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Ronaldo Helal (parte 2)

Equipe Ludopédio 6 de agosto de 2019

Há muito tempo queríamos entrevistar o professor Ronaldo Helal. Foram muitos anos de desencontro até que conseguimos realizar a entrevista por ocasião de um evento no Rio de Janeiro. O professor Helal nos recebeu em sua residência e logo avisou: “tenho uma reunião na Universidade e não vou poder ficar muito, mas vamos conversar”. Quando o papo é bom a gente não vê a hora passar, a tarde caiu no Rio e a chuva chegou e nós continuamos a conversa com ele. A sorte dos leitores e leitoras do Ludopédio é que o professor Helal falou por mais de quatro horas e a reunião ficou para outro dia. Mais do que uma conversa, Helal mostra na entrevista como a sua história se entrelaça não só com o futebol, mas como a Comunicação Social e inúmeras pessoas que cruzaram a sua trajetória. Boa leitura!

O professor Ronaldo Helal coordena o Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte (LEME). Foto: Equipe Ludopédio.

Como que você vê, por exemplo, o Maurício Murad nesse debate, pois ele também acaba participando dessa revista e também faz uma crítica pesada à tese do Antonio Jorge? Como é que você vê esse debate?

O Maurício, em 1990, criou o Núcleo de Sociologia do Futebol da UERJ. Ele descobriu que o campo não estava organizado, mas que tinham muitas pessoas trabalhando com futebol em áreas diferentes: literatura, história, filosofia, geografia. Ficou muito legal o trabalho que ele fez dentro do núcleo principalmente o de editar a revista Pesquisa de Campo. O artigo que Antonio Jorge escreve na Estudos Históricos está batendo muito mais no Cesar Gordon, porque ele já tinha lido o nosso artigo. Mas acho que o Maurício teve acesso à tese do Antonio, na qual o Maurício é muito escrachado. A maneira como o Toni descreve o trabalho do Maurício foi muito desrespeitosa, eu acho que faltou respeito sim. Mas acho que não é uma questão pessoal para sair brigando com a pessoa, fazendo o que ele fez. Ele até tinha o direito de exigir sua resposta, mas acho que sua resposta foi muito agressiva. Eu não fui atingido, mas o Cesar foi. Eu acho que tinha que levantar um pouco o debate em vez de ficar essa porrada de um lado para o outro, que não vai levar a lugar nenhum. Em uma das ANPOCS, Antonio me pediu para falar com o José Sergio Lopes, para ver por que ele não estava falando com ele. Fui tentar intermediar, falando para deixar para lá. Hoje são muito amigos. fazem coisas em conjunto. Acho que foi um pouco do jeito do Antonio Jorge, ele foi orientando do Hugo Lovisolo. Hugo também tem essa coisa argentina de desconstruir. Hugo é um cara muito questionador, me ajudou muito nas pesquisas. Mas eu acho que o campo avançou analiticamente depois desse debate, foi importante ter o debate. Essa foi uma das teses que eu não conseguia parar de ler, apesar de não concordar integralmente com ela. Eu já disse para o Toni e para outras pessoas, que foi a melhor tese que li até hoje. Era aquela leitura que te pega e você vai lendo. ela vai fluindo, você não fica voltando para tentar entender o que estava escrito. Eu discordava de um monte de coisas, mas fui lendo de cabo a rabo. Foi a primeira defesa do programa de Educação Física. A banca tinha eu, o Hugo como orientador, Bento de Portugal, Lamartine e acho que Manoel Tubino também estava na banca. Eu tentei mostrar isso para o Antonio, que às vezes a história oficial é sempre contada pelo lado dos vencedores, então às vezes é importante você ter uma visão do lado daqueles que foram dominados.

Você acha que esse debate evoluiu no sentido tanto dentro da discussão racial quanto fora?

Da questão racial não saberia dizer. Eu acho que evoluiu no sentido de você trabalhar melhor com as fontes. Não se deixar ser tragado pela narrativa das fontes, acho que nesse sentido. Você olhar o material jornalístico com um certo distanciamento. Acho que nesse sentido evoluiu. Se o sociólogo, antropólogo e historiadores vão repetir o discurso jornalístico em um linguagem acadêmica não tem sentido a pesquisa. Você vai analisar o que eles estão dizendo, não vai repetir o que está dizendo. Às vezes acaba sendo tragado por aquela narrativa mítica, aquela coisa mitológica. Mas eu sempre digo assim: as crenças são importantes para a gente poder entender as culturas. Isso é comum. Você vai ao Uruguai, vai ao museu do Estádio Centenário, e vê que eles se consideram tetracampeões mundiais, por causa das medalhas de ouro nos Jogos de 1924 e 1928. Só no Uruguai eles são tetracampeões. Então você valoriza aquilo que você tem. A história contada pelo Mário Filho é uma historia maravilhosa, uma história dos negros brasileiros. Tem um artigo muito importante, eu não conheço esse cara, mas eu gostei muito do artigo, de um cara chamado Thiago Maranhão. O artigo dele avança analiticamente. Ele aponta que o artigo do Gilberto Freyre – Football Mulato – dava a entender que os mestiços seriam bons para as artes e esportes, mas não para a ciência e política. Isso é muito perigoso. Ele toma um certo cuidado, de entender o que o não dito poderia estar significando. Então eu achei um artigo que faz avançar o campo. 

O quanto de racismo não existe em apontar o negro como bom em atividades corporal, seja ela futebol, seja ela o samba, a capoeira?

Existe quando você só diz que ele só é bom para isso. Há uma história de muitas derrotas físicas e morais, apanhando muito, e aí você vem valorizar o cara, pelo menos isso é bom, mas não é só nisso que ele é bom. Lembro que por conta desse debate, o Pedro Bial tentou emplacar um programa na TV fechada, ele fechou o antigo Maracanã e ficou no campo de futebol com aquele cineasta moçambicano, o Victor Lopes. Eu fiquei muito constrangido, depois eu vi que o programa era todo baseado na tese de que os negros e mestiços brasileiros inventaram os dribles. Nós temos uma fundação simbólica do futebol que faz sucesso. A palavra drible é estrangeira, isso é próprio de qualquer esporte no qual você tem que ultrapassar o adversário, o basquete tem, no vôlei tem finta. Para ultrapassar o adversário o que eu faço? Ou eu jogo a bola lá na frente e saio correndo, ou finjo que vou para um lado e vou para outro, o drible é um engano. Então é típico do esporte como o futebol. Aconteceu um momento no Brasil, quando nós tivemos seleções muito fantásticas, que encantavam o mundo inteiro. As seleções de 1938, 1950, 1958, 1962 e 1970. Cinco seleções em um espaço curto. Em um dado momento, quando o futebol não era globalizado, criou-se essa história de que nós teríamos inventado esse estilo de jogo. Eu sempre digo que quem inventa um estilo de jogo são os atletas. O técnico do Barcelona vai fazer o Flamengo jogar igual ao Barcelona? Aqueles jogadores extraordinários têm um talento parecido, que é o talento extraordinário. Eu sou suspeito porque meu maior ídolo no futebol foi o Zico. Se me perguntar qual foi o maior jogador que vi jogar, vou dizer Pelé e depois Zico. O Garrincha eu não vi, era muito pequeno. Para mim, Zico é igual ao Maradona, mas eu sou Flamengo, então vou dizer que foi o Zico.

Então, o drible é próprio do esporte. A gente cria esses mitos e somos tragados por eles. Quando eu vou fazer minhas análises, eu tenho que me distanciar. Eu tenho um artigo sobre o Zico. Eu tive dificuldade de escrever. Mas eu pedi para o Hugo ler e depois escrevi sobre Romário, fazendo uma comparação. Eu fiz primeiro o do Zico. O que me chamou a atenção foi que eu tinha lido um livro do Zico, que era “Zico, uma lição de vida”, e depois tem outro que ele atualizou. Mas o que me chama atenção é que na biografia do Zico, ele falava de uma narrativa que enfatizava o que ele estava falando. E ele falava de esforço. No futebol quando você fala “fulano é esforçado”, estou dizendo que o cara não joga nada. Esforçado é o cara ruim de bola. Apresentei isso no congresso e me cobraram dizendo que eu tinha que fazer uma do Romário. Peguei duas biografias nos jornais. Uma eu peguei do jogo Brasil e Uruguai antes da Copa de 1994, um dia antes do jogo e um dia depois; e peguei toda a Copa de 1994. O artigo do Romário tem até um título interessante: “Idolatria e malandragem: a cultura brasileira na biografia do Romário”. Eu comecei a apostar que a gente tende a idealizar seres malandros, ainda que isso venha mudando. Quem passa no vestibular em primeiro lugar, pode reparar o que vem no jornal: o cara branco para caramba, leva uma vida normal, vai ao cinema com a namorada. Mentira, o cara estudou 8 horas por dia. Mas ele sempre fala isso e está desmerecendo isso. Quando você vai rememorar, não é assim. Quando você vai rememorar as narrativas de 1970, por exemplo, destaca-se todo o trabalho que foi feito de preparação física, nutricionista, psicólogo. Na época do jornal, elas vinham junto com o talento. Depois, em 1998 e 2002, quando vai rememorar 1970, você esquece dessa parte. O único remanescente de 1970 que fala muito em treinamento é o Tostão, é o único.  Mais uma vez, temos a contribuição do Toni, pois ele publicou com Marco Santoro Salvador o livro A memória da Copa de 70, onde estas coisas são debatidas. A gente gosta de idealizar esses seres malandros. Claro que eu acho que isso vem mudando porque a biografia do Zico faz sucesso também. Essas coisas foram me chamando a atenção. Quando eu estava na Argentina, por exemplo, percebi que lá também tem essa visão da gente. Quando eu entrevistei jornalistas, vi que se tinha esta visão. Exceto o Roberto Perfumo, que foi jogador da Argentina e do Cruzeiro e que faleceu recentemente, na época tinha um programa de televisão, era um cara muito importante para o jornalismo argentino. Perguntei o que vinha à cabeça dele quando se falava em seleção brasileira de 1970 e ele respondeu: muito treinamento. Depois eu fiquei supondo: ele jogou no Cruzeiro, Tostão estava no Cruzeiro e foi para o Vasco depois. Tostão deve ter falado para ele, não é possível. Perguntei quem foi melhor, Pelé ou Maradona. Ele respondeu assim: “Não, essa comparação é uma heresia, não tem comparação, são épocas distintas. O Pelé eu joguei muitas vezes contra ele, tanto pelo Cruzeiro quanto pela seleção argentina, perdi a maior parte dos duelos, ganhei alguns. Mas eu vi uma coisa que o Pelé fazia algo que eu nunca vi ninguém fazer.” O gozado é que depois que ele falou vi que o Neymar – não vou comparar – fazia assim, mas é treinamento também. Ele falou que quando Pelé pegava a bola pela esquerda, o zagueiro achava que em algum momento ele jogasse para a direita, o que era o normal. Ele disse que muitos jogadores destros chutam com a esquerda, mas que o Pelé fazia tudo com a esquerda, conduzia com a esquerda, driblava com a esquerda, fazia tudo com a esquerda. Todos os zagueiros comentavam: “Porra, ele fez aquilo de novo”. Neymar já fez sim, mas soube que ele treina isso desde os 11 anos de idade, o Santos fazia ele ficar treinando.

Por isso eu acho o Antonio Jorge um pesquisador brilhante, acho que ele tem razão em muitas coisas que ele colocou sobre a mitologia. De repente, se eu também fosse trabalhar com historiografia, talvez eu também fosse tragado pelos mitos construídos pelo Mário Filho e Gilberto Freyre. Mas eu gosto muito mais de trabalhar com as interpretações, fatos puros não existem. Uma briga de casal, o marido tem a verdade e a mulher tem a verdade. Existe a verdade verdadeira? Quem é que tem a verdade? Você a escuta e ela tem razão; você o escuta e ele tem razão, tem alguma verdade ali. O campo estava avançando muito. Lembro que na UERJ, quando comecei com esse negócio de futebol, havia um certo olhar diferente. Acho que ganhamos o respeito da academia há bastante tempo.

Pensando um pouco na história do grupo de vocês, são 21 anos. Não é fácil manter um projeto como esse. Agora tem um pouco menos do que no momento quando vocês começaram, sobre o papo de que estudar futebol é algo menor já se perdeu ao longo do tempo em relação à própria produção. Mas como você visualiza o grupo dentro dessa produção?

Em 1998 tinha um pouco, mas não tanto quanto em 1986, quando voltei para o Brasil. Naquele momento tinha muito pouco trabalho. O ano de 1990 foi um marco, quando o Maurício consegue fundar o Núcleo e juntar as pessoas. Até então eu falava que os estudos eram escassos. Em 1998 já não era assim, já tinha muito trabalho. Hoje você tem um GT de esportes em quase todos os congressos. O nosso primeiro cartão de visitas foi um livro meu, do Antonio Jorge e do Hugo Lovisolo. Depois a gente lançou outro livro. Em 2014 eu publiquei com o Álvaro do Cabo, que foi meu orientando de mestrado, o livro Copas do Mundo e Identidade Nacional. Depois, em 2015, eu fiz com o Fausto Amaro o livro sobre o Gumbrecht. Em 2017, eu fiz esse sobre a Copa de 2014. Estou com um projeto de artigos, que eu fiquei publicando há mais de 20 anos em jornais, eu estou juntando por temas e depois de terminar essa progressão para titular, eu vou me concentrar nisso para fazer esses meus artigos temáticos. Já estão na íntegra as coisas que eu publiquei, é só passar para documentário, sobre aquele momento e como é que eu vejo isso passados esses anos. Eu tenho tido a felicidade de estar sempre com bons alunos no grupo, eles me motivam muito. Eu tive um PIBIC com o Fausto, que foi o melhor PIBIC que eu tive, desde o Cesar Gordon. O Fausto fez um trabalho fantástico. A Leda entrou e organizou um seminário, depois organizou outro seminário, ela é super ativa, ela praticamente que pauta as reuniões do grupo, tem a história da revista. Então não me deixa parar quando eu quero puxar o freio de mão. A quantidade de orientando e candidatos do programa que quer fazer mestrado e doutorado comigo é muito grande, todo ano abre uma vaga só e vem um monte. Na UERJ esse mesmo momento que eu fundei o grupo eu estava coordenando o projeto de implantação da Pós-Graduação em Comunicação. Estava muito difícil, foi uma luta para conseguir implantar. Em 2002 começamos a Pós-Graduaçao e desde o início tem essa marca, por conta do grupo de pesquisas de esportes e cultura, a marca de ter alguém que trabalha com esporte, então eu já orientei nesse período 23 teses de mestrado, eu acho que 19 somente em esporte, já foram quatro doutorados e eu ajudei em 12. Foram quatro defesas, todas voltadas ao esporte. As pessoas vão chegando e vão saindo, o que é legal também, as pessoas vão seguindo vida própria, mas tem aquele espaço ali que eu tenho muito carinho por ele. Gostaria que, após me aposentar, alguém pegasse o bastão e fosse levando, acho fundamental. Eu sempre evitei discussões de bar. Eu chegava ser chato de repreender a pessoa. Eu não vou entrar nisso, no café a gente conversa, mas mandar no grupo do whatsapp, que é pra falar de pesquisa, desmerece o campo, nós não estamos aqui para isso, nós estamos aqui pra fazer pesquisa, ciência é outra coisa. Então eu sou chato com isso, a Leda sabe disso também, ela é vascaína doente, tem tatuagem do Vasco. Mas sempre alguém passa uma brincadeira e eu faço cara séria, não é porque é contra ou a favor do Flamengo, mas porque não é o local. Eu trabalho muito em duas vertentes, como a questão de idolatria. Eu trabalhei com a biografia do Zico, do Romário, do Ronaldo duas vezes, com o funeral do Ayrton Senna, tem do Neymar, sobre o Maradona. Eu juntei todos meus artigos e fiz um artigo sobre isso, como que o Brasil se utilizou do futebol para conseguir uma ideia de nação, uma nação nova, sobre as narrativas de identidade do Brasil, Brasil e Argentina, Brasil e França. Sempre vou me atualizando, eu aprendo muito com as pesquisas dos estudantes, eu vou lendo, vou orientando e vou aprendendo junto.

Pensando um pouco nessa questão da idolatria, você falou do Zico, falou do Neymar, falou do Romário. Pensando agora nos fatos mais recentes do Neymar com a Copa do Mundo, que tem recebido muitas críticas e pensando na categoria do ídolo, do herói, você entende que lugar que o Neymar ocupa nesse debate seria de anti-herói ou de vilão? Como que ele está nesse cenário se for fazer uma análise a partir da última Copa?

O herói vive de conquistas no esporte, colocaram que o menino acaba sendo herói porque se misturou muito essas coisas. O Neymar no Santos tem a trajetória de herói, ele conquistou títulos muito importantes, acho que o santista deve ter ele assim, mas para quem não é santista ele está devendo no Brasil. O herói tem que ter provação no seu caminho, o Ronaldo Fenômeno começou assim. Em 1998 as narrativas estavam divididas com Romário, de fato o herói de 1994 é cortado, tudo para o Ronaldo, mas a seleção perde, aí tem a provação dele, seu calvário particular durante quatro anos, retorna para Copa de 2002, depois vem ser herói do Corinthians. Eu lembro do Ronaldo malhando aqui na musculação do Flamengo, porque eu desconfiava que ele não vinha pro Flamengo, um dia eu perguntei para ele, ficou num “é, vou ver ver”. O Neymar está devendo agora, essas narrativas são sempre assim, é uma via de mão dupla, entre o objeto identificado. Vamos pegar o Adriano no Flamengo em 2009. Ele fazia tudo o que fazia em 2010, ia para o morro, brigava com a mulher, bebia, mas fazia muito gol. Essas coisas negativas eram desconsideradas até quando ele deixou de fazer os gols. Então o desempenho é muito importante.

O Neymar em 2014 não passou por uma grande provação, porque se machucou antes do 7 x 1, ele não estava no 7 x 1, mas em 2018 é o grande calvário dele, a história do cai-cai, virou até verbo e substantivo: “ah, estou meio Neymar hoje, meio caído”, virou uma coisa muito forte em cima dele.

O Messi é ídolo do Barcelona e do mundo inteiro, mas os argentinos vão sempre cobrar dele um título da Copa do Mundo. O Romário é um cara muito grande no Brasil, mas se o Brasil não ganha em 2002 Romário era maior, Pelé e Garrincha também. Pelé está meio que sendo questionado. Eu não sei a pressão psicológica do Neymar, ele pode chegar e chutar o pau da barraca, como o Ronaldinho Gaúcho fez, mas quando o Ronaldinho fez isso ele já tinha sido melhor do mundo duas vezes e já tinha sido campeão da Copa. Neymar não tem isso, é uma questão assim de futeboleiro, nem é sociológico. Minha opinião sobre o Neymar é que é o jogador mais talentoso que eu vi aparecer aqui no Brasil, desde o Ronaldo, ele é superior a Kaká, a Robinho, a todos que vi jogar, se ele vai ser Romário, Ronaldo, eu não sei, depende dele. Talento eu já vi que ele tem demais, recursos técnicos corporais ele tem demais, o que ele vai fazer com isso eu não sei, então, não adianta nada fazer campanha igual a da Gillette. Não adianta fazer uma baita campanha de marketing em cima dele para ele visitar crianças carentes, não adianta nada se não tiver o desempenho, o esporte, a vitória do atleta é a vitória da equipe ou da nação que ele representa, no esporte individual e coletivo. O Romário foi cortado por um ato que ele estava na Granja Comary, ele estava num triângulo e ele não gostou de ter que disputar vaga para ser titular, desafiando muito a hierarquia e disciplina da seleção. Ele foi cortado, depois ele vem em 1994 para ser salvador da pátria, faz dois gols contra o Uruguai e chega na Copa do Mundo. Se ele não tem aquele desempenho não vale nada, ele é marrento. O Ayrton Senna era o cara, fazia a gente ter uma rotina de domingo, e não gosto tanto de Fórmula 1, mas eu via porque o Ayrton Senna era uma coisa diferente, eu não sei o que era aquilo, fazia ultrapassagem, vencia a corrida, então ele morre em cena. É a coisa do guerreiro na Grécia antiga, o cara morre em combate, você está vendo a morte dele ali. A mídia, a Globo, tentou fazer do Barrichello o novo Senna. O Barrichelo é mais simpático com a imprensa do que o Senna, um cara legal, boa praça, mas ele não vencia as corridas. A Globo não consegue transformar ele em um Senna. O Neymar é o maior plano de marketing? Não, o marketing vai em cima dele. Se vocês acham que a mídia tem o poder de transformar o cara em um Neymar, me convença que o Diego é o Zico, me convença que o Leonardo é o Adriano. Não tem como fazer, tem que ter algo no atleta capaz de render essas histórias.  O Neymar ter a atenção voltada toda para ele é mérito exclusivamente dele, a mídia não escolheu ele à toa. Neymar chegou barbabarizando, era uma coisa muito impressionante, muito jovem. Tem a questão do Pelé no Brasil. Os brasileiros não gostam muito do Pelé como pessoa, criticam, dizem que não fez nada pelo movimento negro, só jogou futebol, sempre foi associado ao poder, mas ninguém gosta de comparar ele com ninguém, a diferença é essa, mas ele é intocável como atleta do século, como jogador de futebol. As pessoas têm uma relação de amor e ódio com o Neymar, com o Zico, com o Romário, com os Ronaldos. Eu já não sei o que vai acontecer, porque todas as narrativas têm uma coisa que é comum a todos os ídolos, a imprensa enfatiza uma dificuldade na infância. Tem um artigo que eu comparo a biografia da Tina Turner com a do Baby Ruth do beisebol, o início é muito parecido, os dois têm perda na infância, a Tina é abandonada pela mãe e o Baby Ruth é deixado no orfanato com os pais vivos. O talento faz parte das coisas que você não explica. O livro do Norbert Elias, “Mozart: a sociologia de um gênio”, não explica a genialidade do Mozart, está mostrando como a genialidade do Mozart se chocava com a sociedade alemã da época. Não tem como explicar. Como é que explico o Messi? Não tem como explicar. Todos eles têm essa coisa parecida, certa dificuldade da infância, pobreza, um talento nato, o calvário que eles vão passando até chegar onde tem que chegar. É a partir do desempenho dele dentro de campo que o Neymar vai construir a sua história, junto com a imprensa. A imprensa tem um poder que não é pouco, de editar, de omitir, secundarizar, mas ele tem que dar material, ela não tem essa capacidade de fazer. Eu acho o Neymar muito impressionante, tem recursos técnicos e corporais, mas quem que ele vai ser eu não sei. Quem foi melhor nos últimos 4 anos? O Cristiano Ronaldo, excelente jogador, uma máquina de fazer gols, mas eu acho o Messi melhor, eu acho o Messi mais genial que ele. Mas quando você fala que um é mais genial que o outro as pessoas confundem e acham que o outro é ruim. Não, o outro é muito bom, o outro é genial também. Se eu falo que o Zico é melhor que o Maradona, eu não estou falando que o Maradona é ruim, estou falando que o Zico é melhor que o Maradona, é diferente. Mesmo quando eu comparo Pelé com Maradona. Eu não sei se os argentinos acham de fato que o Maradona foi melhor que o Pelé. Não sei se os mais velhos acham isso, ficou uma coisa meio na gozação. A questão não é quantitativa, é de afeto, se você for pegar quantitativamente o Cafu é melhor que o Garrincha, é melhor que o Zico, Cafu foi a três finais, ganhou duas Copas do Mundo. Maradona tem trezentos e poucos gols, no Brasil tem muitos jogadores com mais que isso, mas a questão é muito mais afetiva. Vocês acham que os argentinos não sabem dos títulos do Pelé e dos gols do Pelé? Eles sabem disso. Eu acho que o Pelé foi melhor, Pelé foi mais completo. Tinha uma tradição aqui no Rio de Janeiro, foi o único jogador que eu vi acontecer isso, qualquer jogo do Santos a gente ia assistir, a gente aplaudia gol do Pelé, tinha uma coisa em torno dele que era muito impressionante. Eu vi lances do Maradona na Argentina, que aqui não passa tanto, eu fiquei muito impressionado. O esporte também vive disso: quem foi melhor? São comparações, fazem parte do universo esportivo. Os afetos vão sempre curvar a tua análise, o teu afeto vai influenciar sua opinião, nem todo mundo é 100% neutro. Alguns jogadores são comparáveis, outros não são. Petkovic foi um craque do Flamengo, mas não dá para comparar com o Zico, isso não está dizendo que ele é ruim não, só estou dizendo que não dá para comparar com o Zico, mas dá para comparar com o Diego. Você pode comparar o Romário com o Ronaldo, mas você não pode comparar esses dois com o Fred ou com Gabriel Jesus. Aqueles são melhores, então alguns conceitos existem, mas vão também pelo afeto. Se você me mostrar os lances do Romário, eu falo que é o Romário; se você me mostrar os lances do Ronaldo, eu falo que é Ronaldo, porque são coisas muito geniais. Em 1995, o Flamengo tinha o Sávio, um garoto loirinho igual ao Zico, jogava com a 11, não ganhava nada no Flamengo. Romário era o campeão de 1994 e veio para o Flamengo em 1995. Romário pediu a 11 e o Sávio vestiu a 10. Quando o Sávio vestiu a 10, a imprensa carioca tratava o Sávio quase que com igualdade com o Romário. O Romário tem uma Copa do Mundo e o que o Sávio tinha que o Romário não tinha? O Sávio carregava o fardo de ser herdeiro de uma tradição, ele estava carregando o bastão do Zico. Então, na história do Flamengo, ele era mais importante que o Romário. A torcida tem essa sabedoria. Quando tem a briga do Sávio com o Romário, o Zico bancou o Sávio. O Flamengo entrava em campo e a torcida tinha aquele coro para cada jogador, como tem até hoje. Zico não estava nem jogando, Zico estava no Japão, mas gritavam “ei ei ei, o Zico é nosso Rei”. Era um recado para o Romário: a gente gosta de você para caramba, você é o cara, mas aqui no Flamengo o nosso herói não é você, é o Zico. Você não vai discutir com um rubro negro sobre a importância do Zico, ele jogou num time que ganhou tudo o que o Flamengo podia ganhar naquele momento. Seleção é outra história, não ganhou Copa do Mundo. É a mesma coisa com o Messi na Argentina. O Messi tem uma coisa louca de nacionalismo. Ele tenta mostrar para os argentinos que ele é argentino. Ele é argentino, mas questionam se ele é argentino porque ele saiu muito cedo. Ele é o cara do Barcelona, herói total do Barcelona. Veja o Rivelino, grande jogador, mas ele tem que sair do Corinthians, aí virou herói do Fluminense. A identidade dele é mais corinthiana, eu o vejo muito mais como corinthiano do que como tricolor, mas ele foi ser bicampeão no Fluminense. O Zico parou de jogar em 1990. Quais são os jogadores extraordinários que passaram pelo Brasil nesses últimos 28 anos? Romário, os dois Ronaldos, Kaká, Rivaldo e agora Neymar? De boa vontade você não chega a dez, duvido. Esses jogadores não são a nossa essência, eles são a nossa exceção. A gente pega esses jogadores como emblema do nosso futebol, mas eles não são nosso emblema, eles são os melhores que a gente tem, eles fazem coisas maravilhosas como fazem os jogadores estrangeiros. Eu sempre questionei esse ponto. 

Ronaldo Helal fala sobre o estilo de jogo. Foto: Equipe Ludopédio.

Você acha complicado, principalmente hoje, no mundo mais globalizado, sustentar uma ideia de estilo de jogo?

Eu acho muito complicado, eu acho que vai aparecer de acordo com os jogadores que você for tendo na sua equipe, mais voltado para o jogo coletivo. Claro que o talento sempre vai aparecer. Em 2014, quando o Brasil perde de 7 x 1, virou meme; aí perde de 3 x 0 para Holanda no sábado, domingo a Alemanha campeã, na segunda-feira todo mundo já estava voltado para o Campeonato Brasileiro. Eu estava preocupado que o Flamengo disputaria para não cair naquele momento. A seleção já não é mais a pátria de chuteiras como era no tempo de Nelson Rodrigues, isso eu já venho dizendo há muito tempo. Publiquei um artigo com o Cesar Gordon sobre a crise do século XXI, comecei a pensar nessa questão da crise, publiquei artigos, comecei a balizar um pouco essas questões, o que era a pátria de chuteiras antes e o que ela passou a ser depois. A cada quatro anos tem aqueles torcedores quadrienais, mas cada vez menos, inclusive nas matérias jornalísticas, essas de brasilidades. Eu lembro que eu parecia um ET em uma entrevista quando eu falei:

Olha, eu entendo que a Alemanha fez um trabalho desde 2006, que o trabalho na base é importante, mas a Copa do Mundo é um torneio muito curto onde o acaso tem um papel um pouquinho maior. O Brasil fez péssimas partidas em 2014, mas a Alemanha passou apertada pela Argélia. Não pode balizar um futebol de uma nação só por um torneio de sete partidas de mata-mata, morreu foi embora.

Em uma entrevista, Zico falou que se ele tivesse jogado em 2014 ele seria barrado porque ele é um jogador franzino. Pô, o Neymar é do tamanho do Zico, Phillipe Coutinho é do tamanho do Zico. Eu me lembro que em 2014 falei assim: “eu não sei se o Brasil quando chegar em 2018 pode ganhar a Copa.” Era a primeira vez o Brasil tinha uma seleção com apenas um jogador fora de série, sempre são dois no mínimo: Romário e Bebeto, Kaká e Robinho, tem sempre mais de um. E não deu outra. Brasil entrou na Copa como favorito, não ganhou, isso é fato de futebol também. Acho que se fosse pontos corridos eu apostaria nela, acho que é melhor que a Bélgica, eu acho que merecia pelo menos um empate com a Bélgica, ganhava na prorrogação, olha aquele jogo novamente. Brasil começou o jogo bem, botou uma bola na trave, depois o Paulinho perdeu um gol, os caras batem um corner e gol. Brasil continua bem, Marcelo chuta uma bola, saiu o 2° gol, Brasil sentiu. O segundo tempo todo para cima, faz um gol, mas é mata-mata e sai. A França tinha um grande time também, ela e a Bélgica, acho que foram os melhores que eu vi jogar, consegui acompanhar bem quase todas as partidas. O trabalho da Alemanha não é o mesmo trabalho após a Copa, vai jogar o trabalho fora? Não, o trabalho vai continuar, tem que continuar. Copa do Mundo é outra coisa, chega naquele momento, naquele jogo e você não está bem. Alemanha vai jogar 10 vezes contra a Coreia do Sul e não vai perder mais, é como o 7 x 1, não acontece mais. Sempre digo que os jornalistas são os reis de obras feitas. Jorge Valdano, da Argentina, tem uma frase: “jornais esportivos são profetas do passado”. Eu não vou medir o futebol de um país só por aqueles sete jogos na Copa do Mundo. No futebol, mais do que outros esportes o acaso entra fortemente. O Campeonato Brasileiro pode ter milhões de críticos, mas você nunca vai ver alguém falar que o time não mereceu ser campeão, porque o acaso e erros de arbitragem se diluem, são 38 rodadas. Corinthians foi campeão em 2017, o árbitro ajudou? Não, o Corinthians se preparou melhor. Aquele time que chegou na frente mereceu chegar na frente. Esse campeonato de pontos corridos que nós temos no Brasil tem o discurso muito mais favorável ao mérito e a justiça. O outro tinha mais emoção, eu não nego isso. A Copa do Brasil é muito mais emocionante. Mas em algum momento o acaso pode deixar você na mão, você tem que trabalhar, porque não tem muita chance de recuperar, é muito rápido.

Todo torcedor tem uma coisa parecida, todo mundo quer se sentir único, mas eu sou Flamengo, vou dizer que Flamengo é único e não é, ele é igual ao Sport de Recife, igual ao Ceará. Quando vê na televisão o cara com a camisa, beija para demonstrar a lealdade. Quando eu vejo a cena na televisão, eu falo “gente, é tudo igual”, mas ninguém gosta de falar. Eu lembro que quando eu estava na Argentina eu li o livro do centenário do Boca Juniors. Na metade do livro eu falava assim “o Flamengo também”, estava tudo parecido. Você olha a maneira de mostrar lealdade, o corinthiano vai dizer que é só o Corinthians, o botafoguense vai dizer que é só o Botafogo e todo torcedor acha que seu time é prejudicado pela arbitragem, todos falam que a Globo é contra seu time. Todo mundo tem esse complexo de que a CBF é contra, que a Globo é contra e que todos os árbitros são contra, vai dizer que tem uma conspiração contra. Isso faz parte do universo de torcedor de futebol.

Tem um trabalho bem interessante, mas eu não cheguei a ler ainda, do Édison Gastaldo, um projeto sobre torcedores, ele já fez o livro, tem vários depoimentos. O livro dele está lá no LEME, ele me deu um exemplar. A Leda não gostou, deu azar de pegar umas partes que tinha muito Flamengo. Eu olhei e tem muito mais Flamengo do que Vasco, do que Corinthians. Ele montou grupos de trabalho em vários Estados do Brasil. No Nordeste tem muitas pessoas que torcem pelo Flamengo. Mas é muito engraçado. É sempre assim, o cara que torce pelo Inter diz que ser do Inter é ser contra o Grêmio. O maior prazer é ver o Grêmio perder. Você pega um time muito desconhecido que não ganhou quase nada, pequeno, e você vai ver que a lealdade dele pelo clube é muito parecida. Todo mundo quer se sentir único e singular, as torcidas querem se sentir diferentes, mais bonitas, então isso faz parte do ato de torcer. Olha a comemoração de um gol, fique observando de todas as torcidas, todas fazem coisas muito parecidas para demonstrar lealdade ao clube.

Você acha que a gente vai ter um futebol antes do VAR e depois do VAR? A questão do recurso do árbitro de video vai interferir muito na dinâmica do jogo?

Mesmo com o VAR você tem polêmicas. Eu acho que foi pênalti no Neymar, aquele que o juiz deu e depois tirou, eu posso até exagerar, mas é pênalti, porque ele vai driblar o cara, vai ficar de cara com o gol e vai cair. Ele não caiu, ele ficou desequilibrado. No replay aquela mãozinha parece que é só um toquinho, aquele toquinho derruba um cara, em velocidade o cara cai, é pênalti. Teve um lance que ele nem pediu o VAR, acho que contra a Bélgica, o cara entrou na área, foi agarrado por dois caras e o cara deu falta dele. O cara vai entrar para fazer o gol, um agarra por baixo, outro por cima e o juiz dá falta do atacante. Acho que ele não pediu VAR, se pedisse ele tinha visto talvez. O lance de impedimento só pode entrar quando todo mundo entrar no lance, aí ele pode entrar. Agora, imagina o seguinte. Aqui no Rio de Janeiro, quando o Flamengo foi tricampeão carioca em cima do Botafogo, o Dodô do Botafogo entrou cara a cara, não estava impedido, o juiz marcou impedido, o Bruno parou e o cara fez o gol. Dodô levou cartao amarelo. Com o VAR, vai voltar de onde a jogada? Você apitou, eu parei. Se está todo mundo no lance, se um cara escutou o apito e parou, pode dar confusão. Mas eu acho legal você ter um chip para ver se a bola entrou ou não entrou, é legal. Eu não sou contra a tecnologia, eu acho legal, acho que vamos criar mais polêmica, acho que vamos readaptar toda essa perseguição que nós temos contra os árbitros. Com o VAR eu acho que vai ser mais ou menos nesse sentido. Os comentários da arbitragem são corroborados se estavam ajudando o teu time, se é contra “esse cara é gremista”, “esse cara é colorado”, porque a sua paixão é tão forte que vai vendo coisas que você não quer ver, você vê de outra maneira. Eu posso estar errado também, mas eu acho que ali foi pênalti no Neymar. Não sei se foi, fica aquela polêmica. Primeiro pênalti da Copa no Cristiano Ronaldo: para mim foi pênalti claro e tem gente falando que não foi pênalti, isso faz parte do futebol. Antigamente era comum os jornalistas de futebol declarararem seus times, hoje, por uma questão talvez de retaliação, todo mundo tem time mas não declara. Todo mundo tem time, antigamente tinha que dizer o time.

Eu acho importante o VAR entrar, mas quando o juiz pedir. Cada técnico poderia ter direito, mesmo que pare o jogo mais vezes, a ter dois pedidos por jogo, um em cada tempo, tal como tem em outros esportes. A tecnologia entrou muito forte no futebol e no primeiro momento a gente não estava acostumado à discussão ética, ela está um pouco atrasada e tinha um pouco de injustiça com os árbitros. Eu lembro que teve um episódio, mostrava o quinto replay e o cara comentava assim: “ah, foi pênalti, o juiz só não marcou porque não quis”. Pô, teve que ver cinco vezes para ter certeza que foi pênalti. Hoje em dia já se toma um certo cuidado, já não falam mais isso, porque é desleal com o árbitro. Muito lance você acha que foi uma coisa e quando você vê o fato por diversos ângulos muda de opinião. Quando meus filhos eram pequenos eu tinha três profissões que não queria que eles fossem: juiz de futebol, goleiro e policial. Um se formou em Artes Cênicas, está tentando ser ator; outro se formou em Cinema, tem uma produtora de audiovisual. Repara a posição de goleiro: goleiro pode fechar o gol o jogo inteiro, o campeonato inteiro, uma falha está desclassificado. Se o centroavante perde 10 gols, mas faz o gol decisivo, ele é o herói. O Flamengo foi campeão em cima do Vasco em 2001. O herói do campeonato foi o Petkovic, fez o terceiro gol. Eu vi aquele jogo. Acho que o Sportv mostrou que o Julio Cesar arrebentou no segundo tempo. O 2 x 1 era do Vasco e o Flamengo precisava do terceiro gol. Flamengo ia todo para frente. O ataque deles tinha Euler e Viola. Se não é o Julio Cesar não tem o 3 x 1. Mas quem é que entrou para a história do Flamengo? Quem está na história até hoje? Pet! O Julio Cesar salvou o Flamango não só naquele jogo, mas também de dois ou três rebaixamentos. Mas vai ficar o 7 x 1.

Pensando nessa relação com o goleiro e nessa sua relação com o Flamengo, recentemente o goleiro Alex Muralha sofreu certa perseguição da torcida e da imprensa. Como você analisa isso? Essas críticas eram fundamentadas?

Eu escrevi um artigo sobre isso no blog. Eu acho que o Muralha não tem esse apelido à toa. Ele chegou ao Flamengo com uma certa reputação, ele tinha barrado o Gatito Fernandes, que é um super goleiro. Ele chegou e pegou um pênalti. Ele começou mais ou menos bem, não era nada demais. O Tite estranhamente convocou ele para a seleção, eu acho que não merecia, mas foi. Mas também não era uma coisa que todo mundo questionava. Eu acho que foi uma série de fatalidades, porque eu nunca tinha visto um time perder uma disputa de pênaltis e sacrificar o goleiro e não o cara que perdeu o pênalti. Diego, que era o 10 do Flamengo, perde o pênalti e todo mundo esquece disso na Copa do Brasil. O Muralha pulou cinco para um canto e o Cruzeiro ganha pelo Muralha? Ele estava no banco, tinha sido barrado, mas o goleiro do Flamengo se machucou. Ele entrou e na primeira bola ele não corta o cruzamento, ele falhou. No jogo seguinte, contra o Botafogo, ele jogou bem. Foi 0 x 0, teve essa disputa de pênaltis, massacraram o cara. Teve um jogo contra o Santos, eu não sei se ele estava com excesso de confiança ou ele é maluco, mas ele vai driblar o Ricardo Oliveira, é tanta falta de sorte que ele tenta driblar e perde a bola. Às vezes o cara erra a bola, eles esquecem que foi gol, o Flamengo estava jogando melhor, o Santos empata o jogo. O Flamengo continua jogando melhor, o Santos dá um chute de fora área e ele engole outro frango. O jornal Extra fez aquela coisa dizendo que não ia mais chamar ele  de Muralha. Claro que era só uma brincadeira, mas botou ele como se fosse um presidiário procurado pela justiça e ele ficou muito abalado. Eu acho que foi um pouco de crueldade do jornalismo esportivo com ele, mas o cara tem que dar material, ele de fato teve falhas, não essa contra o Cruzeiro, essa eu achei que foi um certo exagero da imprensa e da torcida do Flamengo. Foi a primeira vez que vi uma disputa de pênaltis crucificar um goleiro que não pegou um pênalti. Ele está jogando no Japão, tentando se recuperar, é uma profisão muito difícil. O César, que tinha feito uma boa Copinha em 2013, jogou no time de cima, tomou frango pra caramba. As pessoas não tinham memória, eu falava: “gente, vocês esqueceram que o César entregou sim, a gente mandou ele embora, ninguém mais quis”. A condição de qualquer atleta, de qualquer profissão, tem momentos bons e momentos ruins. Pelé não jogou o tempo todo. Claro, os piores momentos do Pelé são muito bons. Eu não acho que o Neymar fez uma Copa muito ruim. Se você pegar um compilado do Neymar vai saber que ele não fez a Copa que a gente esperava que ele pudesse fazer, ele veio de contusão. O Neymar, nos piores momentos dele, é um jogador acima da média, diferente dos outros. Ele não fez uma Copa ruim, mas ele não foi “o cara”. A profissão do goleiro eu acho ela muito complicada, o goleiro quando está mal ele entrega o jogo. Eu não sei o que passa pela cabeça do cara de querer ser goleiro.

O quanto da questão racial tem nessa avaliação do Muralha? Ou quanto contribui a capa do Extra para isso?

A questão racial é complicada. Uma vez me chamou atenção que nós ficamos desde o Barbosa um período longo sem ter um goleiro negro na seleção. Quando eu morei nos Estados Unidos uma das áreas que me interessava era Sociologia da Educação e tinha um trabalho de dois pesquisadores sobre a escolaridade na cidade capitalista americana. Eles começaram a observar, num trabalho com monitoria de vídeo, que a mesma pergunta feita por um branco e feita por um negro provocava uma reação diferente das pessoas. O branco perguntava, “boa pergunta, vou te responder”. O negro perguntava, “pergunta idiota, porque você tá perguntando isso?”. Isso vai minando a autoestima dele ali na base. Lembro de alguns trabalhos costumeiros do esporte norte-americano, mais da área marxista. Os norte-americanos gostam muito de codificar as coisas e tinha um codificado de que a profissão que ganhava mais no futebol americano, o quarterback, era de jogadores brancos. Os corredores são todos negros, ganham bem, mas nao ganham tanto que nem o quaterback. Eu fui aplicar isso no Brasil, mas não deu certo, porque o Pelé durante muito tempo ganhava mais no Brasil, o 10 era o cérebro do time, o melhor deles era negro. Teve outro episódio, do Andrade, que foi jogador e técnico do Flamengo. Quando ele saiu, falou que foi racismo. Eu conheço o Andrade pessoalmente, gosto muito dele. Não foi racismo da direção do Flamengo com ele, pode ter uma coisa do trabalho. Acho que a autoestima do Andrade foi minada lá atrás. Teve uma época que o Vitor, que era branco e era reserva dele, era convocado e o Andrade não era convocado para a seleção. O reserva era e o Andrade não era. Acho que problema do Andrade é aquela questão da capacidade de liderar, não é todo mundo que tem. Têm outros técnicos negros que conseguem se impor um pouco mais. O Cruzeiro tem agora o Tinga como dirigente, que deve ter sofrido muito para chegar aonde chegou. Eu estava pesquisando recentemente os bolsistas do CNPq, a maioria na área de comunicação é de brancos e homens, têm mais mulheres do que negros, mas negros não tem, quase nenhum. Mas o problema não é do CNPq, quando você está ali não está vendo cor, você não vê ninguém quando vai avaliar a vaga do CNPq, você não sabe quem é a pessoa. Isso antes das cotas, agora acho que isso vai mudar com o tempo, os negros tinham muita dificuldade em fazer faculdade e mais ainda em ter mestrado e doutorado. O racismo não está no CNPq, ele está lá atrás, têm poucos negros em condições de igualdade competindo com os brancos. Antes das cotas eu acho que meus alunos eram uma elite da Zona Norte do Rio de Janeiro, da Tijuca. Hoje, com as cotas, pelo menos metade da turma é formada por negros e mestiços. Voltando a falar do goleiro Muralha. São poucas as barreiras que o negro encontra para ser jogador de futebol. Imagina se o Vinicius Junior quisesse ser médico, se forma em medicina e abre um consultório aqui no coração do Leblon. Ninguém sabe que ele é negro, vem a primeira paciente, entra e vê que ele é negro, o que você acha que vai acontecer? Mas você acha que o Vinicius Junior vai ter algum problema? Ele pode ter caso de racismo. O Daniel Alves teve aquela atitude muito inteligente, mas perigosa, podia estar envenenada. Teve o Aranha que respondeu muito bem. Vamos pegar o filme Invictus sobre o Nelson Mandela, vocês devem ter visto, tinha um negro no time, ele não sofria preconceito dos colegas, porque ninguém aprende a ser preconceituoso, quando convivem negros e brancos juntos desde pequenos não tem preconceito ali dentro, pode ter lá fora, isso é lamentável, mas tem. Ele não encontra barreira ali dentro, não tem isso. O Neymar também já falou que não se sente negro, ele e o Ronaldo falaram isso uma vez, que não se veem como negros. Se você perguntar quem é que sofre mais no futebol hoje como atleta, negro ou gay, é o gay. Eu acho muito bizarro não ter gay no futebol, tem gay em todos os lugares, mas não tem gay no futebol. O cara vai ficar trancado com todas as chaves e não vai sair do armário? A barreira vai ser muito grande. O Flamengo foi um dos primeiros a ter torcidas gays, a FlaGay deve existir até hoje, mas não tem mais a faixa, mandaram tirar. É aquela coisa da cultura do macho brasileiro, que o tempo tende a modificar, a sociedade está mudando um pouco. Quem são os dirigentes do futebol? É a mesma coisa que colocar uma mulher para presidente, raríssimo, tem preconceito. Quando alguém falava mal da Patricia Amorim falava assim “aquela mulher”. É como a Dilma quando presidente, “aquela mulher”, isso é um preconceito. “Aquela mulher” tem uma coisa muito forte.

Confira a terceira parte da entrevista no dia 20 de agosto!

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