte pararem dá para mexer bastante. Mas você entende que tem consequências? Tem que estar disposto a assumir essa consequência também?

Mas você consegue visualizar que essa paralisação possa ocorrer no futebol brasileiro?

É o meu sonho! É o meu sonho! Parar o futebol brasileiro para poder mexer em um monte de coisa? A gente conseguir negociar tudo o que a gente precisa? É o meu sonho! Mas eu não jogo mais. Mas vou te falar uma coisa, eu pararia no tempo em que eu jogava…

Mas te pararam né?

Me pararam. Eu tenho um episódio sobre o doping do Mario Sérgio no Palmeiras. Nós perdemos sete pontos. Nós éramos lideres, era ponto corrido em 1984. Nós caímos para quarta posição e terminamos o campeonato em terceiro. Mas foi uma armação para cima do Mário ou pelo menos ele não teve direito de defesa. Com cerca de 70 jogadores dos cinco grandes – incluindo a Portuguesa na época – fizemos uma assembleia no sindicato e dissemos que se não houvesse o direito de defesa ao Mário Sérgio, nós iríamos paralisar o campeonato. O assunto repercutiu na imprensa e ao voltar para os clubes, sofremos uma grande pressão. O Wladimir era o presidente do sindicato. Na outra segunda-feira estava marcada uma nova assembleia. Sabe quem participou da assembleia? Eu, Mário Sérgio e o Deodoro do Juventus, que era diretor do sindicato. Ninguém mais apareceu. Nem o Wladimir apareceu, nem o presidente do sindicato. Então, é o meu sonho parar esse negócio para discutir um monte de coisa. Mas agora eu vejo que esse momento é importante para trocarmos garantias já que em 2014 não temos como mexer, pois serão 45 dias parados durante o ano. Em 2013 nós ficamos 30 dias parados. Por isso que estão negociando para 2015. Agora tem coisa que é fácil fazer. Clube que disputa alguma série do Brasileiro e disputa o estadual não pode disputar Copa do Brasil e Sul-americana. Resolveu o problema. Pode até aumentar para 30 no estadual, dá 68 partidas. Mas fala para o Palmeiras, para o Corinthians e para o Flamengo que eles não vão disputar a Copa do Brasil e a Sul-Americana… Esse é o fato! A questão tornou-se um círculo vicioso que o clube gasta muito e tem que participar de tudo para poder arrecadar mais e então sobrecarrega o atleta. Nós estamos discutindo uma proposta, mas o Paulo André não acha que é uma boa proposta, pois os clubes teriam que contratar mais. Já eu acho que é a melhor delas, que é limitar a participação do atleta mas não do clube, com 30 caras você consegue disputar duas competições. Porque se nós formos tentar equacionar a participação dos clubes nós não vamos fechar nunca essa conta. Além disso, acaba com esse impacto no Brasil que é um desprestígio para alguns jogadores, que é essa separação entre titular e reserva. Na Europa, todo mundo é titular. Você pode jogar oito, eu posso jogar três, mas eu joguei três. Aqui no Brasil os caras querem que você jogue as onze e eu não posso jogar nenhuma. Precisa mudar um pouco essa cultura e ai não precisa contratar mais. Com 30, 35 jogadores que os times têm hoje, mantém as duas competições. Mas para isso precisa melhorar o nível dos caras para poder segurar essa onda, porque os clubes têm onze caras do mesmo nível e o segundo nível está muito abaixo. Eu acho essa a melhor proposta, mas se os atletas acharem que não, a gente defende a proposta deles. “O que vocês querem? Equacionar a participação dos clubes? Vai ser complicado mas vamos lá. É essa a briga? Vocês param por isso? Por que se parar, vocês fazem o que quiser”. Mas também tem uma coisa, se você vai parar, você vai mexer com questões financeiras importantes, prejuízos que terão que assumir, com as possíveis perdas de pontos e com a dona de tudo. Aí precisa ter peito. Eu já briguei muito com a Globo e já mudei muito horário de jogo. A gente precisa passar isso para os meninos. E daqui a pouco a torcida está brigando com os moleques. Tem também a briga de 2004/5 na qual eu consegui a liminar para que as férias dos jogadores fossem respeitadas. Os caras falaram assim: “Meu, por que os jogadores precisam de 30 dias de férias?” Aí eu respondi: “Você fica sem lazer 30 dias?” É fato, Torcedor não quer saber. Se repetisse aquele ano em que o Vasco e São Caetano jogaram dia 27 de dezembro, os torcedores achariam uma delicia. Mas não dá para acontecer assim. Quando você começa a mexer com torcida e com a Rede Globo, as coisas mudam um pouco de figura. Mas eu faço o que eles quiserem, eu faço os caras andarem de calcinha cor-de-rosa na rua.

Você falou de passar uma mensagem para os jogadores a respeito da sua trajetória e na sua narrativa me pareceu uma luta muito solitária e individual frente ao sindicato. Você também fez uma avaliação sobre a sua trajetória profissional, mas eu gostaria de saber como você avalia a sua formação politica, porque assim como você sugeriu que deveria orientar os jogadores mais novos, comentou também sobre a participação do Wladimir, um dos representantes da Democracia Corintiana. Como você avalia a sua formação política? Ela passa por uma instituição partidária ou é mais aleatória e empírica? Além disso, dentro do sindicato, você conta com uma base de apoio que, diante da sua ausência, haveria um grupo de jogadores que teriam condições de lutar pelos direitos dos atletas ou isso se perderia?

Vamos ver se agora o Paulo se anima a vir. A gente tem que tentar novas cabeças. Eu acho que pela trajetória do Paulo, ele vai querer continuar a carreira dele porque é um cara novo. Ele não vai ficar tão a disposição, mas enfim. É difícil aparecer quem possa entender isso porque na verdade tem que ficar aqui já para ir aprendendo. É o grupo que eu tenho. Todo mundo jogou, mas não tem ninguém de renome para isso. Mas o grupo que eu tenho sabe como fazer, o grupo está comigo há algum tempo. A minha formação política, ela não é política, ela é humanista. E eu senti na pele os problemas. Eu estava falando em Brasília há pouco tempo. Teve uma passagem quando eu jogava que o meu salário estava atrasado. Eu cheguei em casa e a minha mulher estava desesperada com meus dois filhos pequenos, porque além do clube não pagar o meu salário, não estava pagando o aluguel do apartamento. Os caras bateram lá e queriam despejar. Isso aí influencia dentro de campo? Lógico que influencia. Como é que você administra isso? Eu estava no Náutico. Naquela época não tinha celular, para falar em casa, para buscar esse negócio de agência bancária (eu tinha conta em uma agência de São Paulo), o dinheiro tinha que chegar lá para eu fazer o pagamento do aluguel. Era um transtorno. Então, esse tipo de coisa que eu acho um absurdo. E se eu me comprometo com você, eu tenho que pagar. Ah, mas eu contratei aqui. Ninguém mandou você oferecer 800 mil para o cara. Você ofereceu, você paga. Você não é obrigado a oferecer 800 mil, você é obrigado a pagar. Então, essa formação humanista que me faz, por exemplo, brigar ferozmente contra qualquer tipo de violação da liberdade do atleta, porque eu fui violado lá atrás, não tinha o que fazer. Eu fiquei um ano e sete meses parado e sem receber salário. Eu fui consumindo o meu patrimônio. Sobrou um apartamento. Eu comi carro, comi telefone na época, que era dinheiro, eu comi um outro apartamento, eu não tinha o que fazer. Então, na verdade, a minha formação é humanista. Política porque a gente aprende a lidar com as coisas. Aprende a entender. Não sei se eu aprendi, mas enfim, tenta aprender a ver, tenta aprender a lidar, tenta lidar aprendendo. Enfim, e é muito ruim mesmo quando você sabe que tem um moleque que teve que sair da sua casa com uma promessa de jogar no XV de Piracicaba e o moleque fica embaixo da arquibancada sem comer. Quem quer isso para o semelhante? Quem quer isso? Só o torcedor imbecil que passa por cima dessas coisas. Os caras não querem nem saber se está recebendo, se tá conseguindo jogar com a falta de salário ou se a falta de comida está fazendo com que ele perca o equilíbrio dele, a estabilidade emocional para poder atuar, os caras não querem nem saber. E o clube é a instituição que eles amam. É o distintivo. O que tem por trás do distintivo ninguém quer saber. Você não amaria o Marcos se ele jogasse no Corinthians. É verdade! Estou tocando no Marcos exatamente porque ele é unanimidade. Pega uns caras que vão dizer: amo o Marcos fora de campo. Vai lá, sou corintiano e adoro do Marcos. Corinthians e Palmeiras, o que o cara quer? Quer que ele se ferre. Eu bato sempre nessa tecla: pouca gente entende o futebol para poder entender, para poder saber como é que se dão as relações dentro dele. Pouca gente entende.

Martorelli durante a entrevista. Foto: Max Rocha.

Pegando o gancho de você ter falado do Wladimir, quando você era jogador surgiu a Democracia Corintiana. Você estava no rival. Como naquele momento, ainda muito jovem percebia essa organização do grande rival. Como era a sua avaliação, se é que havia? Vocês no Palmeiras comentavam sobre isso? Qual era a repercussão nos outros clubes?

Entre os jogadores a conversa é diferente do que é para o público. E para gente chegava que aquilo era mais uma bagunça do que uma democracia. Eu sempre fui muito profissional nesse negócio de treinar e tudo, e a gente sabe de histórias que os caras não treinavam, os caras voltavam da bagunça. É que para eles deu sorte porque acabaram como campeão. Mesmo com aquela zona toda foi campeão. Então, eu não sei, ninguém aqui, eu não sou, nunca vou apoiar a ditadura, mas a democracia também impõe dever e aquela democracia parece que não tinha dever, ainda mais para jogar. Então, e tem um monte de histórias, se você for na internet vai encontrar, as histórias que podem contar, tem um monte de histórias que a gente ouvia: “isso daí não dá para nós”. Não se tratava de democracia. Democracia eu queria em 89 quando eu fiquei parado por causa do passe. Aí eu queria democracia e ninguém me deu. O direito de trabalhar ninguém me deu. Dá o direito de trabalhar na bandalheira. Aí me parece que a coisa não funcionou. É que, voltando, foi campeão. E quando você atinge o resultado vale tudo. Esse é um dos grandes problemas do futebol. Você chega, você atinge o resultado, ninguém quer saber se você se organizou, se você treinou. Ao passo que se você está tudo organizado, está fazendo tudo direitinho, empata três partidas, você não serve. Por algum problema, porque dentro do grupo tem um que emocionalmente se abala, e ele se abalou, e por causa dele não conseguiu ganhar e empatou ninguém quer saber. O resultado do jogo é, na verdade, norte para as atitudes dos clubes. Então, é mais um aspecto complicado. E a Democracia ganhou, então parece que foi um negócio interessante. As informações que a gente tinha na época não batiam muito com isso não.

Pensando ainda na atuação política. Você tem a trajetória de algum jogador ou outra figura que na época em que você estava em campo serviu de referência para você nesse posicionamento político mais crítico?

Eu concluí Administração antes de me profissionalizar. Então, eu já vinha do mundo acadêmico que te dá alguns conceitos diferentes. E era por isso. Eu sou de uma família politizada. Meu avô foi um dos líderes autonomistas de São Caetano quando São Caetano se tornou independente de Santo André. Então, tem um histórico na família de gente preocupada com essas coisas. Talvez tenha essa raiz que me fez despertar para algumas coisas. E o temperamento mesmo. É querer ver as coisas agindo e acontecendo corretamente, e as pessoas agindo corretamente. Eu, por exemplo, ficava muito irritado quando os caras questionavam o meu trabalho, apaixonadamente questionavam meu trabalho. Eu sabia que eu treinava pra caramba, me empenhava e nem sempre conseguia a vitória porque faz parte de um quadro. Para eu entender isso e conseguir absorver, fazer com que isso não mexesse com o meu útero que eu não tenho, é complicado, mas eu tive que trabalhar. E isso eu faço hoje na minha vida. Eu acho, vou falar, mas é ruim falar o que a gente faz, pelo menos eu acho que eu me preparo, eu trabalho, estou empenhado e nem sempre sai o resultado que eu quero. Mas aí eu tenho condição de colocar a cabeça no travesseiro e dormir. Por isso que eu digo: é uma questão de ser humanista. De entender a vida fazendo com que as pessoas se respeitem, como nos direitos dos vizinhos, porque eu sempre abro minhas palestras com isso mesmo. Tratando um pouco dessa coisa do respeito aos direitos. Às vezes eu trago Kant, enfim, pego um ou outro filósofo, um ou outro pensador para colocar rapidinho uma frase deles e discutir. Porque é muito assim: “eu quero o meu direito e ferre-se o direito do vizinho”. Aí não dá. E no futebol é assim mesmo que funciona. Eu quero muito o meu direito, eu sou corintiano, ferre-se o Palmeiras, ou o São Paulo, que se exploda. Vê hoje os caras tirando sarro do Atlético Mineiro. Mas aí tudo bem porque está no âmbito desportivo, mas quando a gente transforma isso para direito é a mesma coisa. Acho que é mais o humanismo mesmo que me move.

O futebol te fascina como quando você tinha 18, 19 anos?

Eu gosto de ver bons jogos. Eu torço muito para aqueles que eu sei que fazem a coisa correta. Eu acho que esses modelos têm que vencer, mas sei que nem sempre vencem. Eu torci muito, por exemplo, para o Belluzo (Luiz Gonzaga Belluzo, ex-presidente do Palmeiras) dar certo no Palmeiras. Foi um fiasco. É um cara íntegro, de cabeça boa, um cara fácil de argumentar, de negociar. O Eurico lá atrás ganhava tudo. Eu torcia pavorosamente contra. Eu falava para os meninos, faça o troço correto. O Pelé não foi Pelé por acaso. Ele era o cara que mais treinava. Além de ser forte, musculatura forte. Ele podia até correr nas olimpíadas que ia ganhar todas. Aquela história: para jogar futebol hoje basta saber jogar? Não, né? Tenho alguns exemplos na minha carreira. Eu sempre conto um. Tinha um ponta direita do América de Rio Preto, chamado Isael. Isael era um inferno. Ia jogar contra o América e lá vinha o Isael. Ai o Palmeiras contratou o Isael. Naquela época nós não jogávamos para menos de 40 mil pessoas. Estreia do Isael, numa quarta-feira à noite chuvosa contra o América-RJ. Meteram a bola pra ele, ele foi dominar e passou por baixo do pé dele. A primeira a torcida aplaudiu. A segunda ele foi driblar o zagueiro e foi desarmado. Na terceira ele errou e a torcida já vaiou. Veja lá quantas partidas ele jogou no Palmeiras. Acho que nunca mais jogou. Então, não é só saber jogar, tem que saber suportar pressão. Eu sempre falo para os meninos. Vocês estão dispostos a renunciar a sua juventude? Meu segundo filho queria jogar, estava indo bem. Ele vinha me dizer: “vou sair”! Eu dizia “não pode”. Eu comecei a tomar cerveja depois que eu parei de jogar bola. Viagem de formatura para Porto Seguro. “Filho, veja lá se consegue o dinheiro de volta”. Aí ele vem e diz: “pai acho que vou parar”. Você consegue suportar pressão, consegue se ambientar? Quando você se depara num ambiente hostil, como é que é? Porque tem cara que joga muito num time e no outro ele some? Acha que é por acaso? Lógico que não.

Qual sua partida inesquecível?

Tem algumas. Contra o Corinthians. O bicho pegava. Teve uma Sport e Náutico também, na Ilha do Retiro. Teve uma partida no Pacaembu que ganhamos de dois a zero, os caras chutaram de todo jeito e não conseguiam. Existem muitas histórias dentro do jogo. No jogo na Ilha os caras chutaram, vinham pra cima… Teve um lance que eu sai para cortar uma bola e acabei lançando nosso ponta direita, o Martinica, que corria pra caramba, ele botou na frente e acabou conseguindo fazer o gol. E naquele jogo os caras não saiam da minha área. Tem umas partidas que eu queria jogar de novo. Infelizmente não tinha tanta televisão na época, tento procurar material meu e nem acho.

Qual sua expectativa em relação à Copa do Mundo no Brasil, como torcedor, dirigente e ex-atleta?

Eu torci durante muito tempo para o Brasil nem se classificar para a Copa do Mundo, pois era a única maneira que eu via para se poder discutir de maneira séria o futebol no Brasil. Hoje é diferente. Eu vou torcer sim para o Brasil ser campeão, mas acho que Brasil encaminhou muito mal a preparação. Era o Teixeira lá trás. Ele negociou muito, barganhou muito. Vai ter jogo em Manaus, Mato Grosso… não podia ter jogo lá. Tem umas coisas que conhecemos e são descabidas. Ele negociou muito mal e o Lula deu carta branca para o Ricardo fazer o que ele quis, foi um horror. Ricardo em 2009 e 2010 foi o homem do ano em várias revistas. Com o futebol ele ganhou poder político muito forte, e isso realmente acontece. Até fica difícil para a gente negociar. Hoje mudou o quadro. Esse país aqui é o mais abençoado do mundo e o mais rico também. Só que os recursos estão muito mal canalizados, muito mal distribuídos. O sonho era ver isso melhor. Como? Precisamos atacar a educação. Precisa fazer esse povo pensar. Não tem jeito. A Copa deveria ser um marco, principalmente na questão da educação. Vamos ver se o dinheiro dos royalties do petróleo realmente irão para educação. Mas fazer uma educação de verdade, que possa fazer elucidar, esclarecer e não essa coisa que nós temos. A Finlândia começou a fazer um trabalho nos anos 1970, que era um dos países mais corruptos do mundo, e mudou esse quadro. Mas não sei se temos condição de mudar e trabalhar a educação nesse sentido. Na Zona Leste, ou mesmo no ABC, os professores estão apanhando. E você não vê ninguém botando a mão de verdade. Direitos humanos é direito de gente que está nas filas dos hospitais. Eu sou um crítico da comissão (de direitos humanos) da OAB. É preciso mostrar que direitos não é coisa para proteger bandido. A Copa deveria ser um marco de reorganização do Brasil, tudo está sucateado, tudo. Tem hora que eu brinco – eu até detesto esses povos nórdicos – mas eu queria ser..eu queria ser belga, porque isso funciona, eu queria ser alemão, porque funciona. Na Alemanha você só vai comprar um carro se você comprovar que você tem onde estacionar esse carro. É meio grotesco esse negócio, mas no Brasil vai acabar tendo que ser assim. Uma hora alguém vai ter que perder. E no futebol também é assim. Ou todo mundo vai ter que perder um pouquinho. Mas quem toma a decisão está influenciado pelo lobby dos grandes. O povo, a maioria, infelizmente, não tem essa visão. Quando nós saímos para as ruas agora, em junho, tinha gente que não sabia o que fazia na rua. Meu sonho é ver esse país politizado. No esporte, na minha área eu discuto e brigo muito por isso. Eu tento conversar com os meninos, mas de onde eles vêm, os pais já trazem eles de volta pra poder trabalhar. E alguns já perdemos para as drogas. O que eu faço para os meus filhos, se eu posso, faço com o vizinho. Ninguém é melhor ou pior que eu.

Martorelli
Equipe Ludopédio durante a entrevista. Foto: Max Rocha.

O que seria melhor: o Brasil ser campeão ou uma catástrofe?

Nesse momento, independe. Temos que amarrar as coisas antes da Copa do Mundo. Eu não acho que o Brasil vai ser campeão. Eu quero estar errado. Acho que seria bom para a economia dos clubes. Mas não sei. Se ainda fosse o Teixeira eu torceria contra. As grande transformações do futebol só se deram porque os países não se classificaram para a Copa. Você vai na América Central e ouve dizer que um atleta de El Salvador é bi-mundialista. Bi-mundialista? O cara é estrela lá. Aqui, se não formos, se não ganharmos, já é um inferno.

Como você avalia o João Havelange?

Nós discutimos com Havelange. O Havelange era um cavalheiro. Nós conseguimos desmistificar uma postura. Uma coisa forte na América Central. Não queira mexer na legislação que a FIFA vem te punir. Nós trouxemos um seminário em Brasília, os convidamos, e afirmei que no que diz respeito a legislação trabalhista a FIFA não se mete. Agora o Ricardo Teixeira é insuportável. Esse é um cara que consegue, na verdade, porque o Brasil ser campeão não é difícil. Depois de 1994 ele se agarrou a essa conquista, pelo amor de Deus. Trabalho de mafioso mesmo. Ou faz o que ele quer ou você tem que morrer. Você pode até ficar muito tempo, mas faça, prove. Teve uma época em que ele (Ricardo) queria fazer uma série D mata-mata. Eu tive que bater feio nele, mandar carta…Fica aí pô, mas se preocupa, faça a coisa melhor, tenta fazer. Nós nunca teremos a forma ideal, vamos tentando. Vamos regionalizar, vamos distribuir melhor o recurso.

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