No inicio de fevereiro, veio a lume uma espécie de livro de memórias da vida de Jean Marie Faustin Godefrois d’ Havelange, mais conhecido como João Havelange, resultando da parceria entre o Comitê Olímpico Brasileiro e a Editora Casa da Palavra, bem como do apoio financeiro da Bradesco Seguros e da GEFCO. Constituído por quase duas centenas de imagens e de um texto ligeiro e de fácil digestão (em edição bilíngue português/ francês), o livro é fruto de uma entrevista longa com o dirigente de futebol do século XX, bem como de alguma documentação impressa de época retirada de momentos específicos, que servem, na totalidade do livro, para atestar e confirmar a veracidade das palavras narradas.Simultaneamente dádiva para Havelange e lugar de memória para a comunidade dirigente, o texto congratula ilusoriamente a persona do outrora presidente da FIFA celebrando, na realidade, todos os dirigentes brasileiros bem como a própria instituição do Comitê Olímpico Brasileiro, capaz, por esforços próprios e méritos individuais, de fazer com que o Brasil sediasse as Olimpíadas. Quando eu entrevistei um antigo presidente do Flamengo, ele me declarou logo após desligar o gravador que eu deveria entrevistar João Havelange, porque ele é “o maior de todos nós”. Sem dúvida, defender a existência de uma comunidade dos dirigentes esportivos una é atitude ficcional, porque esta é eivada de conflitos, disputa das chances de prestígio, permeada por intrigas, para não dizer fofocas. Ainda assim, há unidade quanto à visão de mundo desse setor, centrada em torno de uma concepção de política que privilegia os atores individuais excepcionais como os agentes por excelência das transformações históricas. Daí porque é facilmente compreensível que a tessitura do enredo se estruture pelos pronomes singulares (eu/ ele) e pelas qualidades de virtude do individuo extraordinário . Sendo assim, pretendo argumentar que o reforço desta concepção de política faz com que a memória social se imponha como dado da natureza, naturalizando e reforçando a fronteira simbólica entre os grupos sociais. Dessa forma, segue-se uma trilha aberta por Michael Pollack (inspirado em Pierre Bourdieu) para quem a memória (e a biografia) de um indivíduo pode se tornar um operador por meio do qual se manifestam as formas mais puras da dominação simbólica, em que grupos se distinguem dos demais, em que as relações sociais são convertidas em relações naturais. Daí porque o trabalho tem um objetivo bastante modesto diante de hipótese tão abrangente: trata-se da análise da simbólica do livro e do discurso de memória organizado pelo Comitê Olímpico Brasileiro, como sendo o primeiro passo para a compreensão dos mecanismos coercitivos da memória e da biografia.