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Victor Ikpeba

À conversa com Ikpeba – Lagos, Nigéria, 16 de Abril de 2010 

Encontramo-nos com Victor Ikpeba à porta de uma escola secundária no bairro de Ikeja, em Lagos. O ex-internacional nigeriano, considerado melhor jogador africano em 1997, chegou vestido com o fato de treino verde da sua selecção e ao volante de um Smart. Seguimo-lo até sua casa, a”Ikpeba Ville”, uma vivenda com um enorme quintal onde o jogador, respeitando as tradições da sua etnia, sepultou a sua mãe. Juntamente com Taribo West, Emmanuel Amunike, Jay-Jay Okocha, Daniel Amokachi, Babangida e Sunday Oliseh, fez parte da geração de ouro do futebol nigeriano que conquistou a CAN’94 e os Jogos Olímpicos de 1996 e que participou nos Campeonatos do Mundo de 1994 e 1998. Vestiu as cores do Standart de Liége, do Mónaco, do Borussia de Dortmund e do Bétis de Sevilha , entre outros, antes de se retirar em 2005. Aos 36 anos, diz ter ainda vontade de participar no Mundial realizado em solo africano. Numa conversa de 27 minutos, Ikpeba falou da sua carreira, do futebol português, na esperança que tem na nova geração do futebol nigeriano e no Mundial. Confessou ainda que recebeu uma proposta do FC Porto e que gostaria de ter jogado no Benfica. No final da conversa, Victor aconselhou-nos a não partir sozinhos para a região da Delta do Níger e a solicitar escolta policial. Afinal, ele conhece bem as virtudes e os defeitos da Nigéria.

Ikpeba
Victor Ikpeba defendeu a seleção nigeriana por 10 anos. Foto: João Henriques.

Ajegunle é o bairro de Lagos donde saíram muitos futebolistas nigerianos e onde estivemos a trabalhar nos últimos dias. Também lá jogou?

Eu não tenho tanta relação com o bairro como outros jogadores. Estive pouco tempo em Lagos antes de ser chamado para a selecção sub-17 e partir para outros voos. Mas cheguei a participar numa das edições da Taça de África das Nações que organizam no bairro e acho que Ajegunle tem muitas estruturas para os jovens jogadores se mostrarem e avançarem para bons clubes.

Porque é que muitos dos melhores jogadores nigerianos, como Okocha e West, vieram do bairro mais pobre da cidade?

Se analisarmos a lista de jogadores que nasceram em bairros miseráveis, veremos que é muito longa, Veja-se o caso de Maradona, que veio de um bairro paupérrimo em Buenos Aires, ou mesmo o Messi…Acho que os miúdos ricos não têm tempo para jogar futebol porque têm dinheiro e os pais têm medo que eles se aleijem. Mas nestes bairros em que os miúdos não tem nada é importante que tenham algo como o futebol ou o basquetebol que lhes dê prazer. Além de afasta-los dos roubos e da má vida.

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Victor Ikpeba disputou duas Copas do Mundo pela Nigéria em 1994 e 1998. Foto: João Henriques.

Quando viaja de Monte Carlo para Lagos, duas cidades estão distintas, sente o choque cultural?

Não há sítio como a nossa casa. Vocês, estão a viajar por África mas tenho a certeza que já sentem falta de Lisboa e do Porto. Passa-se o mesmo connosco. Podemos ter uma experiência de vida de 10 ou 15 anos na Europa mas sentimo-nos sempre entusiasmados na hora de voltar a casa. Eu tive o privilégio de viver no Mónaco mas quando chego aqui quero ver a minha família e os meus amigos. Para lá do futebol, necessitamos da nossa família e dos nossos amigos. E todos esses estão em casa, em Lagos.

Jogou com Costinha em Monte Carlo. Ele diz que a cidade esta cheia de celebridades. Conheceu algumas estrelas mundiais?

Conheci o Da Costa no Mónaco e ele era um excelente jogador. Não tinha a técnica do Deco mas lutava e isso fazia dele um bom jogador. De facto, em Monte Carlo temos o privilégio de conhecer diversas personalidades da Fórmula 1, do ténis, do cinema, da música e da moda. Eu vivia no prédio do Roger Moore e éramos muito amigos, ele adorava brincar com os meus filhos. Podias estar sentado num bar e ver o Michael Jackson, ir a uma discoteca e conhecer outra grande celebridade. Mas o mais engraçado era ver como eles se comportavam ali de uma forma simples, eram eles mesmos. Sem dúvida que há grandes vantagens em jogar no Mónaco.

Em Lagos existem muitos bons jogadores e muita concorrência por um lugar numa boa equipa. Qual a diferença entre os que lá chegam e os que não conseguem?

É difícil. É preciso ter sorte e ir atrás dessa sorte, além de ter talento. Para um jogador africano chegar a um clube europeu tem de ser melhor do que os europeus que lá estão. Não há lugar para os jogadores que não são suficientemente bons. No final dos anos 80, quando cheguei à Bélgica, não havia tanto dinheiro envolvido no futebol europeu, não havia tantos contratos de publicidade, os salários não eram tão altos. Assim, as equipas da Bélgica, de França, de Portugal, país que tem grande tradição na aposta em jogadores africanos, tinham mais paciência para esperar que os jovens africanos se desenvolvessem. Agora é tudo muito mais rápido e os jovens que chegam à Europa têm de ser extremamente bons para se imporem na primeira equipa. O futebol africano é completamente diferente do futebol europeu, que é muito mais táctico. Nós ainda estamos a aprender, ainda não atingimos o mesmo nível. Mas o futebol africano cresceu muito nos últimos 15 ou 30 anos, graças à oportunidade que os clubes europeus deram aos africanos para aprenderem.

Mas a nível técnico, os europeus também podem aprender com os africanos…

Sim, é verdade, temos a técnica mas falta-nos disciplina.  Acho que a única selecção que a mostrou, historicamente, foi a dos Camarões. É muito difícil bater os Camarões tacticamente porque os seus futebolistas jogaram desde sempre em França. Nós, em 1994 e 1998, tínhamos a chama mas faltava-nos a táctica global, defensiva e ofensiva. É isso que a Costa do Marfim, que tem a melhor equipa entre as africanas, tem de fazer para bater o Brasil ou Portugal. Tem de aprender a sofrer para ganhar esses jogos e, se o fizer, pode ir mais além.

A Costa do Marfim vai ganhar a Portugal?

É um mistério. Por isso é que o futebol é um jogo bonito. Portugal sofreu para qualificar-se, o Brasil e a Costa do Marfim conseguiram-no facilmente, mas isso não conta muito na fase final do Mundial. Comparo a equipa da Costa do Marfim a da Nigéria tem 1994 e 1998, quando tínhamos quase toda a equipa a jogar nos melhores clubes do Mundo. Nós não conseguimos chegar aos quartos-de-final. Mas se olharmos para o pedigree de Drogba, Touré, Kalou…são jogadores que num dia bom podem dificultar a vida ao Brasil e a Portugal. Eles têm de fazer o trabalho de casa porque tenho a certeza que o Brasil e Portugal vão entrar disciplinados em campo. Eles são os favoritos mas nos Mundiais isso não joga. Recorde-se os Camarões que, em 1982, na sua primeira participação, dificultaram a vida à Itália. Os grupos são todos duros e as equipas que trabalharem mais vão qualificar-se.

Dois dos melhores jogadores da sua geração, Emmanuel Amunike e Rasheed Iekini, jogaram em Portugal. Falava com eles sobre o futebol português?

Sim. A liga portuguesa pode não ser grande quando comparada com a espanhola, tem 16 equipas enquanto outras ligas têm 20 ou 22, mas é um campeonato com muitos talentos. Todos sabemos a história que o Porto, o Sporting e o Benfica têm na Europa, com grandes êxitos no passado e mesmo recentemente. Acho que todos os jogadores gostavam de lá jogar. Mas se tivesse tido oportunidade, gostaria de ter jogado no Benfica porque acho que é a melhor equipa portuguesa. O Porto está a chegar lá perto mas acho que este ano o Benfica vai ser campeão. Nunca tive essa oportunidade mas gostaria de ter lá jogado.

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Victor Ikpeba conquistou o ouro nos Jogos Olímpicos de Atlanta em 1996. Foto: João Henriques.

Jogou em grandes equipas como o Standart de Liége, o Mónaco, o Borussia de Dortmund e o Bétis. Nunca recebeu uma oferta de equipas ainda maiores como o Barcelona ou o Milão?

Tive oportunidade de ir para o Valência e, quando estava em Liége, também houve uma possibilidade de ir para o Porto. Nunca recebi uma proposta de uma dessas grandes equipas. O que aconteceu é que me apaixonei pelo Mónaco durante os seis anos em que lá joguei e partir para Dortmund foi uma decisão muito difícil. Porém, eu acho que a vida de um futebolista deve ser rica em experiências e disso não me posso queixar; joguei na Bélgica, na Alemanha, em Espanha, na Líbia. Algumas passagens foram excelentes outras foram mais difíceis.

Qual foi a excelente e qual foi a mais difícil?

Adorei Sevilha. É uma cidade em que se podem encontrar africanos a viver de uma forma aproximada ao seu estilo de vida original. Gostei do clima, da simplicidade das pessoas, da maneira como levam a vida. Além disso está perto de Málaga e de Marbella, sítios lindos onde podia ir repousar com a família. A mais difícil foi a da Líbia. Todos sabemos quais os problemas que existem na Líbia – não há liberdade. Quem chega a Tripoli sente que não há liberdade nas relações humanas. Tinha muito dinheiro mas o dinheiro não compra a liberdade, por isso, o dia em que regressei a França foi dos dias mais especiais da minha vida, precisamente porque me senti livre.

Em 1998, a Nigéria parecia lançada para fazer história no Campeonato do Mundo mas perdeu nos oitavos-de-final contra a Dinamarca por 4-2. O que se passou nesse jogo?

Mesmo 12 anos depois, não consigo esquecer esse jogo. Em 1994, tínhamos uma grande equipa e essa equipa que também venceu os Jogos Olímpicos e transitou para o Mundial 98. A preparação para esse Mundial foi muita má e perdemos as partidas amigáveis quase todas. Mas o nosso treinador, Bora Milutovic, fez um bom trabalho psicológico e, apesar de ninguém apostar em nós, conseguimos bater a Espanha por 3-2 numa reviravolta dramática. O resultado devolveu-nos confiança. No segundo jogo contra a Bulgária, só nos primeiros 45 minutos podíamos ter marcado quatro ou cinco golos sem resposta. Ganhámos e não precisámos de usar a equipa principal no último jogo contra o Paraguai para nos qualificarmos. Assim, muitos jogadores-chave descansaram sete dias, o que é demasiado numa competição como o Mundial. A paragem foi muito longa e isso foi um erro enorme. Não estávamos preparados fisicamente. Depois, ainda houve o problema do excesso de confiança – ganhámos à Espanha e à Bulgária e pensámos que também bateríamos a Dinamarca. Éramos considerados favoritos nesse jogo. Não quero crucificar ninguém mas sofremos golos estúpidos e acabámos por perder o jogo. Acho que se o tivéssemos encarado com o mesmo espírito que encarámos o jogo contra a Espanha, o resultado seria diferente.

Acredita nas possibilidades da Nigéria na África do Sul? Esta geração não é tão talentosa como a vossa…

É um grande peso para eles serem comparados a nós. Deve ser como comparar uma geração em Portugal com a geração de Eusébio e companhia no Mundial de 1966. Não devemos pôr essa pressão sobre esta geração. É verdade que não têm a qualidade individual da geração dos anos 90 ou a da selecção portuguesa, que tem Simão e Cristiano Ronaldo. Mas, tacticamente e fisicamente, são muito bons. E se o nosso novo treinador, Lagerback, lhes impor disciplina, podem dificultar a vida à Argentina. Os nossos jogos contra a Argentina são sempre muito renhidos e acho que este também pode ser. Se os Camarões, há 20 anos, ganharam à Argentina no jogo de abertura, nós também podemos fazê-lo. Eu estou optimista em relação a esta geração. Eles têm sofrido muito nos últimos oito anos porque não conseguiram ter sucesso. Mas que melhor momento para mostrar o contrário do que um Mundial em África? Se pudesse, cortava a minha barba e as minhas tranças e juntava-me à selecção outra vez. Um Mundial em África é a experiência de uma vida. E acho que eles podem derrotar a Grécia e a Coreia do Sul.

Nasceu nos anos 70, numa altura em que era impensável ter um Campeonato do Mundo em África. O que sentiu quando ouviu que África ia receber o Mundial?

São ventos de mudança. Representa uma brisa de ar fresco para África, não só no que toca ao futebol. Sempre fomos uma montra de pobreza e de guerra e, pela primeira vez, vamos ser uma montra de África no seu melhor. Eu vivi 20 anos na Europa e nunca me senti confortável com essa imagem. Vocês, portugueses, que têm fortes laços com África, sabem que há sítios bonitos e coisas boas sobre o que falar em relação a África. Por isso, eu acho que a África do Sul é o melhor sítio para organizar o torneio porque liga África ao resto do Mundo. Estamos muito orgulhosos. E temos a certeza que, quem vier, vai guardar as melhores recordações.

Acredita na eficiência da organização?

As pessoas esquecem-se que nos Jogos Olímpicos de Munique mataram atletas israelitas e que nos de Atlanta, nos EUA, desmantelaram um esquema de atentado bombista. Nos grandes acontecimentos essas coisas podem sempre acontecer. Podem acontecer em Angola, em Portugal, em todo o lado. Mas a África do Sul gastou muito dinheiro em segurança, contratou os melhores especialistas do mundo inteiro para fazer deste evento um evento seguro. Por isso, não condenem África se acontecer uma coisa que pode acontecer em qualquer lado. Façam uma análise justa. Dêem oportunidade a este jovem continente em desenvolvimento para crescer. Se não nos deixarem crescer, nunca cresceremos. Ter um Mundial em África é excelente e estou certo que podemos também receber os Jogos Olímpicos. Não é uma regalia dos europeus, dos americanos ou dos asiáticos…África deve ter a chance de também organizar os eventos desportivos de excelência.

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Victor Ikpeba enaltece organização para Copa do Mundo na África do Sul. Foto: João Henriques.

Quais são para si os favoritos à vitória?

Se tivesse de apostar o meu dinheiro, diria o Brasil, a Argentina, a Alemanha e a Espanha…e Portugal também! E porque não África? Se uma equipa africana passar até aos quartos-de-final acredito que possa chegar à final. Temos qualidade para lá chegar. E se essa equipa for a Nigéria, milhões de pessoas receberão os seus jogadores como heróis.

 *Tiago Carrasco, João Henriques e João Fontes estão rumo à África do Sul no projeto Road to World Cup. Foi mantida a grafia original do português de Portugal.

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Tiago Carrasco

Tiago Carrasco é jornalista e tem 34 anos. Publicou dois livros, centenas de reportagens nos mais prestigiados órgãos de comunicação social portugueses e é autor de dois documentários. Em 2013, ganhou o Prémio Gazeta Multimédia, da Casa de Imprensa, com o projecto "Estrada da Revolução". Com uma carreira iniciada em 2014, tem assinatura em trabalhos exibidos pela TVI e RTP, e impressos pelo Expresso, Sábado, Sol, Record, Notícias Magazine, Maxim e Diário Económico, para além dos alemães Die Welt e FAZ. Em 2010, desceu o continente africano de jipe num projecto que daria origem ao livro "Até lá Abaixo" (na terceira edição) e a um documentário com o mesmo nome. Em 2012, fez a ligação terrestre entre Istambul e Tunes durante a Primavera Árabe, que originou o livro "Estrada da Revolução" e o documentário homónimo. Foi responsável pelos conteúdos do documentário "Brigada Vermelha", sobre a luta de um grupo de adolescentes indianas pelos seus direitos enquanto mulheres. Cobriu importantes eventos internacionais como a guerra civil na Síria, o pós-revolução no Egipto, Líbia e Tunísia, o Mundial de futebol em 2010, a anexação da Crimeia por parte da Rússia, o referendo pela independência da Escócia, o movimento de independência da Catalunha, a crise de refugiados na Europa e a crise económica na Grécia e em Portugal. Muito interessado em desporto, esteve presente no Mundial'2010 e no Euro'2016 e já entrevistou grandes figuras do futebol: Eusébio, Madjer, Paulo Futre, Rivaldo, Deco, Roger Milla, Abedi Pelé, Basile Boli, Ricardo, Abel Xavier, Scolari, Chapuisat, Oscar Cardozo.

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