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Ronaldo Helal (parte 3)

Equipe Ludopédio 20 de agosto de 2019

Há muito tempo queríamos entrevistar o professor Ronaldo Helal. Foram muitos anos de desencontro até que conseguimos realizar a entrevista por ocasião de um evento no Rio de Janeiro. O professor Helal nos recebeu em sua residência e logo avisou: “tenho uma reunião na Universidade e não vou poder ficar muito, mas vamos conversar”. Quando o papo é bom a gente não vê a hora passar, a tarde caiu no Rio e a chuva chegou e nós continuamos a conversa com ele. A sorte dos leitores e leitoras do Ludopédio é que o professor Helal falou por mais de quatro horas e a reunião ficou para outro dia. Mais do que uma conversa, Helal mostra na entrevista como a sua história se entrelaça não só com o futebol, mas como a Comunicação Social e inúmeras pessoas que cruzaram a sua trajetória. Boa leitura!

Ronaldo Helal é considerado um dos pioneiros nos estudos acadêmicos sobre Sociologia do Esporte no Brasil. Foto: Equipe Ludopédio.

Helal pensando na questão da pátria de chuteiras, você entende que é possível sustentar esse argumento com a passagem dos megaeventos aqui pelo Brasil? Você acha que eles contribuíram um pouco para uma perda de fascínio pelos megaeventos?          

Essa pergunta é boa. Houve o declínio da pátria de chuteiras com a globalização, a desterritorialização dos ídolos. As fronteiras continuam existindo, mas vão ficando mais esmaecidas. Não queria falar de política, mas vou ter que falar de política. Houve aquelas manifestações, e de alguma maneira os símbolos da pátria começaram a ser utilizados, pessoas mais identificadas com a direita brasileira. Em 2014 isso mais que se aflorou. Foi a primeira Copa do Mundo sem a cidade enfeitada de verde e amarelo, ainda mais sendo uma Copa no Brasil. Havia um grupo da esquerda que achava que botar símbolo da pátria era de direita e havia outro de direita achando que colocar símbolo da pátria era a favor da Copa e a favor da corrupção. Estava tudo muito confuso e misturado, mas quando o Brasil foi ganhando, quando o vizinho botou a bandeira do Brasil o outro botou também, até que depois do impeachment os símbolos da pátria e a camisa da CBF corrupta foram muito utilizados por aqueles movimentos. Se eu fosse militante de um partido de esquerda e fosse um cara importante eu falava assim: “gente, não vamos deixar eles se apropriarem do símbolo da pátria, nós também somos brasileiros”. É uma idiotice achar que quem veste os símbolos da pátria é patriota de direita. Não, nós todos somos brasileiros, não tem essa de nossa bandeira jamais será vermelha, nunca houve a proposta de mudar a cor da bandeira do Brasil. Se for mudar, muda então para preto e vermelho e coloca assim raça, amor e paixão (risos). Alguma vez alguém tentou mudar a cor da bandeira do Brasil? Nunca. Então, eu acho uma idiotice, todos nós somos brasileiros. Em 2016, uma TV holandesa quis fazer uma entrevista comigo, eu estava indo ao Parque Olímpico ver um jogo de Handebol e queriam que eu levasse uma camisa do Brasil, falei que não. Eles disseram: “eu tenho uma, você veste?”. Eu respondi que não. Se quiser visto uma do Flamengo, não do Brasil. Falei que a situação política era outra. Depois pensei que foi burrice, eu sou brasileiro e não vesti a camisa. A camisa do Brasil da CBF ficou muito associada à política. É como se tivessem sequestrado os símbolos da pátria. Outra história é de que o resultado da seleção vai influenciar as eleições, esta é outra grande mentira. Os dados mostram que não há relação, em 1998 perdemos para a França de 3 x 0, Fernando Henrique Cardoso nem olhou para o Lula. Nunca teve nenhuma variável de relação com a seleção brasileira. Em 2002, Brasil é pentacampeão e a oposição ganhou. 2006 e 2010 o Brasil perde nas quartas-de-final e a situação fica no poder. Se pegar a agenda política da campanha do Aécio contra Dilma, o 7 x 1 não entrou em pauta. Não tem influência nenhuma. Pode ser que eu esteja errado, e que mediante um argumento eu mude de ideia, eu sempre digo que as minhas conclusões são sempre provisórias, se você argumentar que estou errado eu vou falar que tem razão. A Copa de 70 é muito falada no Brasil. Se o Brasil não tivesse vencido a Copa de 70 vocês acham que os rumos do regime militar teriam sido outros? Teriam matado menos, torturado menos? Acho que não iria mudar nada, tinha a questão do milagre econômico, estava naquele “Brasil ame-o ou deixe-o”. Sabe o que a gente falava deste slogan? “Brasil ame-o ou deixe-o, e o último que sair apague as luzes”.

A pátria de chuteiras, vamos ver como se forma isto. Qual ideia de nação brasileira que a gente tinha no século XIX? Pouca. Joaquim Nabuco, Machado de Assis, na literatura. Pouca coisa. No século XX tem um pontapé na brasilidade com a Semana de Arte Moderna, tem Tarsila do Amaral, Mario de Andrade, Macunaíma. Você tinha alguns pensadores acadêmicos que pensavam o Brasil de uma maneira negativa em relação à mistura racial – Oliveira Viana, que era mestiço, Nina Rodrigues, que era jurista. Eu não gosto de ficar falando, porque tem que contextualizar aquele momento, aquela virada de século, as teorias raciais ou racialistas eram vistas como científicas. Nina Rodrigues chegou a elaborar um código penal onde o mesmo crime cometido por um negro teria uma pena menor e uma pena maior para o branco. A lei até beneficiaria o negro, mas de um ponto de vista muito racista. Não era uma visão positiva com relação a uma mistura de raça brasileira. A partir de 1930 houve um grande corte na história do Brasil: Governo Vargas, integracionismo, nacionalismo, cisão entre profissionais e amadores no futebol, Gilberto Freyre publica Casa Grande & Senzala. Em 1938, Freyre escreve o famoso Football Mulato que ele não diz quem foi o jornalista que questionou sobre o sucesso da seleção naquele Mundial. Ele diz que foi perguntado aos jornalistas o porque dos brasileiros serem diferentes. Ele constrói a resposta que é muito na linha do livro Casa Grande & Senzala de que o mestiço brasileiro teria transformado o futebol europeu em curvas mais angulosas, mais brasileiras. Que o verdadeiro futebol é o futebol mulato que retirou o elemento europeu do futebol inglês. E você tem o Leônidas da Silva que dizem que jogava muito. Gilberto Freyre e Mario Filho conscientemente começaram a tentar fazer com que o futebol pudesse integrar um país como o Brasil, de dimensões continentais. Em 1958, Nelson Rodrigues falou que a seleção é a pátria de chuteiras, o Brasil inteiro nos 11 jogadores de futebol. Comparando com a Argentina, lá o futebol também é muito importante, também ajudou a construir a nação, só que quando eu fui morar na Argentina e ajudando meus filhos num trabalho de história eu descobri que no século XIX a Argentina e o Brasil eram muito diferentes. A Argentina não teve escravidão, existiam eleições, ainda que fraudulentas e a ideia de nação argentina meio que já existia no século XIX. A figura do Gaucho, por exemplo, é uma figura emblemática numa espécie de um autor argentino que é o Jose Hernandez que escreveu a história de Martin Fierro, que é o Gaucho, é tão importante que, por exemplo, um dia eu estava falando isso com o Hugo Lovisolo, o Hugo recitou pra mim quase as duas primeiras páginas inteiras. E eles trouxeram o Gaucho com um certo emblema do ser argentino porque se a gente acha que a Argentina é muito europeísta e tal, isso é só em Buenos Aires. Se você sai, mesmo em Buenos Aires, tem muita coisa assim vinculada a palavra criollo que são os nativos da terra, os espanhóis e os italianos. Então, tem uma diferença entre Brasil e a Argentina. A ideia do Brasil e da seleção como pátria de chuteiras era muito importante na época do Nelson Rodrigues. Tem a música de 1970, 90 milhões em ação e não sei o que, hoje são 208 milhões uma coisa impressionante! Eu acho que até em 1982 quando começou a mudar, não sei se em São Paulo teve isso, mas aqui no Rio de Janeiro as ruas começaram a ser enfeitadas em 82, foi um negócio muito grande, era uma competição que o jornal O Globo colocou sobre as ruas mais enfeitadas. Então aquela coisa de enfeitar ruas em 82, 86, ainda é né se você pegar a comoção em época de Copa. O Brasil perde em 82 e mesmo assim a seleção chegou aplaudida, mesmo tendo perdido pra Itália. Você pega a seleção de 90, em 82 só tinha um jogador que jogava fora que era o Falcão, em 86 o Zico já tinha jogado e já tinha voltado, em 90 a maioria já jogava fora, acho que foi em 90 que algo se perdeu. Tem um lado que eu acho positivo, o fato de que as vitórias e derrotas da seleção brasileira não são mais vistas como vitórias e derrotas de um projeto de nação brasileira. DaMatta chega a exagerar, ele escreve que 1950 foi a maior tragédia da história do Brasil. Talvez tenha sido a maior tragédia do futebol brasileiro, mas da história do Brasil é um pouco forte. O livro do Paulo Perdigão, Anatomia de uma derrota, ele nem gostava de futebol e faz um livro para dedicar aquilo. Ele mostra que a final de 1950 foi vivenciada como a derrota de um país fadado ao fracasso, que não ia dar certo. O tricampeonato de 70 era a vitória de um povo que podia dar certo. Você pega o Brasil que ganhou em 94 foi a vitória da seleção. O Brasil perdeu em 98 teve a CPI da Nike e tal, mas foi derrota da seleção. O Brasil ganhou em 2002 foi a seleção e não a nação, depois vem perdendo, então está descolando ainda que tenha nacionalismo como tem no mundo inteiro. A França multirracial é o maior barato, pois de 1998 pra cá, eu lembro, que um parte da França racista estava muito indignada com o Zidane etc, eu acho que agora eles tiveram que engolir essa história toda, se em 1998 já era multirracial em 2018 então, 20 anos depois é muito mais, mas no mundo inteiro tem um pouco desse nacionalismo mas se quebrou a coisa da pátria de chuteira e você vivenciar isso como sendo a vitória de um projeto de nação brasileira. Não é mais isso, o Brasil não vai ficar melhor ou pior se o Brasil vencer a Copa do Mundo. Claro que o sucesso da Copa do Mundo pode gerar impactos. Ela vai continuar fazendo sucesso desde que a gente faça essa brincadeirinha de acreditar que as seleções são as razões, aí você quer ver o conflito Estados Unidos versus Coreia do Norte, por exemplo.

Qual é a sua partida inesquecível? Aquela que você sonha, que se pudesse veria novamente? 

Flamengo e Liverpool. Teve o jogo contra o Cobreloa também, foi um pouco mais dramático, nunca vi o Zico vibrar tanto, fez 2 gols, um de falta, nunca tinha visto ele vibrar tanto num gol. Mas eu acho que Flamengo e Liverpool foi mais, 3 x 0 no primeiro tempo dando uma aula de futebol. Eu lembro que o jogo aqui no Brasil foi meia-noite, deve ter sido meio-dia no Japão, o jogo acabou umas 2h da manhã, eu morava com meus pais, nós saímos em uma caravana de carros e só paramos 6h da manhã, nós saímos para pegar o túnel ali em Copacabana, não deu para andar, ficou quase uma hora parado, parecia jogo da seleção naquele tempo. Era 2h30 da manhã, tinha papel picado, pessoal gritando bêbado, os carros buzinando, parecia que o Rio todo era Flamengo e quem não era Flamengo deve ter ficado furioso com aquela algazarra toda. Foi muito impressionante e acho que foi o jogo que mais me marcou assim, não foi o jogo mais dramático. Um dia, o Marcelo Barreto, num curso que a gente fez lá na UERJ em 2012, trouxe os primeiros 15 minutos do jogo, já estava 2 x 0. Só tinha uma câmera antigamente, então você acha que o jogo está meio em câmera lenta. Hoje em dia tem um dinamismo diferente. É a mesma coisa de ver um filme do Woody Allen da década de 80. Meus filhos até gostam, porque eu gosto do Woody Allen e gosto de ver uns filmes antigos, mas a câmera é muito parada, outro visual. Tem que contextualizar os momentos. Toda sociedade é nostálgica com o passado. Se alguém perguntar: Ronaldo, qual é um dos melhores momentos da sua vida? Ah, foi a década de 70. Mas era uma bosta a década de 70, ditadura militar, mas eu era jovem, tinha cabelos loiros, tinha minha namorada e não tinha muita responsabilidade, eu morava com meus pais, uma maravilha de década, Flamengo campeão do mundo logo em 80, estava muito bom, você lembra de você naquele momento. Eu cansei de ir ao Maracanã com mais de 130 mil pagantes. Era confortável? Até 110 era, depois não era. Não é como hoje que você entra separado. Você entrava junto e separava lá, era mais pacífico, incrivelmente era mais pacífico, a torcida organizada tinha o papel inclusive de quando alguém entrava desavisado no teu lugar você levar o cara para outro lugar e tinha um acordo com as outras torcidas. Eu sei porque eu já participei da Torcida Jovem do Flamengo lá nos anos 70 e era mais ou menos assim que funcionava. Só que a do Flamengo enchia muito mais rápido e o policiamento não deixava a gente invadir o outro lado. Às vezes eu ficava puto, eu via lá do outro lado do Vasco e do Botafogo um buraquinho. Era só todo mundo ir um pouco para o lado que ficaria mais confortável. O Maracanã mudou depois, já tinha mudado no final dos anos 90, depois mudou em 2007. Meu filho conheceu o antigo Maracanã e quando ele vai nesse modernoso, ele acha o máximo, eu acho bastante confortável, o banheiro tem sabão, o banheiro do Maracanã era uma nojeira, ele é legalzinho, tem até uma acústica mais legal que a anterior. Mas sem querer ser saudosista, acho que o que se perdeu foi a grandiosidade. Antigamente você chegava no Maracanã e ficava emocionado. Mas não tem como comparar a vivência. Eu não acho que torcida ganha jogo, ela pode até ter uma certa influência, mas já cansei de ver Flamengo lotar o Maracanã e perder partida, isso é balela, até atrapalha às vezes, o jogo fica tenso, ela fica impaciente, ela começa a vaiar, quando ela vaia o adversário cresce. Isso não tem na Argentina. Quando eu falei na Argentina que a gente vaiava a partida, eles não acreditaram, eles não vaiam, eles podem ficar mudos, mas não vaiam, essa é a diferença na maneira de torcer. A minha memória tem um certo afeto por aquele Maracanã mais grandioso. Esse Maracanã de hoje é mais alçapão do que era antes. O outro não tinha nenhuma influência, o outro é como o Morumbi, o antigo, dentro tinha aquele fosso, não tinha como o cara ficar intimidado. Na Bombonera você quase dá um tapa no pescoço do jogador. O que acontece, isso é uma outra questão que você me perguntou e eu tenho quem trabalha com isso que é o Irlan Simões, que é meu orientando, essas arenas alijaram do futebol uma galera que ajudou a fazer do futebol o que ele é. Ser um torcedor com mais dinheiro, não significa que ele é um melhor torcedor, ele apenas doou mais dinheiro, ah ele é melhor frequentado… melhor por que tinha mais dinheiro? O que aconteceu agora é que o Flamengo conseguiu fazer um contrato com o Maracanã, agora o Maraca vai ser nosso mesmo né, o Maracanã até 2020, eu acho. Agora ele tá conseguindo em contrato com o Maracanã para colocar setores mais populares porque tem uma parte mais elitizada, tem uma parte do Maracanã que nunca fui. Tem um monte de gente que vai de camarote, mas isto não é futebol, isso é outra coisa. Tem uma parte que é o Maracanã Mais que você vai e paga uma fortuna, tem garçom e não sei o que lá, você janta lá você come e tem bebida. Que Maracanã é esse? Agora o outro Maracanã, por sua vez, tinha o pessoal da geral, eu já fui de geral, ia de onda, era outra coisa. Na geral, primeiro, você não via o jogo, você tá aqui embaixo e vê os pés dos jogadores, não consegue ver o outro lado, tinha aquela coisa mal educada, o pessoal fazia xixi e tacava lá embaixo. Não tenho muita saudade, sempre achei uma burrice enorme, uma falta de educação, esse universo masculino não mudou, vê a mulher de shortinho e chama de piranha, sempre teve isso, ou chamar de viado. Os estádios estão menores, alijou uma parcela significativa da população. Fizeram um Maracanã com capacidade de quase 80 mil, mas não vende isso, não bota mais de 60, assim é pior, dá aflição você ver aqueles espaços em branco. O Flamengo e Independiente de 2017 foi um grande erro: do Flamengo e da polícia do Rio de Janeiro. O Flamengo vendeu tudo para sócio-torcedor, mas nem todo mundo é sócio-torcedor, quem não é sócio torcedor ficou de fora. Colocaram 56 mil ingressos para o Flamengo e mais cinco mil e pouco para o Independiente. Deixaram 18 mil lugares vazios. Não sei por que não colocou à venda todos os ingressos em um jogo praticamente de torcida única, você já sabia o que ia acontecer, porque teve um ato de delinquência, os torcedores do Flamengo foram lá bater em alguém do Independiente, os caras tacaram morteiro dentro do hall do hotel. Tem imagem de quem fez isto. Por que esse cara não foi preso? Eu não sei. É da elite. O Flamengo já tinha avisado que ia dar confusão, parece que na internet a polícia sabia e não fez nada, a torcida jovem do Flamengo que não tinha conseguido comprar ingresso falou que iria invadir, aquilo foi viralizando. Vocês chegaram a ver as cenas? Horrível, invadiram, cenas de delinquência, assaltos e roubo. A polícia também sempre separa dando porrada. Meu filho foi nesse jogo, fiquei muito preocupado, porque eu estava vendo as coisas que ele não estava vendo. Ele só falou que nunca viu um clima tão pesado, barulho de bombas e tal. Quando acabou o jogo, liguei no SporTV, voltaram mostrar, estava uma barbárie do lado de fora, uma guerra. Todo mundo é violento? Não. Você acha que desses 8 mil que invadiram são 8 mil delinquentes? Não são. A maioria é pacífica e do bem, são famílias que estão ali, a turma do deixa disso. Eu não sei como é que vai resolver isso, o Flamengo tem que aprender com isso, teve uma punição, levou dois jogos e não sei o que, aí eu não sei como é que vai resolver essa situação. O Flamengo está aqui no Maracanã, mas qual é a vantagem que o torcedor que mora lá em João Pessoa tem de ser sócio do Flamengo? Não sei, tem uns descontos, mas qual é a vantagem do cara se ele não tem um ingresso mais barato? Eu não sei como é que vai ser sobre essa política, isso é uma questão interna.

Para finalizar: o que é o futebol?

Essa é uma boa pergunta. Eu descobri com o passar dos anos, até por um diagnóstico do Hugo Lovisolo, que eu não gosto tanto de futebol, eu gosto do Flamengo. Futebol é objeto de estudo. Teve uma final da Champions League que o Hugo me ligou para vermos o jogo juntos e falei: “Não, eu vou ao cinema”. Ele falou: “Ronaldo, você não gosta de futebol, você só gosta do Flamengo”. Eu acho que é isso. Claro, eu gosto de ver o Messi, os grandes jogadores eu vejo, mas o que me move mesmo é o Flamengo. O futebol na minha vida ficou muito ligado ao Flamengo, eu tive uma adolescência e início da vida adulta ligada à geração mais vitoriosa do clube, participei de muitas coisas nos bastidores. Então, o Flamengo teve uma grande importância neste sentido para mim. Meu pai era diretor de futebol, meu pai foi presidente em 1983, mas ele já era diretor de futebol desde 1967. Meu pai sempre foi um cara do futebol.

A contratação do Doval é muito emblemática, na época o Flamengo se concentrava, todos os clubes se concentravam. O Saldanha criticava pra burro. O jogo era domingo, o time se encontrava na quinta. Era um horror, jogador quase não tinha vida. Eu me lembro que eu ia, a concentração do Flamengo era em São Conrado, meu pai me levava – em 1967 eu tinha 11 anos -, às vezes eu ia e ficava com sono, pegava no sono no sofá e meu pai vinha me pegava no colo me colocava no carro pra dormir entendeu. Os jogadores me conheciam. Da outra geração eu lembro de uma cena assim, Flamengo tinha um jogador que era um jogador gozado não sei como é que esse cara foi meu ídolo porque essa cara era muito violento, era o Almir, Almir Pernambuquinho, jogou no Santos também, jogou com Pelé, acho que jogou uma final de Libertadores. Acho que o Pelé se machucou, jogou uma partida importante. Era um bom jogador. É que teve um jogo contra o Bangu, primeiro turno ele fez um gol na lama, era muito raçudo, tinha essa coisa da fibra, da garra e depois o Bangu ganhou na final do campeonato de 3 x 0 do Flamengo. O Bangu tinha um timaço em 1966, o Castor de Andrade bicheiro, era presidente do clube. Tinha um time muito bom. E eu sei que a gente saiu no meio do segundo tempo, teve uma confusão na arquibancada, a gente ia de arquibancada, aí me lembro que a gente parou o carro no sinal e meu pai perguntou pro guarda, o jogo tá rolando? A o jogo já acabou, como que acabou? O Almir acabou com o jogo. Como assim? Aí depois fui ver a cena para ver o que aconteceu. O Almir é expulso, ele percebe que ele tinha que expulsar mais alguém do Bangu pro Flamengo ter mais uma chance, o goleiro do Bangu era um dos melhores do time ele entra em campo pra dar uma porrada no goleiro do Bangu. Aí  o goleiro do Bangu dá uma gravata nele, aí os caras do Bangu vão defender o goleiro do Bangu e dar porrada e os caras do Flamengo vão defender o Almir, aí seis, sete expulsos e o jogo acabou. Depois o Almir falou, que a ideia era, é que ele apanhasse mesmo, que ele queria levar mais dois do Bangu com ele e os caras do Flamengo foram defender ele. Eu achei aquilo muito legal, mas aí o Almir saiu do Flamengo, foi embora e o Fio Maravilha, que a gente tinha muito carinho por ele, e o Fio sabia que eu tinha o Almir como ídolo. Não lembro o ano, eu era pequeno, eu estava um dia na concentração assim, meio deitado, eles me chamavam de Juca Chaves por causa do nariz, aí o Fio me chama: “Juca vem cá, Juca”. Ah, Fio me deixa em paz. Ele diz: “vem cá Juca, vem cá, vem cá que eu quero te apresentar uma pessoa”. Era o Almir! Parecia que eu estava vendo um Deus grego ou alguma coisa assim, ele passou a mão na minha cabeça assim o garoto tudo bem tal. Aí o Fio falou: “ele te adora, é filho do Helal”. Eu olhei pro Almir assim, depois o Almir morreu em uma briga de bar defendendo algumas travestis no começo da década de 1970, eu já era mais velho mas eu sentia ainda porque era meu ídolo. Depois o Doval foi um cara muito importante na nossa vida também e o Zico foi maior que todos.

Desde 1987 é professor da Faculdade de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde dá aulas na graduação e na pós-graduação. Foto: Equipe Ludopédio.

No futebol o Tim foi técnico do Flamengo por muito tempo, meu pai sempre falou que aprendeu ver futebol com o Tim, Tim o estrategista. Eu lembro que teve um Flamengo e Inter no Beira-Rio em 1971, tinha pouco tempo de Beira-Rio. E aí no intervalo eu desci pra fazer xixi e eu vi o Tim com a mesa de botão dele e tal, eu só lembro de uma passagem que ele falou alguma coisa assim que o Inter tinha um problema de arrumação do escanteio que o Flamengo tinha que forçar o escanteio, no escanteio você vem pro primeiro pau você joga aqui para aparecer lá e fazer o gol. O Flamengo teve dois escanteio e ganhou de 1 x 0, nos dois o Bianchini apareceu e em um ele fez o gol, eu falei filho da puta! Risos. Por isso era Tim o estrategista. Meu pai falou que o problema do Tim é que ele bebia muito e tal, ele não era treinador. Meu pai distinguia treinador de técnico, ele era um bom técnico ele sabia mexer no segundo tempo sabia essas coisas. Então eu convivi com isso, com a política do Flamengo, eu convivi muito com a política do Flamengo e comecei a ter nojo de tudo ligado à política do clube. Me afastei completamente. Aprendi muito sobre política do Brasil por causa do Flamengo. Eu aprendi que, se você tem um bom projeto, mas eu sou contrário a você e aí eu assumi o poder e você não tá mais, eu não vou tocar mais porque fica associado a você. É de uma mesquinharia desse nível. O centro de treinamento que tem o nome do meu pai, meu pai comprou isso em 84 por uma bagatela. O Flamengo não fez nada estava em ata que tinha que ter o nome dele no centro de treinamento, que claro vulgarmente é Ninho do Urubu. Ninguém fala estádio Mário Filho, fala Maracanã. E aí os anos foram passando e o Flamengo alugou o Fla Barra. Pagava uma fortuna. Aí eu via o Zico reclamando por que foram alugar o Fla Barra se tem o centro de treinamento. Aí eu comecei a questionar dentro do clube, na época ainda que eu fazia parte de conselhos, meu pai insistia pra eu participar. Aí o pessoal dizia: sabe o que é? É porque aqui tem muitos grupos políticos e os grupos contrários a seu pai não querem tocar o CT por causa do seu pai. Caramba! É muita mesquinharia! Aí eu comecei pilhar os dirigentes com essa história do CT. Comecei a pilhar e aí o Márcio Braga, em 2004, ele assumiu e disse que ia tocar o CT e foi a primeira que vi o nome CT George Helal, em uma apresentação que ele fez lá na sede e colocou no powerpoint centro de treinamento presidente George Helal. Depois a Patrícia Amorim assumiu e ela falava o tempo todo que ia tocar o Ninho do Urubu. Eu não ia ficar corrigindo, porque é mais bacana Ninho do Urubu. Mas o Zico, quando assumiu como diretor por 3 meses, começou falar do Ninho do Urubu. Eu mandei uma mensagem para ele, mandei um e-mail, pedindo para conversar com a Patrícia Amorim, avisar que o nome oficial é Centro de Treinamento George Helal, eu sei que Ninho do Urubu é muito mais charmoso, mais bacana, mas se o Zico falasse não tem como o jornalista cortar. O Zico começou a falar, mas quando o jornalista vai transcrever o que o Zico falou, ele corta o George Helal e bota Ninho do Urubu. Meu pai acha bacana quando alguém homenageia, tem uma estátua para ele, o nome bem grande Centro de Treinamento George Helal e agora em todas as comunicações oficiais do clube está escrito CT George Helal. Quase ninguém na época tinha esse negócio de CT, acho que o Cruzeiro tinha a Toca da Raposa, meu pai tinha visitado e tinha gostado. Depois meu pai visitou o do Atlético Paranaense, disse que é muito bom também. No Campeonato Brasileiro, os times mais estruturados tendem a se dar melhor. Se o Flamengo mantiver essa estrutura que ele tem hoje a tendência é continuar na ponta por algum tempo. Hoje eu não vou a nenhuma reunião, o que eu escuto dizer é que a gestão do Bandeira de Melo não entendia muito de futebol, mas que eles arrumaram a casa, todas as dívidas, parou de dever ao Romário, ao Ronaldinho Gaúcho, pagou o Pet, pagou todo mundo, passou a ter credibilidade, paga em dia e aí tem patrocinadores.

Então, a minha vida se resume basicamente ao Flamengo, eu comecei a estudar o futebol para tentar entender a minha paixão pelo Flamengo, mas eu desisti. Quando eu morei fora foi uma coisa muito hilária. Em 1983, o São Paulo foi jogar contra o Cosmos nos EUA. O Flamengo tinha sido campeão brasileiro, eu tinha ouvido o jogo, tinha vencido o Santos, era tricampeão brasileiro. Logo depois o São Paulo foi jogar contra o Cosmos, o técnico do São Paulo conhecia meu pai, fui à concentração para ver se eu conseguia descolar ingresso para o jogo. Inclusive ele me chamou para ir no ônibus com a equipe. De repente ele disse: “É hoje né?” Respondi: “O que?”. “É hoje que o Zico vai embora”. “Eu não sei do que você tá falando”. Ele viu que mandou uma pedrada para mim. “O Zico tá indo hoje lá para a Itália, parece que agora é pra valer”. Eu peguei o metrô de volta para minha casa, quando cheguei liguei diretamente para o meu pai, mas estava cheio de jornalista lá em casa, não conseguia falar com meu pai. Kleber Leite, que era radialista e depois virou presidente, falou assim: “Fica tranquilo, teu pai não vai deixar”. Era muito bom ter o Zico em campo, porque às vezes o jogo estava duro, achava que iria perder o jogo, mas eu olhava para o campo, via o Zico e ficava calmo, pois ele iria resolver. Ele vai resolver e resolvia. Hoje não tem mais ninguém assim. Zico ganhava jogos impossíveis para o Flamengo. Em Nova Iorque, acompanhava o jornal que chegava um dia atrasado. Quando o Zico foi vendido eu fazia parte do conselho de deliberativo do Flamengo, estava na suplência. O presidente era meu pai. Eu fiz uma carta ao presidente, não ao meu pai, pedindo para sair daquele conselho que tinha aprovado a venda do maior ídolo. Todas as reuniões são gravadas e meu irmão falou que foi muito hilário. Ele chegou e falou assim: “e a carta do Ronaldo?. “A babaquice…”. “Não, ele é conselheiro tem que falar porra”. “Porra tá bom, é que a carta do conselheiro que por sinal é meu filho eu tenho que levar pro conselho”. Risos. Aí eu me afastei do Flamengo por um tempo, achei que aquilo era a maior babaquice. Quando voltei para o Brasil, meu irmão insistiu para eu ir ao jogo no Maracanã, não lembro qual jogo. O Maracanã antigamente, embaixo das cadeiras cativas, tinha um bar, eu estava nesse bar nas cadeiras, eu estou tomando cerveja com meu irmão, de repente escuto a torcida do Flamengo chegando, pessoal fazendo barulho, comecei a ficar todo arrepiado. Meu irmão falou “o que foi Ronaldo?”, eu falei “essa merda é um vírus cara, o Flamengo não sai de dentro de mim cara, tô emocionado com a torcida chegando”. Não vou cortar essa paixão, mas a parte política do Flamengo eu já pulei fora. O Márcio Braga já quis que eu fosse vice-presidente dele de comunicação. Uma vez apoiei o Márcio Braga em 1999, ele me chamou para jantar na casa dele, ele até me usou, pediu para eu fazer um artigo, mas meu pai estava apoiando outro candidato, ele se utilizou do artigo deixando claro de quem eu era filho. Meu pai tinha muitos votos naquele período. Ele me perguntou assim: “Primeira coisa: o que você quer do Flamengo? Qual vice que você quer?”. Eu falei: “Márcio, eu não tô entendendo, eu não quero nada, eu quero que o Flamengo volte a ser campeão e quero resgatar a história do meu pai no clube, só essas duas coisas, fazendo isso fico satisfeito”. Comecei a me desencantar mais ainda. Eu passei a ter muita aversão à política de clube. O Flamengo é muito importante na minha vida como torcedor. O futebol é um objeto de análise para mim, acho que eu consolidei uma marca importante no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e no grupo de pesquisa. Mas, discutir futebol no bar, discutindo quem é melhor, eu tô fora, não gosto, acho chato, prefiro falar de um filme. Discutir com um cara de outro time, sobre quem foi roubado ou não foi, quem é o campeão de 1987, isso eu não vou fazer.    

[Pergunta feita após a entrevista]

Como você tocou na questão do CT construído pelo seu pai. Qual a sua análise da tragédia que o Flamengo viveu recentemente com o falecimento dos jogadores da base por causa do incêndio?

Eu conheci os dois módulos construídos no CT Ninho do Urubu, que oficialmente leva o nome do meu pai – Centro de Treinamento George Helal -, pois foi em sua gestão que o terreno foi adquirido. Tanto a parte reservada para as divisões de base quanto a dos profissionais são de excelência, muito bem estruturadas. Ou seja, em relação ao que foi construído para as divisões de base e para os profissionais, creio que o CT do Flamengo está entre os melhores da América do Sul. A tragédia que ocorreu no início deste ano (2019) foi lamentável e poderia ter sido evitada. O clube tem responsabilidade na tragédia. Jovens de 13, 14 anos largam suas famílias, suas cidades, para viver no alojamento do clube. As famílias confiaram os meninos ao clube. Então, o clube tem responsabilidade. Pelo que entendi, os jovens que lá estavam não estavam ainda no módulo construído para a base, porque este estava sendo usado pelo departamento profissional. Os profissionais estavam indo para o módulo novo e aí os meninos da base passariam a utilizar o módulo que lhes seria correspondente e adequado. Eles estavam alojados dentro de contêineres com apenas uma saída e algumas janelas com grades. Um crime na minha opinião. Uma fatalidade que poderia ter sido evitada. Ficamos todos muito tristes. Meu pai ficou dias chorando. O clube terá que pagar as indenizações, mas vidas foram ceifadas, famílias destruídas pela perda e dor. 

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