#14 Futebol e Democracia com José Paulo Florenzano e Gabriel Said

Equipe Ludopédio 17 de junho de 2020

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Análise geral do cenário em 2020. Impressões desse cenário? Aniversário do Maracanã.

FLORENZANO

O futebol conseguiu destravar um pouco uma certa paralisia do campo progressista diante da situação dramática que estamos vivendo. Crise na área da saúde. Desgoverno em que estamos. Ao lado dela, a crise econômica e a política. Nós, o Brasil, ainda acrescentamos uma crise política.

Vivemos uma encruzilhada em nossa história.

Alguns atores tomaram a frente no campo progressista, programaram ações contra o autoritarismo.

Esporte e democracia.

Grupos dentro das torcidas e os coletivos organizando setores na frente democrática.

Esforço tem que ser de todo mundo para tentar conter essa escalada autoritária. A democracia custou muito, foi fruto de uma conquista da sociedade civil.

É absolutamente estarrecedor pensar que há menos de 50 anos estávamos em uma ditadura e hoje estamos em algo talvez pior do que a ditadura. Não é a repetição de um autoritarismo passado. Se for adiante, esse cenário levará a algo ainda pior do que foi a ditadura.

SAID

Eu sou estudante de Sociologia da UFF, sou orientando do Marcos Alvito.

Estou acompanhando a manifestação das organizadas de longe. Acompanho muito pelo que o Irlan Simões tem argumentado.

Eu vi um pouco de preconceito com as torcidas organizadas como se elas não fossem politizadas.

Como você viu uma disputa dentro dos coletivos e das torcidas? Democracia corinthiana, antifascistas palestrinos

FLORENZANO

Não estou envolvido diretamente nessas manifestações. Estou acompanhando de longe, através de relatos e colegas.

Sempre acompanhei com otimismo essas primeiras ações.

Não eram as torcidas organizadas, mas coletivos.

A Gaviões da Fiel tem uma tradição, se situa mais à esquerda no espectro político.

É exagerado falar que era a torcida organizada do Corinthians. Aí houve um esforço para criar essa narrativa.

Por outro lado, não dá para falar só em torcida.

Não se pode falar em nome da Gaviões, mas pode organizar um grupo antifascista. Tem todo o direito a participar de um ato antifascista.

SAID

O Ludopédio ficou no bastidor, não fomos à rua. A gente debateu sobre a representatividade desses grupos. O lugar do torcedor. Qual sua expectativa de isso se tornar maior do que vimos até o momento?

FLORENZANO

Eu acho que está em aberto. Você pode pensar que essas iniciativas evoluam para arrastar mais gente para as ruas, de convencimento de pessoas, colocando acima das paixões clubísticas.

Lembremos da Primavera Árabe. Os dois clubes locais se colocaram na luta em comum pela derrubada do Mubarak.

Essa é uma batalha no plano das ideias.

Qual o projeto? Defender a democracia. É uma causa que comporta essa utopia. Devemos fechar numa causa comum.

Hoje o grande risco é permitir que essas manifestações sejam infiltradas por grupos que querem quebrar a ordem para justificar o uso das Forças Armadas.

É preciso estar muito atento. Lutar por democracia sempre e violência jamais.

É momento de muito cuidado nessas manifestações.

SAID

Criminalização das torcidas. As pessoas esperam por isso para banir as torcidas. Esse contra-ataque não pode ser um ataque contra?

FLORENZANO

Certamente é uma armadilha. Ela existe. É mais um motivo para que as manifestações sejam bem organizadas para evitar de cair nela.

Por outro lado, existe uma possibilidade histórica de luta.

Tudo é muito incerto.

Tem um caldo de cultura. O desemprego, pessoas passando fome.

Eu também tenho receio dessa armadilha.

Eu também temo pela criminalização das organizadas. Colocar a pecha de terrorismo e levar adiante essa intervenção.

SAID

As TOs vivem na criminalidade sempre, pelo menos de acordo com as forças de repressão da polícia.

É com a rua que esperamos fazer algo contra o governo.

Por um lado é verdade que o governo pode usar isso para impor ordem. Por outro, é pelas ruas que sairemos disso.

Papo sobre liderança e tática/estratégica de rua. A polícia já tem lado. Ganhou simpatia o movimento antifascista? Tem um esvaziamento dos grupos políticos mais organizados? Ocupações de rua acabaram gerando historicamente outras consequências. Frente ampla da esquerda? Se até torcidas estão indo juntas às ruas… Quadros políticos progressistas.

FLORENZANO

Tão dramático perceber que existe uma força autoritária com um projeto tenebroso para o país, é ver a esquerda sem ação conjunta.

Não acho que vai ser a reprodução do autoritarismo de 64, repito.

Não acho que tem sentido neste momento debate de divergências na esquerda.

Frente ampla pela democracia. ARticular essas forças. Desde as organizadas até os liberais que não fecham com esse processo autoritário.

Resgatar as Diretas Já. Tinha vários espectros.

Essa é a questão hoje.

Segundo, essa questão é dificílima de discutir: o papel da violência e da manifestação de massa.

Martin Luther King: apostou ao máximo até seu assassinato.

É difícil avaliar essas armas, essas estratégias, sobretudo quando o movimento de massa toma as ruas.

Se a estratégia de luta for não violenta, isso é muito bom. Com a Diretas Já foi assim.

Estratégia da não violência sempre. Sempre.

SAID

Manifestações de corinthianos em Brasília. Acompanhou isso? Qual o relato sobre essas impressões? Qual o clima em Brasília? A grosso modo, a ficha virou para o lado progressista.

FLORENZANO

SAID

As manifestações aqui em Brasília não foram a primeira vez que acontecem. Essa divisão já ocorreu antes. Se tiver violência, é problema pelo espaço amplo…

Acho que aqui não é tão diferente assim. De uma forma geral, está tendo uma boa aceitação desse movimento de torcida organizada. Na tentativa de movimento amplo pela democracia.

Talvez aqui tenha um pouco mais de dificuldade por conta de movimentos organizados da direita, de 31 de maio.

Mas tem uma resistência.

Texto do Roberto Requião, crítica sobre as manifestações, sobre falta de pauta objetiva, luta pela democracia pouco palpável, criticou as Diretas. Para ele foi um fiasco, já que a Emenda não foi aprovada. A frente ampla para ele é um objetivo difícil de ser alcançado. O que pensa disso?

FLORENZANO

De fato, a campanha pelas Diretas Já teve acordos que traíram o movimento. Falar em fiasco é forte. Tem um movimento traído, digamos assim. Mas eram as possibilidades que estavam em jogo naquele momento. Havia uma história em aberto que poderia levar a uma democracia mais participativa. Por outro, um acordo político das elites por uma democracia representativa.

Falar em articular uma frente, hoje é um cenário diferente. Nossas escolhas, todas, estão colocadas em pensar a liberdade de imprensa, de expressão. Não é a mesma situação das Diretas Já.

Há claramente um projeto autoritário de armar as milícias. Não cabe neste momento de falar em caráter abstrato de discutir democracia. É objetivo, sair à rua e não ser preso por pensar diferente.

Para além desse círculo instruído de classe média alta, é falar para os outros o que significa a democracia ,para pobres e negros que não têm os direitos civis respeitados. É o que disse Martin Luther King. Como diz o Gramsci, é uma batalha de ideias. Quantas vezes ouvi de pessoas humildes, “pelo menos ele deu os 600 reais…)”

Para mim é o projeto urgente em defender a democracia.

SAID

Estou de acordo com o professor.

Uma das questões sobre a frente ampla está no centramento do problema na questão econômica. Ela está conectada com tudo o que o governo está fazendo.

Analisar a questão do outro grupo, daquele que está atentando contra a democracia, do discurso linguístico de inverter o jogo das ideias para tentar tirar os argumentos da esquerda? Como fazer esse debate trazendo o futebol, como qualificar o debate?

FLORENZANO

SAID

O futebol está tomando desde os anos 90 uma guinada econômica.

A coluna que escrevi tento fazer uma ligação entre economia e sociedade.

Articular o boxe com essa discussão. Parte 6 – A revolta racial no Harlem prenunciava os acontecimentos dramáticos nos anos 1960. Se você não estivesse colocado a data, pareceria que estava falando de hoje. Por que caminhamos e não saímos de 64, como escrever uma nova história diante desse quadro? A polícia tem uma só opção.

FLORENZANO

Eu tenho procurado resgatar a luta pelos direitos civis nos EUA. Não é uma questão doméstica, como ficou clara agora no caso George Floyd. Porque aquilo tocou fundo com aquela violência simbólica.

É tentar extrair dali algo que sirva para a luta presente.

A violência policial ocorre no Brasil.

A democracia é o direito de ir e vir sem ter seus direitos violados. Resgatar essa passagem tem me ensinado muito nessa miragem. Às vezes pensamos que a estrada está pavimentada, que as conquistas são cumulativas. Mas não.

A todo momento desde os anos 50 temos violência policial.

Tivemos vários movimentos e a cena se repete.

É difícil superar a estrutura racista.

É entender como o racismo vai se reinventando. A sociedade dos EUA os grupos hegemônicos reemprendiam um movimento de reinstituir a segregação.

Esse mergulho tem me ensinado como o racismo não é algo passado, ele se reinventa, tem estratégia.

As pessoas que estão no poder no Brasil estão comprometidas com essa questão.

SAID

Personagem do Pelé, silêncio dos atletas negros que não se manifestam. Queria que desse seu olhar sobre isso, pressão sobre o posicionamento dos atletas?

FLORENZANO

Muito legal a reflexão do Gabriel.

Muitos ativistas têm colocado: a maneira como o mito da democracia racial tem funcionado no Brasil. Coibir qualquer reflexão, romper com o mito.

Vocês estão de parabéns pelo debate com o Observatório.

Sobre o Pelé… ele é uma figura fascinante. Ele, claro, é contraditório. A maneira como ele tentou a todo momento se eximir dessa questão.

Um ponto importante. Passou batido por ele ser claramente vítima do racismo. Esse episódio. O episódio que deixa claro isso é quando ele decide sair da seleção brasileira. O quanto foi chantageado, pelo João Havelange, para continuar sendo instrumentalizado pelos militares. Agora ele queria servir à sociedade brasileira de outra maneira: visando lucro, no capitalismo é legítimo, queria ser empresário. Foi cobrado, taxado de mercenário.

“Teu lugar é no futebol, espaço para o qual os negros são canalizados.” Ser empresário não era algo disponível, nem para o Pelé, que ele acreditava estar acima do poder.

A imprensa na época usa e abusa de charges e frases abertamente racistas contra ele.

SAID

Eu li o texto do Marcelo, excelente texto.

A gente está com o terreno preparado para que ninguém se manifeste.

No futebol americano, tem o Kapernick. Tem o Aranha, que se posicionou e sumiu.

Hoje a gente pensa o futebol diferente. Há media training. Há pressão para que não se posicione.

No dia 07 de junho, um jogador do PSV foi às manifestações vidas negras importam e foi afastado do elenco.

O Raí também foi criticado na Globo.

Falta de negros como dirigentes e técnicos?

FLORENZANO

Essa questão também é nuançada. É bem-vindo para ser técnico de base, na segunda divisão. O lugar dele no futebol é dentro de campo, não fora.

SAID

Documentário “Last dance” Trajetória do Chicago Bulls e Jordan. Dá para fazer associação com o Pelé. Ele estava focado para ser o melhor do mundo. Só pensava o jogo. Ele tinha tempo para fazer boas propagandas, em inúmeras campanhas de marketing. Como fica o espaço do contraditório nessa narrativa? Tem a figura do próprio Neymar. Tem como alcançar outros lugares na estrutura?

FLORENZANO

Eu não vi o documentário. O Jordan pautou a carreira dele pelo apoliticismo. A Nike hoje mudou, patrocinou o Kaepernick. Ele seguiu o apoliticismo. Tentou evitar por tudo aquilo que o documentário mostra. Os Ronaldos… Ele se negou a apoiar um democrata dizendo: “Os republicanos também compram tênis.”. Ele também se eximiu em outro momento. Ele tinha muita preocupação em não se posicionar.

A contradição dele é: se não fosse o Ali e outros atletas que pagaram com suas carreiras, Smith e Carlos, se não fosse esses caras, o Jordan não poderia ter o sucesso que ele teve. Ele não poderia se inscrever na Carolina do Norte e ser um dos melhores atletas de todos os tempos. Aqueles atletas permitiram isso a ele.

SAID

Tem outros jogadores que se manifestam. O Sterling, o Rashford também se manifesta. Não sei se é por falta de atenção ou por medo de perder contrato.

O. J. Simpson, símbolo de sucesso do esporte americano. Ataque a ele como racismo usado pelos republicanos. batalha de discursos, foi usado pelos conservadores. Vamos pensar juntos. Será que esse momento é a hora de puxar a pauta antirracista para o antifascismo? Que democracia é essa que o policial não deixa de puxar o gatilho contra pretos e pobres no Brasil? Que lugar que estamos em relação aos Estados Unidos?

FLORENZANO

Eu não acho que sejam coisas distintas. A defesa da democracia. A democracia é um conjunto de regras, ideias, direitos. Defender os direitos das pessoas de não serem violentadas. Isso é defender, ampliar a democracia para grupos que são violentados. Um grupo vive sob terror, de ser espancado ao descer de um carro. Outro é diferente.

Este é o momento em dar esse conteúdo à palavra “democracia”. Nós não teremos democracia se a luta antirracista não estiver dentro dela.

SAID

Essa relação está conectada desde sempre. Sobre as manifestações aqui no Brasil de não ter tanto barulho quanto lá. Eles já tiveram outras revoltas de uma maneira que não tivemos aqui. Normalmente, quando acontece aqui esse tipo de violência está muito localizado, isolado e distante. Talvez a ruptura lá esteja mais latente do que aqui.

Caio e Casagrande. Como acompanharam esse debate? De tempos em tempos isso volta. Jogadores falando de política. Mesmo que em alguns momentos que isso se volte a apoiar o Bolsonaro, como o Pato.

FLORENZANO

Nesta discussão do Caio com o Casagrande, é preciso fazer uma distinção. Uma coisa é se manifestar em defender um político em uma eleição. A discussão do Casagrande é defender um projeto civilizacional. Viver na democracia é civilizacional, simples assim. As pessoas não têm memória do que é viver em um regime autoritário.

O debate para mim está muito claro. O que é incompreensível é a omissão neste momento. Não dá para ninguém se omitir neste momento. Não é uma questão partidária, sequer ideológica. É em defesa da vida democrática, que inclui o direito político, mas civil, social.

Se espera que os atletas, pelo menos os que têm consciência, se manifeste.

Eu tenho certeza que a direção do Palmeiras vai lamentar profundamente a imagem da comemoração do título de 2018. Essa imagem vai envergonhar a história do Palmeiras. Vai custar muito a imagem simbólica do clube… A conta vai chegar.

SAID

O Igor Julião é formado no Fluminense. No tempo fora do Brasil, na Eslovênia, ele pegou o gosto pela leitura e passou a pensar. Ele é reserva. Mas é importante ter alguém no elenco que se manifeste politicamente. São coisas que ficam marcadas, essa relação com o presidente e a luta pela volta do futebol.

Pensando de novo nos clubes, ele não vestiu a camisa do São Paulo, provavelmente por um discurso machista, homofóbico. O Marcos sempre se posicionou de maneira objetiva. Ele foi criticado no vestiário. Você esperava dele uma posição contrário a esse governo ou ele é fruto de um local conservador? Como que ele pode trazer a figura do Diniz nesse embate discursivo?

FLORENZANO

Claro que fico decepcionado com o Marcos, por tomá-lo como ídolo. Não me incomoda em ver um ídolo ter votado num candidato conservador, liberal. Na Democracia Corinthiana, o Biro Biro votava na direita. Eu espero que o Marcos consiga avaliar a escolha que ele fez.

Embora não se pode falar que o Bolsonaro não se revelou antes da eleição.

Por um lado, as pessoas têm direito de optar por suas escolhas.

O autoritarismo não é privilégio da direita.

Eu espero que esteja claro que um contingente votou nele com uma expectativa. Espero que agora ele tenha um distanciamento crítico de reavaliar suas escolhas.

SAID

O Diniz sofre pelo modo que entende o futebol. Ele acha que pelo futebol pode repensar a vida, acredita que a forma dele de pensar o jogo, ele pode repensar a vida. 

Dicas?

FLORENZANO

Documentário no canal Curta, “O Movimento Negro”. São vário episódios. É excelente. Do Luther King ao Malcolm X. Fica muito apropriado para o Futebol em Casa.

SAID

Três: clubes associados com o desgovernante do Brasil: recomendo o livro chileno Luiz Urrutia: “Colo-Colo 73”, documentário do Peleja, livro do Luis Antônio Simas.

Equipe Ludopédio

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